(Na foto acima, uma imagem do curta "A Cicatriz é a Flor", de Evaldo Mocarzel)
Não é nenhuma novidade afirmar que as novas tecnologias digitais estão promovendo uma revolução na linguagem do cinema nas últimas décadas. Como arte industrial, o cinema não pode prescindir de inovações tecnológicas para respaldar as suas experimentações estéticas. Foi assim com o advento do som, com o surgimento das câmeras Arriflex 16mm e dos gravadores Nagra, que deflagraram movimentos seminais como o cinéma vérité, o cinema direto, a nouvelle vague, o cinema novo e o chamado “cinema marginal”; e nas últimas décadas com as novas tecnologias digitais, que estão por trás dos experimentos do Dogma 95 e de praticamente todos os arroubos de ousadia criativa no cinema contemporâneo.
São inúmeros os exemplos: das perseguições em baixíssimas luzes conduzidas por corpos com textura de vultos em um projeto hollywoodiano como Collateral (2004), de Michael Mann, às estratégias brechtianas de Lars Von Trier em Dogville (2003), que seria um tedioso “teatro filmado” se não fosse a leveza minimalista dessas câmeras diminutas, algumas pilotadas pelo próprio diretor, possibilitando uma proximidade inusitada com os corpos e, sobretudo, com os rostos do elenco, com especial destaque, logicamente, para a protagonista vivida por Nicole Kidman.
Um outro exemplo marcante é Império dos Sonhos (2006), de David Lynch, em que a sensibilidade do digital para as baixas luzes é levada ao limite do breu, sempre de uma forma muito plástica, trazendo ainda sequências em que rostos são iluminados por uma chama de isqueiro, metáfora visual de um corpo que fenece e de uma vida que se apaga em seus últimos estertores. No entanto, o exemplo mais emblemático do impacto das novas tecnologias digitais na arte cinematográfica nos últimos anos é Arca Russa (2002), de Aleksandr Sokúrov, um plano-sequência de 95 minutos, com milhares de figurantes, que percorre o Museu Hermitage, em São Petersburgo, dos porões aos sótãos, com toda certeza uma das maiores e mais belas mise-en-scènes da História do Cinema. Trata-se de uma espécie de ensaio fílmico sobre a alma russa, ou melhor, sobre três séculos da história do país, sempre oscilando entre as monarquias europeias e as tiranias asiáticas. Sokúrov é tão monarquista que simplesmente aboliu sem piedade um dos momentos mais importantes da trajetória da arte cinematográfica, a chamada “escola soviética”, que teve o seu apogeu nos anos 1920. Arca Russa, como já foi dito, passeia por três séculos da história russa e para justamente no último baile da dinastia dos Romanov, pouco antes da Revolução de 1917, que depois daria respaldo político e financeiro às experimentações geniais na montagem de nomes como Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, entre muitos outros, cruelmente massacrados a partir dos anos 1930 porque seus experimentos cinematográficos foram estigmatizados como “formalistas” após as imposições estéticas capitaneadas por Josef Stalin e que ficaram conhecidas como “realismo socialista”.
Arca Russa é de algum modo um remake monarquista de Outubro (1927), de Eisenstein, na verdade uma dilatação de uma sequência desse clássico dos anos 1920 em que um soldado invade um dos porões do palácio com 1100 quartos (aos 76 minutos e 41 segundos) e então ele se torna a câmera subjetiva de Arca Russa, um corpo que subitamente desperta meio confuso num dos porões do Hermitage e logo é conduzido pelo museu por um diplomata europeu, que forma com esse corpo oculto, com essa câmera subjetiva de 95 minutos, como já foi dito, sem cortes ou dissimulações de cortes, uma espécie de duplo em busca de uma alma russa ao longo dos séculos que antecederam o legado soviético.
Alfred Hitchcock bem que tentou fazer um filme sem cortes em Festim Diabólico (1948), mas as interrupções eram inevitáveis quando terminavam os rolos de negativos. Com a ajuda do diretor de fotografia Tilman Büttner, que também operou a stedicam de 95 minutos, Sokúrov criou uma traquitana digital capaz de armazenar em tempo real toda a memória de som e imagem desse imenso e histórico plano-sequência.
É interessante comentar que as novas tecnologias digitais também abriram uma paleta de possibilidades para uma das reflexões mais seminais de Sergei Eisenstein: o conceito de “monólogo interior”. Ao repensar nos anos 1930 o close-up inventado por David Wark Griffith em meio aos novos caminhos descortinados pelo cinema sonoro, ainda buscando uma assumida inspiração na narrativa com cadência de fluxo de consciência do romance Ulisses, de James Joyce, Eisenstein começou a pesquisar e a experimentar uma linguagem cinematográfica com textura de pensamentos.
