No mundo automobilístico, diversas rivalidades entre pilotos transformavam-se em conflitos mais densos do que simples relação de adversários. Hoje em dia é difícil imaginar a Fórmula 1 fora da mecanicidade e precisão, com corridas que raramente produzem embates entre os competidores; mas a história deixa claro: nas condições perigosas do passado, pilotos eram caçadores, homens se arriscando na pista, sempre em busca de uma emoção que, por vezes, se revelava fatal. Como Ayrton Senna e Alain Prost, René Arnoux e Gilles Villeneuve, Nelson Piquet e Nigel Mansell, Niki Lauda e James Hunt, transformando as corridas em campo de batalha que levava os fãs ao prazer catártico que o bom esporte sempre causa.
Rush, o novo filme de Ron Howard, aborda a rivalidade de Lauda e Hunt focando em sua dramaticidade com surpreendente esmero, equilibrando tanto o debate pessoal dos personagens quanto o duelo nas pistas, para, novamente, traçar um panorama dos conflitos que a personalidade de dois homens ideologicamente distintos pode provocar.
Logo no início, o filme introduz Hunt e Lauda através de narração em off atribuída a cada um deles. O que - geralmente - é um recurso preguiçoso por parte dos roteiristas acaba por se revelar o primeiro indício de que o roteiro de Peter Morgan está mais interessado no contraste entre os pilotos do que em meramente recriar um evento histórico. O austríaco Lauda, profissionalmente compenetrado, é o homem focado e racional. Já Hunt, homem de temperamento explosivo, é a emoção encarnada: seduzido por mulheres, vícios e carros, Hunt preza mais pelo risco de desafiar a morte toda vez que entra no carro do que pelas suas reações pessoais, o que rende a disparidade entre o casamento do inglês e o do austríaco, representada por cenas que Morgan aborda de maneira sutil - como o balé de Lauda e sua mulher na piscina ou o diálogo forte entre Hunt e sua esposa. É na sensibilidade de Morgan e do diretor ao construir uma relação de respeito e interesse entre os adversários que o filme se destaca com uma carpintaria dramática que remonta o estudo de personagens visto em sua parceria de 2008, Frost/Nixon.
Howard é preciso ao entender a proposta do roteiro e filma os pilotos e seus conflitos evitando uma abordagem clichê, tradicional, dos filmes de esporte. As corridas são filmadas com arrojo (repare como Howard é criativo ao demonstrar a genialidade técnica de Lauda, capturando seu número 1 logo após uma bela ultrapassagem), e os diálogos são registrados com a precisão do diretor de Frost/Nixon. Cauteloso não só com o imaginário dos homens como esportistas, mas com o que há de mais pessoal neles, destacando Daniel Bruhl e um ótimo e eficiente Chris Hemsworth nos papéis dos protagonistas. E a fotografia do sempre competente Anthony Dod Mantle evoca os anos 1970 com precisão notável, além de colocar o espectador no meio do embate entre os carros, provocando um ótimo clímax, capaz de causar tensão notável.
A formidável montagem de Daniel P. Hanley e Mike Hill consegue distribuir bem o tempo entre o que há de pessoal e o que há de esportivo em Rush. O drama dos personagens é sempre pontuado por uma edição mais cadenciada, mostrando tanto Lauda quanto Hunt em igual intensidade, acompanhando a opção do roteiro de ao não eleger apenas um dos personagens para ser plenamente desenvolvido. Nas cenas de ação, Hanley e Hill utilizam funcionais letreiros para agilizar as corridas da temporada, o que potencializa o efeito dramático do clímax, cuidadosamente composto ao enfocar as decisões dos dois pilotos.
Como Frost/Nixon retratava as figuras-título, Rush é o embate filmado entre os dois gênios totalmente diferentes de Lauda e Hunt, mas estranhamente complementares, um tema que parece cada vez mais despertar o interesse de Ron Howard. O filme fica na galeria dos melhores trabalhos da irregular carreira do diretor, junto ao próprio filme de 2008, além de provar que Peter Morgan é um dos grandes nomes do mercado cinematográfico no que diz respeito aos pensamentos e consequências que um duelo histórico pode despertar.
Gabriel Papaléo - Estudante de Cinema