Em certo ponto de Ninfomaníaca, o personagem 'Seligman', vivido por Stellan Skarsgard, explica para a protagonista 'Joe' a diferença entre um antissionista e um antissemita. O comentário não se encaixa em absolutamente nenhum assunto proposto na narrativa; parece mais uma tentativa de Lars von Trier se explicar diante das declarações pró-Hitler feitas em Cannes 2011. Que o cinema do diretor dinamarquês sempre teve nos festivais de Cinema mundo afora um prestígio que atrai até mesmo estrelas hollywoodianas, já se sabe. Mas é agora, em seu mais recente filme, que fica mais claro que houve uma total entrega a essa pretensão cult em relação à qual o diretor é tanto acusado.
De fato, von Trier aproveita de sua griffe para polemizar os circuitos ditos “de Arte”: não é um mero oportunista como o coreano Kim ki-Duk, mas o dinamarquês sabe ser bem espalhafatoso quando quer. E Ninfomaníaca soa quase como provocação, uma jornada aos cacoetes pseudo-filosóficos que circundam o cinema do diretor. Não se espera diversão em sua filmografia, mas aqui a interação entre Seligman e Joe beira tanto o absurdo que não se espante se chegar a rir com frequência durante a projeção. Antes de mais nada, com a quebra de paradigmas que acompanharam o filme desde seu anúncio: sexo, esta "primeira parte" de Ninfomaníaca tem boa quantidade, mas não é o “filme erótico” que parecia prometer. Nada de Bruce La Bruce (de Gerontophilia, 2013), muito menos de Nagisa Oshima. Tanto as "pirocas ao vento" de Guiraudie quanto as "mariscadas" de Kechiche são mais realistas e explícitas, só para ficar em exemplos recentes. Aqui, as cenas servem para ilustrar o desespero (ou prazer) de Joe no sexo, filmadas com o rigor estético que se espera do diretor, mas não chocam. Se há algo de verdadeiramente chocante aqui, é a quantidade de metáforas-por-minuto que o diretor parece procurar.
A começar pela primeira – e mais gritante: ao embarcar num trem com uma amiga, Joe faz uma aposta para saber quem transa com mais homens até o final da viagem. Enquanto ouve a protagonista contando sobre, Seligman se apressa em comparar a “caça” aos homens indo à pesca. A partir daí, cada fato narrado por Joe é comentado pelo ouvinte como se fosse uma etapa do prolixo processo de fisgar um peixe. Para não deixar dúvidas, von Trier ainda insere uma imagem do animal sendo pego assim que Joe consegue seduzir o homem. Não há espaço para raciocínio: as metáforas de Ninfomaníaca são tão absurdas e metidas a espertas quanto previsíveis e didáticas. Por melhor que seja a intenção de Skarsgard na atuação, 'Seligman' não é nem confidente, nem personagem - é apenas o avatar do roteirista na hora de mastigar a metáfora besta a ser cuspida no espectador.
E, infelizmente, esse esboço representativo de ideias dá o tom para o resto da estrutura narrativa. À procura de versatilidade na hora de dar lastro a suas ideias, von Trier atira para todos os lados, oscilando entre o previsível, o ridículo e o subaproveitado: o sexo de Ninfomaníaca está no Ambiente (o peixe, o anzol, o garfo); está na Política, quando personagens resolvem criar uma seita para abolir o Amor de suas vidas (sem sucesso, afinal “o amor surge sem ser chamado”); está na Música - talvez a melhor sacada, com as três camadas sonoras de Bach funcionando como diferentes tipos de sexo; está na Literatura, na citação a Poe; está na História, na referência gratuita aos Bolcheviques; e, por fim, está (inexplicavelmente) nos Números, o que rende um parágrafo a parte.
Toda tentativa de expressão diante de um assunto complexo está sujeita a desmedidas. Porém, para um diretor já conhecido justamente pelos excessos em assuntos mais simples, o debate beira o desarticulado. Quando Joe perde a virgindade, um pavoroso grafismo toma a tela e aponta quantas estocadas a menina recebeu de 'Jerôme', o - digamos - executor. A protagonista comenta que 3+5 são os números humilhantes de sua vida, o que sinceramente faz muito pouco sentido. Em seguida, von Trier insere figuras geométricas e explicações quase professorais sobre a numerologia do nome de Bach, da sequência Fibonacci, na proporção áurea e até mesmo de um carro sendo estacionado (!).
Dá pra dizer que essa fixação por sexo em diversos campos seria um tanto freudiana – e o diretor acerta ao focar a sexualidade desde a infância –, mas seria reduzir a discussão do austríaco a metáforas que em sua maioria soam vazias; o cineasta sempre forçou a barra, mesmo em seus melhores trabalhos, mas aqui a - digamos - filosofia for dummies entra em metástase. Se Ninfomaníaca acerta em algum fator nesta primeira (e incompleta) parte, é na aura melancólica. E von Trier raramente erra em matéria de atmosfera fílmica. A de-saturação da fotografia de Manuel Alberto Claro remete ao clima da filmografia do diretor, tanto visual quanto metaforicamente. Se em Anticristo havia a opressão, e em Melancholia, o luto, dessa vez há uma frieza que se alastra por todo o ambiente desde seu nublado prólogo. É um cinza triste que percorre todos os ambientes (mesmo o quarto iluminado onde Joe mora quando jovem é de um avermelhado sem vida), o que é previsível, mas eficaz, ao transmitir a solidão da protagonista - talvez a única conclusão que se pode tirar sobre a personalidade de Joe nas duas horas de filme, uma mulher que implora por julgamento moral a cada situação.
O acerto de von Trier, além do humor bizarro à moda de O Grande Chefe (2006) no segmento que tem a participação de Uma Thurman, vem do elemento que menos se espera do diretor: sutileza. A maioria dos personagens dos casos de Joe são chamados pelas iniciais, impessoais como o próprio sexo que ela vive. Além disso, o capítulo sobre o pai de Joe, todo em preto e branco, mostra o sexo como uma fuga desesperada da protagonista diante do familiar enfermo sem precisar dos comentários de Seligman ou da interferência excessiva das metáforas. É aqui que se concretiza a solidão de Joe - que proclama não sentir nada após o sexo, o que faz jus a fala do início quando afirma que a diferença entre ela e as outras pessoas é que “eu sempre demandei mais do pôr-do-sol”. Ainda que incompleto e, na maioria das vezes, desastroso ao se expressar, Ninfomaníaca repousa na entrega de Charlotte Gainsbourg para oferecer uma leitura positiva.
É uma experiência instável, até mesmo cômica, mas nunca entediante. Dá para fingir que von Trier resolveu tirar um sarro de si mesmo, mas seria exigir do dinamarquês um senso de humor que se reflete mais involuntária do que voluntariamente neste filme.