Escreveu o cineasta letão, nascido em Riga, em A Forma do Filme: “Porque apenas o cinema sonoro é capaz de reconstruir todas as fases e todas as especificidades do curso do pensamento. Que maravilhosos esboços eram aqueles roteiros de montagem! Como o pensamento, eles se realizariam algumas vezes através de imagens visuais. Com som. Sincronizado ou não sincronizado. Depois, como sons. Sem forma. Ou através de imagens sonoras: sons objetivamente representativos... Então, de repente, palavras definidas, intelectualmente formuladas – tão ‘intelectuais’ e desapaixonadas como palavras pronunciadas. Através de uma tela preta, uma impetuosa visualidade sem imagem. Então, num discurso apaixonado e desconectado. Nada além de nomes. Ou nada além de verbos. Então, imperfeições. Com zigue-zagues de formas sem objetivo, deslizando junto em sincronia. Depois, uma precipitação de imagens visuais, sobre silêncio total. Em seguida, ligadas a sons polifônicos. Depois, imagens polifônicas. E aí, ambas ao mesmo tempo. Ora interpoladas no curso exterior da ação, ora interpolando elemento da ação externa no monólogo interior. Como que apresentando dentro de personagens o jogo interior, o conflito de dúvidas, as explosões de paixão, a voz da razão, rapidamente ou em câmera lenta, marcando os ritmos diferenciados de um e outro e, ao mesmo tempo, contrastando com quase total falta de ação externa: um febril debate interior através da máscara petrificada do rosto. Como é fascinante ouvir o rumor do próprio pensamento, particularmente num estado de excitação, para perceber a si mesmo, olhando e ouvindo a sua mente. Como você fala ‘para si mesmo’, tão diferente de ‘para fora de si mesmo’. A sintaxe do discurso interior, distintamente da do discurso exterior. As trêmulas palavras interiores que correspondem às imagens visuais. Contrastes com circunstâncias externas. Como agem reciprocamente... Ouvir e estudar, para entender leis estruturais e reuni-las numa construção de monólogo interior sobre a tensão extrema do esforço da trágica reexperiência. Como é fascinante! E que campo para a invenção criativa e a observação. E como se torna óbvio que o material do cinema sonoro não é o diálogo. O verdadeiro material do cinema sonoro é, evidentemente, o monólogo. (...) Porque a forma da montagem, como estrutura, é uma reconstrução das leis do processo de pensamento. Aqui a particularidade de tratamento, fertilizada por um novo e não por um anterior método formal, abandona seus limites e generaliza, num grau teórico novo e, em princípio, a teoria da montagem como um todo. (Porém, isto de modo algum implica que o processo de pensamento como uma forma de montagem deva necessariamente ter o processo de pensamento como seu sujeito!).
Em tempos digitais, a construção desses “monólogos interiores” se tornou não apenas cada vez mais possível, mas com textura e cadência de sinapses. Um exemplo recente é o documentário Jards (2012), de Eryk Rocha, em que somos conduzidos pelos labirintos do processo de criação do músico Jards Macalé, com texturizações de som e imagem inusitadas, desconcertantes e sempre muito plásticas, graças às novas tecnologias digitais no que diz respeito à captação de planos e de paisagens sonoras, mas também à montagem, color grading, edição de som, mixagem e todas as possibilidades no processo de finalização que temos hoje ao nosso dispor.
O minimalismo e a leveza do cinema digital nos permitem não apenas filmar o corpo com hiper-planos-detalhe antes complicadíssimos e até mesmo impossíveis com captações em película, mas também imprimir na própria imagem uma miríade de movimentos sutis e muito delicados do corpo de quem filma e do corpo de quem está diante da câmera. Com essas máquinas e traquitanas cada vez mais diminutas o corpo vira uma espécie de “paisagem epidérmica” antes inexpugnável para equipamentos mais pesados. Quem tem experiência com filmagem sabe das dificuldades de foco com lentes macro. O mundo digital trouxe lentes de aproximação com foco automático que podem até mesmo criar uma espécie de batimento respiratório no foco e na falta do mesmo, com uma estranha cadência que humaniza e personifica o plano com um arquejar que pode tornar a imagem ofegante, apenas um exemplo, entre outras possibilidades. Mais: o cinema digital nos permite até mesmo transitar (ou pelo menos plasmar) pelas estruturas de sinapses do nosso próprio pensamento, volto a enfatizar.
