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TERRA FIRME

15.10.2013
Por Marcia Vitari
Muita coisa precisa mudar para que o Mediterrâneo não se transforme num cemitério de refugiados.

Ainda no séc. XVII, o poeta inglês John Donne escrevia que “nenhum homem é uma ilha” (“No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main.”) Tentava, assim, expressar o fato de que ninguém vive isolado, já que todos estão ligados de uma forma ou de outra, por aspectos humanos ou territoriais. A noção de fronteira, por sua vez, cria um novo tipo de sectarismo que nos impõe uma diferença artificial e gera intolerância.

O filme Terra Firme (Terraferma), de Emanuele Crialese, emerge quase como um documentário sobre o que acontece nos dias atuais em relação ao fluxo migratório de países em crise econômica e/ou social. A menção à ilha de Lampedusa é indisfarçável. Quase uma década antes, o diretor realizou Respiro (2002), um filme sobre uma antiga lenda desta mesma ilha. Na ocasião, recebeu o Prêmio da Crítica no Festival de Cannes, além do César e de mais uma coleção de menções honrosas. Sua escolha sobre o tema não é um acaso, já que, apesar de nascido em Roma, é filho de sicilianos.

Em Terra Firme ele conta sua história através do olhar de um menino (Filippo) que vai, ao longo do enredo, se transformando num homem que deve se responsabilizar por suas escolhas, agindo conforme uma ética pessoal. Órfão de pai, ele se debate entre desejos familiares conflitantes: sua mãe e seu anseio de fuga em busca de uma vida mais confortável e cosmopolita; seu avô Ernesto (a encarnação do honesto), um pescador que procura transmitir valores sensatos ao neto e que sofre com a estiagem da pesca; e o assédio de seu tio bonachão, que encontra no potencial turístico uma alternativa rentável e pragmática de permanecer onde sempre esteve. Até que a chegada de barcos clandestinos, carregados de forasteiros ilegais, muda radicalmente sua visão de mundo e o impele ao amadurecimento.

Partindo de um núcleo simples, o diretor tenta discutir relações de mudança de paradigmas. Um assunto contemporâneo e delicado no qual nem a União Europeia consegue chegar a um consenso sobre como agir diante de tal drama que se reverte em tragédia, no qual desafortunados imigrantes munidos da ilusão de uma vida melhor entram em rota de colisão numa travessia em que, na maior parte das vezes, o destino é a morte. A situação real é que além da África Subsaariana, os imigrantes vêm da Síria e do Egito, países em crise. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, apenas este ano, 32 mil pessoas chegaram ao sul da Itália e Malta em busca de abrigo. Dois terços pediram asilo. O que o filme tenta mostrar é que muita coisa precisa mudar para que o Mediterrâneo não se transforme num cemitério de refugiados.

A imagem que chocou o mundo da indiferença de turistas tomando banho de sol ao lado de defuntos na Ilha de Lampedusa é revisitada pelo diretor, que, desta vez, coloca mais humanidade com relação a náufragos que sobrevivem com a assistência recebida. Tida com um novo Checkpoint Charlie - um dos postos militares que separavam os lados ocidental e oriental de Berlim na Guerra Fria -, a ilha, como passagem entre o Sul e o Norte do mundo, faz com que seu fluxo migratório desperte questões como a dos direitos e deveres da União Eurpeia. No filme, o personagem Filippo, do mesmo modo, não pode se esquivar sobre de que lado vai se posicionar: se ajuda os desafortunados ou assume uma posição xenófoba.

Ganhar o prêmio especial do Júri no Festival de Veneza e ter sido representante italiano no Oscar são apenas consequências do trabalho sério de um diretor europeu com formação em Nova Iorque - e que sentiu na pele a necessidade de deslocamento em busca de novos horizontes e approach intelectual. Engajado em questões de política e de logística que afrontam aqueles não alienados dos problemas que afetam a complexa sociedade contemporânea, não abandona temas universais que, ao mesmo tempo, lhe afetam de forma visceral.

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Outros comentários
    765
  • Julio Rodrigues
    16.10.2013 às 13:07

    Assunto bastante pertinente na atualidade, estes esgarcamentos de fronteiras serao a tonica do Mundo Futuro
  • 780
  • Fernando Sousa Andrade
    17.10.2013 às 22:15

    Muito boa resenha, Marcia. Teu texto é fluido e elucidativo quanto ao tema e conteúdo do filme. É o tipo de resenha que deixa o expectador com vontade de assistir ao filme! Adorei!
  • 949
  • Rosana Buarque de Holanda
    17.11.2013 às 17:52

    Excelente resenha, com uma boa abordagem e análise interpretativa. O tema é cada vez mais atual e abrangente.
  • 969
  • Ivana
    21.11.2013 às 06:00

    Crítica clara e sem afetações linguísticas . Olhar sobre o mundo contemporâneo e suas mazelas. Coloca o filme no patamar dos filmes criados para refletir o humano.
  • 1021
  • Marcia Magda
    30.11.2013 às 05:14

    Gostei da crítica e vou assistir o filme
  • 1117
  • Célia Pereira
    02.01.2014 às 18:04

    O filme é lindo e adorei a resenha. A trama nos faz refletir sobre limites e fronteiras. Questões apontam a solidariedade, a tradição, a ética como estruturantes para o ser humano.