Talvez o principal desafio enfrentado pelo projeto de Bruna Surfistinha, da elaboração do roteiro à sua materialização como filme na tela, foi o de justamente transformar um “livro de memórias” notadamente bastante característico em um clássico filme onde se conta “a trajetória de um herói”, no caso, uma heroína. O livro em questão chama-se O doce veneno do escorpião, no qual Raquel Pacheco (o verdadeiro nome de Bruna Surfistinha) narra sob a forma de depoimento a sua experiência como prostituta ao entrevistador Jorge Tarquini. O que esta entrevista-livro apresenta de diferencial, se a comparamos com outras autobiografias, é o curto recorte espacial-temporal contemplado e a abordagem de um tema bastante específico (a prostituição), através do olhar de alguém de dentro. Não se trata aqui das memórias de uma personalidade artística ou política que agora repassa em livro a sua longa experiência de vida e sim as memórias de uma ex-prostituta de apenas 21 anos que as centraliza nos cinco em que trabalhou como profissional do sexo. O interesse do relato, portanto, reside precisamente no “que” se fala e na voz de “quem” está falando. Assim, podemos definir como os principais elementos de atração de O doce veneno do escorpião a narração em primeira pessoa de Raquel-Bruna e as próprias peculiaridades de uma narrativa extremamente íntima e pessoal, articulada como se pertencesse às páginas de um diário secreto. O leitor, então, se sentiria como se fosse alguém que teve acesso clandestinamente a essas confissões de alcova. Tomando isso como base, a pergunta que surge é a seguinte: como transportar esses elementos para uma adaptação cinematográfica?
Se no livro as palavras impressas tinham saído da transcrição da voz de Bruna, no filme vemos esta sendo encarnada pela atriz Deborah Secco. Se no livro a relação entre receptor – emissor era bem mais direta, no filme temos a consciência de que o contato com a instância narradora do discurso (Bruna) é dissolvida e remanejada por outras mãos: as do realizador Marcus Baldini e seus colaboradores. Tendo consciência dos ajustes que teriam que ser feitos na transposição de sua fonte para o cinema, Baldini optou por não ressaltar ao extremo a narração em primeira pessoa. As intervenções em off da protagonista, além de serem pontuais, são pronunciadas como se fossem emitidas a um ouvinte definido. Apesar de ser indicado que a personagem escrevia um diário e de se esboçar as possíveis analogias entre ele e os eventos que estão sendo mostrados, a voz off não se tece como um monólogo e sim como uma revelação pessoal dirigida ao espectador. Esta noção da presença do espectador e das relações que devem ser estabelecidas entre ele e a personagem-narradora são elementos onipresentes em “Bruna Surfistinha”.
Nesta estratégia de consolidar o diálogo entre a protagonista e o espectador surge como premente a necessidade de configurá-la como uma personagem essencialmente positiva. Primeiramente ela nos é mostrada como vítima e incompreendida: vítima dos colegas do colégio e incompreendida pela família. Temos como as suas principais motivações o desejo presente em quase todos os adolescentes de popularidade entre os seus pares e o de sair de uma vida ditada pelas regras impostas pelos pais. O que Bruna quer é se destacar e ser independente financeiramente, é “nunca depender de ninguém”. Na ânsia de conseguir esses objetivos a personagem foge de casa e vai bater na porta de um prostíbulo, sempre sem abrir mão da honestidade e de seu caráter. É na composição de Bruna, mas não só, que vemos nitidamente a opção do diretor em realizar sobretudo um filme de trajetória, em detrimento do que poderia ser um filme de memórias em tom íntimo. Bruna é transformada em uma heroína clássica que precisará enfrentar uma série de obstáculos até atingir o seu objetivo. Baldini parece se interessar muito mais no périplo e na jornada da protagonista no que em seus relatos sexuais isolados, grande trunfo de O doce veneno do escorpião como livro de memórias de uma ex-prostituta. Ao optar por um filme de trajetória, no sentido clássico, o realizador opta por um filme primordialmente linear cujo necessário desfecho é a superação da protagonista, o que ocorre no final quando sabemos que ela teria conseguido o dinheiro desejado e largado a prostituição. Porém, há nitidamente um desequilíbrio na construção desta trajetória.
O filme funciona ao descrever a atmosfera do prostíbulo e a ascensão da protagonista, em uma primeira parte muito mais extensa do que a segunda, dedicada à queda e à superação. A atmosfera de crônica presente nas cenas do prostíbulo é conseguida graças ao desempenho das atrizes e à composição da ambiência. Sentimos certa leveza no retrato de um contexto que em mãos mais pesadas poderia ser representado de forma estereotipada. Aqui Bruna Surfistinha pretende sair de um discurso moralista e paternalista em relação às prostitutas. O périplo que abrange a saída da personagem do prostíbulo rumo à prostituição de luxo é narrado de forma fluida, porém a sua queda é costurada de forma abrupta e um pouco desleixada. Não há a figura de um antagonista claro – a inclusão do vício de cocaína, o suposto endividamento e a função atribuída à amiga rica não chegam a se configurar como tal. Não há um elemento concreto que justifique a transição repentina de prostituta de luxo famosa na internet a prostituta de rua, de um moquifo onde o valor do programa é 20 reais ou de cinemas de quinta categoria. Tal decadência (Bruna atinge o fundo do poço, mas continua morando na suntuosa cobertura!) é altamente forçada, assim como a posterior redenção. Assim, podemos definir Bruna surfistinha como um filme que não atingiu a contento a fórmula que escolheu para si.
>>>> ESTEVÃO GARCIA é crítico, realizador e pesquisador de cinema. Graduado em cinema pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Estudos Cinematográficos pela Universidad de Guadalajara, México, atua como crítico desde 1998 com passagens pelas revistas Contracampo, Comunicação e Política, Almanaque Virtual, El Ojo que Piensa e Zé Pereira.