Em janeiro de 1970, atendendo a um convite do fotógrafo Fernando Duarte, o documentarista paraibano Vladimir Carvalho instalou-se em Brasília para dar um curso de cinema na UnB. Começava ali não apenas uma espécie de segunda carreira do cineasta, como todo um capítulo definidor da história do cinema brasiliense. A partir do inovador Vestibular 70, em que flagrava a tensão dos estudantes num clima próximo da ficção científica e com música de Caetano Veloso, Vladimir Carvalho passaria a dividir as atenções de sua câmera entre o Nordeste e o Planalto Central.
É certo que o cinema do Distrito Federal não começou com ele, mas na própria construção da cidade, esquadrinhada por cinegrafistas de todo o Brasil. Assim também, o itinerário de Carvalho não se iniciou no cerrado, mas na caatinga paraibana, no ano de 1960, como assistente de Linduarte Noronha no seminal documentário Aruanda. De qualquer forma, a identidade do audiovisual brasiliense ficou marcada não apenas pelos seus filmes, mas igualmente pela sua militância, na universidade e na imprensa, em prol de um cinema que refletisse as grandes questões sociais e históricas da região. A crônica desse duplo engajamento é o que ele próprio oferece no livro Cinema Candango – Matéria de Jornal, lançado em novembro do ano passado.
O volume reúne artigos de jornal, entrevistas, pronunciamentos e textos dispersos, que recompõem a trajetória do diretor, desde Aruanda até o recente Barra 68 – Sem Perder a Ternura. No caminho, clássicos do documentarismo brasileiro como Romeiros da Guia, O País de São Saruê e Conterrâneos Velhos de Guerra. E ainda quedas-de-braço com a censura do regime militar e o isolamento econômico da produção cultural em Brasília. A certa altura, ele equipara o surgimento do cineasta do Planalto ao “parto mais doloroso da história”.
A obra pessoal está ali não como memórias vaidosas, mas como parte de um painel maior, o chamado cinema candango. Vladimir Carvalho evoca companheiros como o etnógrafo e cineasta Heinz Förthman, que trabalhou com Darcy Ribeiro e deixou obra respeitável sobre diversas tribos indígenas. Rememora os primórdios da seção brasiliense da Associação Brasileira de Documentaristas, quando esta praticamente se resumia a uma placa na porta da sua sala e uma enorme disposição para desenvolver a “vocação natural” de Brasília para o filme documental. “O cinema seria uma espécie de testemunha e ativo intérprete da urbe monumental em que Brasília vem se transformando em seus poucos anos de vida comunitária”, declarou ao jornal Correio Braziliense em maio de 1977.
Os textos e falas de Carvalho são fluentes, calorosos e sinceros (veja trecho abaixo). Não dispensam mesmo uma certa épica quando se trata, por exemplo, de defender a criação do Pólo de Cinema e Vídeo do DF, atacar velhos “projetos eleitoreiros” do governador Joaquim Roriz ou assestar baterias contra os efeitos da globalização sobre o audiovisual brasileiro. A franqueza do autor pode levá-lo a afirmações algo sectárias, como a referência ao “cinemão de ficção, sempre em crise, avelhantado”, ou a posições controvertidas, como a defesa da transferência da Embrafilme para Brasília, no auge da atuação da empresa, em fins dos anos 1970.
De uma coisa, porém, não se pode acusar Vladimir Carvalho. Ele nunca fugiu à luta. Cinema Candango é a compilação de uma carreira solidária e fértil. Para encontrá-lo, provavelmente, você terá que se dirigir à Fundação Cinememória, entidade criada por Carvalho em 1994 e que sobrevive às custas do próprio cineasta. O telefone é (61) 225-8680.
* Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo de 02.04.2003
TRECHO DE CINEMA CANDANGO:
“Mal chegado, Brasília entrou-me pelos olhos e causou-me a mesma funda impressão que costuma deixar nos espíritos ao primeiro contato com o seu espetáculo arquitetônico. Aquela fachada monumental, o peso de sua beleza e do seu espaço extasiou-me como a qualquer outro provinciano que andasse a bater cabeça, num trotamundos forçado, por cidades convencionais e antigas como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, que era por onde eu andara antes de aportar aqui. Faltavam-me ainda a vivência e a visão mais acurada que só o tempo traria. Depois é que aprendi, com Sérgio Ferro, o sentido de “telão de teatro”, de tapadeira ideológica que existia em cada coluna, em cada palácio desta urbe magnífica, como uma soma cultural de todas as nossas contradições. Resolvido a estender a minha experiência de vida em Brasília, logo pude perceber que para dar seqüência ao meu trabalho de documentarista, cuja matéria-prima havia sido essencialmente o Nordeste, deveria buscar em torno a ligação natural com esse contexto. Sem nunca ter me dedicado a temas urbanos, embora não me faltasse a curiosidade, não foi difícil sentir o nexo de Brasília com meus filmes do ciclo da Paraíba – o homem que viera de “pau-de-arara” construir a Cidade Grande, o candango que depois foi expelido para a periferia do Plano Piloto”.