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EM BUSCA DAS IMPERFEIÇÕES

30.03.2014
Por Azul Serra
Em contraponto à alta definição do cinema digital, tendências apontam para o resgate de filmes rodados com lentes anamórficas

O Camerimage é o festival mais importante de cinematografia do mundo, que reúne diretores de fotografia e amantes da sétima arte das mais diversas partes do planeta para debater as tendências estéticas e técnicas do cinema. A mais recente edição, realizada de 16 e 23 de novembro de 2013 na impronunciável e gelada cidade de Bydgoszcz, na Polônia, trouxe calorosas discussões.

Estavam presentes cinematógrafos de blockbusters e filmes premiados, com destaque para Sean Bobbitt, fotógrafo dos diretores Steven McQueen e Spike Lee; Chris Doyle, famoso pelas colaborações com Wong Kar-Wai e Gus Van Sant; Anthony Dod Mantle, fotógrafo de Lars Von Trier, Thomas Vinterberg e Danny Boyle; e Simon Duggan, que fotografou “The Great Gatsby”, além de dezenas de outros profissionais.

Houve um tempo em que a discussão sobre as tendências da cinematografia passava pela exaustiva dicotomia película versus digital. Logo depois, o tópico passou a ser a chegada do 3D. No ano passado, o foco foi a importância da escolha das lentes na definição da estética de um filme. Agora, em um momento no qual as câmeras digitais permitem uma definição absurda, surge um movimento contrário, de resgate das pequenas imperfeições ou erros proporcionados pelas lentes mais antigas. Uma negação da perfeição clínica tecnológica.

Um dos principais temas debatidos nesta edição do festival foi o resgate das lentes anamórficas, que estão relacionadas a essa linguagem “vintage” nas produções cinematográficas. Criadas há mais de 50 anos e raras no mercado, são responsáveis pelos filmes Cinemascope, aqueles que vão além do widescreen 16:9, chegando ao superwide 2:35, 2:70 ou além. Por sua configuração óptica, elas trazem características únicas, como os famosos “Flares” horizontais, os “Buquês” ovais - pontos de luz desfocados ao fundo que podem ajudar na textura e composição - e a Profundidade de Campo menor (área que esta em foco), características essas que, por certa unanimidade dos fotógrafos, tornam a imagem mais cinemática. Em outras palavras, deixa o filme mais épico e grandioso.

Muitos defendem que o olho humano funciona com essa proporção retangular, então, ao assistirmos a filmes rodados com anamórficas, sentimos mais conforto e naturalidade na imagem. É como John Schwartzman, fotógrafo de filmes como “Spider Man”, “Armaggedon” e “Pearl Harbor”, afirmou no evento: “A vida é mais bonita em scope”. Outra hipótese do retorno e popularização dessas lentes foi lembrada por Steven Poster, fotógrafo de “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” e “Blade Runner”: “É uma forma de nos diferenciarmos da TV”.

No momento em que séries de TV roubam a cena, nós, cinematógrafos, buscamos nos reinventar com uma nova interpretação de linguagens antigas – como o uso de anamórficas – para trazer para a história contada uma sensação única. Muitos de nós, que crescemos assistindo aos grandes clássicos, que usaram do artifício das anamórficas para elevar suas histórias, já temos incorporada essa cultura visual. Por essa razão, ao assistir novas produções rodadas em anamórficas, é provável que essa sensação do cinemão ressurja inconscientemente.

O cinema digital permite que mais profissionais tenham acesso a todos os tipos de tecnologia nas mais variadas áreas do audiovisual. Antigamente, por sua escassez e custo, essas lentes ficavam reservadas a um nicho muito restrito de cineastas, envolvidos com grandes produções, que tinham o privilégio de usá-las. O que faltava para a avalanche anamórfica foi feita pela ARRI, maior fabricante de câmeras de cinema digital do mundo, com o lançamento do sensor 4:3 da câmera digital Alexa, que permite o uso completo do sensor.

Diante desse quadro de acessibilidade e demanda, marcas como Panavision, Cooke, Hawk, Zeiss, Angénieux Zooms e Servicevision Primes lançam novos produtos em 2014. No próximo ano, a expectativa é a de que não apenas filmes feitos com anamórficas, mas também produções de TV, publicidade e promos invadam o mercado. As anamórficas pegam carona no cinema digital e retomam fôlego para inundar as produções audiovisuais.

AUSÊNCIA NA PÓS-PRODUÇÃO

Outra grande questão levantada no evento foi em relação à importância da atuação do diretor de fotografia em todo o processo do filme. Existe uma preocupação nesse sentido, já que muitos estúdios estão tirando os fotógrafos da pós-produção, etapa na qual ele tradicionalmente finaliza o processo visual, tratando as imagens com o mesmo cuidado e direção que teve no início do trabalho. Levando-se em conta apenas corte de custos, estão negando o acesso do fotógrafo a esse período final da produção, deixando-a na mão de técnicos que não têm relação criativa alguma com o que foi discutido e trabalhado na realização do filme.

Por isso, há certa unanimidade entre os diretores de fotografia na defesa dessa posição criativa. Uma maneira de contornar essa situação é aplicar o look pretendido no próprio set, por meio de filtros, lentes e com referências de correção de cor ao longo de toda a filmagem.

Acredito que o que há de mais valioso neste festival é sentirmos que, independentemente do tamanho da produção na qual estamos trabalhando, os problemas enfrentados por nós são estruturalmente os mesmos. Claro, levando em consideração a proporção de cada projeto, nós acabamos sempre tendo de lidar com falta de orçamento, falta de tempo, falta de compreensão do produtor e com a pressão criativa do diretor. Ao entender que enfrentamos os mesmos desafios, cada um parte de Bydgoszcz e volta para seu posto, atrás do visor, empolgado em contar a próxima história usando mais ou menos sal ou pimenta.



AZUL SERRA é diretor de fotografia paulistano, com bases em Londres e no Rio de Janeiro.

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