O digital não é apenas um oráculo artístico que está descortinando novos caminhos linguísticos para o cinema e para a criação contemporânea, de maneira geral. Trata-se, como bem sabemos, de uma revolução de costumes no mundo imagético e globalizado em que vivemos. No universo do documentário, as novas tecnologias digitais tiraram o poder do discurso cinematográfico das mãos dos realizadores de classe média e das elites, bem-intencionados ou não, e os tradicionais “personagens sociais” dos filmes de décadas passadas hoje se filmam e estão fazendo uma espécie de autoetnografia das próprias comunidades, das próprias militâncias, dos próprios corpos.
O mundo digital vem descortinando novas possibilidades para nos ajudar a frequentar um dos mistérios mais instigantes e paradoxais da linguagem cinematográfica: como sugerir o interior dos nossos corpos, os cantinhos mais recônditos da nossa alma, da nossa psique, dos nossos pensamentos; como sugerir o invisível numa arte tão explicitamente visual como o cinema? Cineastas como o mestre francês Robert Bresson e o ensaísta e também diretor Jean-Louis Comolli sempre viveram inquietações artísticas e filosóficas diante desse paradoxo da arte cinematográfica.
No livro Bresson – Ou o Ato Puro das Metamorfoses, um dos mais belos e profundos estudos sobre a obra e o pensamento do mestre francês, diga-se de passagem, apesar do seu título escalafobético, o crítico Jean Sémolué resgata um depoimento de Bresson ao jornalista e crítico Jean Quéval em 1946: “É o interior que comanda. Sei que isso pode parecer paradoxal numa arte que é toda exterior. Mas vi filmes em que todo mundo corre e que são lentos. Outros em que os personagens não se agitam e que são rápidos. Constatei que o ritmo das imagens não tem o poder de corrigir toda lentidão interior. Só os nós que atam e desatam no interior dos personagens conferem ao filme seu movimento, seu verdadeiro movimento. É esse movimento que eu me esforço a tornar aparente por alguma coisa ou alguma combinação de coisas – que não seja só um diálogo”.
No artigo Luz Fulgurante de um Astro Morto, que faz parte da coletânea Ver e Poder, um livro seminal sobre as especificidades da linguagem do cinema, Jean-Louis Comolli escreve o seguinte: “(...) O que os cineastas-operadores – Leacock, Rouch, Brault... –, que lançaram o cinema direto depois de Flaherty, permitiram redescobrir? Que a questão não é o quadro, mas o corpo. Colocar o corpo do sujeito que filma na imagem, de outra maneira, mas tanto quanto o corpo do sujeito filmado. (...) Com o cinema direto, temos o próprio corpo do operador que carrega a câmera, temos essa pressão física constante no ato de filmar, uma representação, um sopro, uma presença. Isso significa dizer que, por essa física dos corpos, a atenção se dirige cada vez mais para a relação constituída na filmagem. De cada lado da máquina há alguma coisa do corpo. (...) Filmar o exterior para descobrir o interior, filmar o embrulho sensível dos seres e das coisas, mas para adivinhar, desmascarar ou desvelar sua parte secreta, escondida, maldita. Inscrever o visível como palimpsesto que encerra o invisível e, ao mesmo tempo, dá acesso a ele. O direto, com essa dança de corpos com a máquina, desenvolve uma intimidade rítmica que nunca fora acessível, a não ser por meio da imaginação, da poesia ou do romance”.
A recriação desse fascinante paradoxo da linguagem do cinema (repito: o invisível sugerido por uma arte tão explicitamente visual) passa obrigatoriamente pelo SOM. Duas frases extraídas do livro Notas sobre o Cinematógrafo, de Robert Bresson: “O olho (em geral) superficial, o ouvido profundo e inventivo. O apito de uma locomotiva imprime em nós a visão de toda uma estação de trem.”; “Um grito, um ruído. Sua ressonância nos faz adivinhar uma casa, uma floresta, uma planície, uma montanha. Seu eco nos indica as distâncias”.
