Convidados


“BARBARA” E A VIGÍLIA PERMANENTE

29.01.2013
Por João de Oliveira
Trata-se de um filme que suscita a reflexão sobre o estado de perturbação paranoica e de permanente desconfiança no qual mergulhamos nossa existência quando vivemos sob Estados centralizadores e/ou policialescos.

Uma cirurgiã-pediatra da Alemanha Oriental pede uma autorização para deixar o território e é imediatamente transferida para um hospital de interior e posta sob intensa vigilância. O médico chefe do hospital apaixona-se por ela, mas é constantemente rechaçado pois ela pensa que ele está mancomunado com aqueles que a vigiam, antes de descobrir que ele também foi vitima do sistema. Perante a rigidez de um Estado mantenedor e assistencialista, que tudo provê em troca de fidelidade e conformidade, mas que pode tudo reaver em caso de discórdia, de ruptura do contrato politico, a gratuidade da afeição desinteressada e pachorrenta do médico soa improvável. Colocados sob suspeita, seus sentimentos são vistos com desconfiança. Mas a resistência aos avanços do médico vai cedendo aos poucos para dar lugar a uma cumplicidade tácita, feita de silêncios, não ditos, pequenos insultos, mas de muita respeitabilidade profissional a ponto de diminuir as distâncias, reduzir a indiferença e minar a determinação inicial.

Neste filme, ao contrario de “A vida dos outros”, a instancia narrativa se coloca do lado da vitima e não do dos carrascos. Alias, essa questão presente durante todo o filme, notadamente em seu final, é tema de uma bela leitura que o médico faz do fabuloso quadro de Rembrandt “Liçao de anatomia do Dr. Tulp”. Segundo o médico, os convidados para a lição estão mais preocupados em olhar para o atlas de medicina, à direita do quadro, do que para o corpo estirado sobre a mesa. A teoria parece seduzi-los mais que a prática, a ponto de eles não perceberem pequenos errinhos na dissecação feita pelo Dr. Tulp. Procedendo dessa maneira, Rembrandt dirigiria o nosso olhar para o corpo da vitima, um marginal condenado, e não para os aristocratas. E é essa justamente a postura escolhida pelo diretor. O filme, que concentra suas ações no personagem da médica, age da mesma forma dirigindo a nossa atenção para a vida da vitima.

O filme lembra também “A conversação”, de Coppola, e aquele sentimento aflitivo de se estar sendo constantemente vigiado. Neste filme a sensação de vigilância passa pelo superdimensionamento dos barulhos. Todo e qualquer tipo de barulho – e há muitos e diversos no filme - é ampliado de forma a provocar o medo, a duvida, a surpresa, uma lembrança subliminar e incômoda do mal que ronda à porta, à espreita e pronto para atacar na forma de uma investigação minuciosa cujo objetivo principal não é nenhuma possível descoberta de um suposto objeto dissimulado, mas a humilhação dissuasiva, em uma forma de violência que é ao mesmo tempo moral e física. O filme não se situa em um tempo preciso talvez para melhor denunciar a permanência e a infinibilidade desse tipo de prática ditatorial.

A fotografia é simbolicamente soturna e triste, com tons pastéis e cinza, mas bela. Quase não há musica para que a emoção dos espectadores não seja induzida e se restrinja apenas à atuação dos atores, no que talvez seja mais uma forma de concentrar a ação nas vitimas do sistema. Barbara, que além de nome batismal da personagem principal parece também qualificar a situação de dissidentes de países ditatoriais, é uma dessas historias simples e banais, mas dirigida com eficiência e maestria. Trata-se de um filme que suscita a reflexão sobre o estado de perturbação paranoica e de permanente desconfiança no qual mergulhamos nossa existência quando vivemos sob Estados centralizadores e/ou policialescos.

JOÃO DE OLIVEIRA é jornalista, cineasta amador e doutorando em cinema em Paris III.

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