Um outro caminho para se tentar frequentar esse mistério paradoxal da arte cinematográfica, para se tentar construir paisagens interiores dos personagens, cenários subjetivos, profundos, sensoriais e sinestésicos que guardam os múltiplos estados do ser da natureza humana, passa necessariamente por uma certa negação da imagem, ou melhor, por estratégias de texturização da imagem que têm por objetivo fustigá-la, desfocá-la, para então trazer à tona do filme essas paisagens intimistas e anímicas, esses cenários subcutâneos que revelam, ou melhor, sugerem na linguagem audiovisual as nossas dores e alegrias mais profundas. E as novas tecnologias digitais são pródigas e sempre muito generosas com relação a essas estratégias de texturizar a imagem, desfocá-la, obscurecê-la, eclipsá-la até o limite do diafragma da câmera diante do quase breu nas baixíssimas luzes. Mais: o digital traz consigo possibilidades sempre muito plásticas de se “shutterizar” a imagem, ou seja, alterar de uma forma muito especial o obturador da câmera para criar rastros de cores no quadro e belíssimas granulações, entre outros caminhos possíveis que, a cada dia que passa, são multiplicados por uma profusão de aplicativos que não param de ser criados, transformando todo tipo de precariedade até mesmo doméstica em linguagens exuberantes, logicamente desde que irradiando coesão e organicidade com o conceito e a dramaturgia do filme.
No cinema contemporâneo, volto a enfatizar, digital também é sinônimo de sensorialidade audiovisual, de sinestesia fílmica, sobretudo nesses tempos em que as pessoas vivem em suas rotinas atracadas com próteses tecnológicas como seus inseparáveis smartphones, que viraram uma espécie de alter-ego, um vício, uma obsessão em estar plugado na web com suas redes sociais. Nos dias de hoje, o corpo é tecnológico, envolto numa miríade de virtualidades, como foi vaticinado por David Cronenberg em eXistenZ (1999). E a linguagem digital desponta como um caminho possível para se tentar sugerir no cinema essa obsessão contemporânea também marcada por uma pantagruélica fome documental.
O cinema contemporâneo vive uma espécie de revival do neorrealismo italiano, com especial apreço, até certo ponto obsessivo, pela utilização do corpo de atores e atrizes não profissionais nos filmes, como uma forma de “verdade” documental nas imagens e sons ficcionais que estão sendo criados. Há uma tendência muito forte no cinema brasileiro e mundial em se tentar hibridizar, sobretudo embaralhar, as já tão difusas fronteiras que separam a ficção do documentário, como se a ficção propriamente dita, e não a “ficção” de representação do “real” que tanto marca a linguagem do filme documentário; como se uma ficção livre, tresloucada e surreal, liberta de muletas documentais, não fosse uma forma mais profunda de se enveredar pelos labirintos polifônicos e multifacetados do nosso corpo, da nossa psique mais profunda, também da própria imponderabilidade do “real”.
Esse embaralhamento híbrido do ficcional com o documental, e vice-versa, que por vezes me parece uma imposição estética, de tão onipresente e hegemônico, para deleite da crítica especializada, não é, contudo, um mero revival museográfico do neorrealismo italiano, descortinando, na verdade, uma prática que talvez esteja saciando essa fome contemporânea por “verdades” históricas, heterotópicas, subjetivamente circunscritas e explicitamente vivenciadas através do corpo de alguém em exercícios de autoficção.
A expressão autoficção teria sido utilizada pela primeira vez em 1977 pelo escritor Serge Doubrovsky no romance Fils e desde então vem sendo experimentada e analisada em ensaios como Est-il Je? – Roman autobiographique et autofiction e Autofiction – Une aventure du langage , ambos de Philippe Gasparini. No cinema contemporâneo, a autoficção é uma espécie de paroxismo dessa sofreguidão neorrealista que vem elaborando ficções híbridas com os corpos de personagens reais respaldados por um pano de fundo documental. Nos dias de hoje, a dramaturgia contemporânea, no cinema e também no teatro, ambiciona se aprofundar mais e mais nas camadas ficcionais que matizam as nossas vivências, dores, alegrias e lembranças. A percepção contemporânea do horizonte de expectativas que envolve o cinema, o teatro, as outras artes e a mídia, de modo geral, está por demais focada nessa ficcionalização híbrida, estruturada sobre bases documentais, que por vezes pode parecer inócua em projetos que não revelam genuinidade em suas experimentações, mas sim complacência e até mesmo arrivismo com essa tendência que virou uma espécie de modismo na última década. A virtualidade da sociedade do espetáculo, exacerbada pelas novas tecnologias digitais, em que todos se fotografam, se filmam, retrabalham as próprias imagens com diferentes texturas com a facilidade dos aplicativos dos celulares e depois veiculam nas redes sociais, também ajuda a explicar essa avidez contemporânea por histórias que hibridizam deliberadamente o ficcional com o documental, e vice-versa.
Em defesa apaixonada do filme documentário, capaz de minar a sociedade do espetáculo através de fraturas, brechas, pausas e silêncios, provocando assim uma irrupção da imponderabilidade do “real” em meio a toda essa alienação publicitária e consumista que infesta a mídia, de maneira geral, Jean-Louis Comolli escreve o seguinte no artigo Sob o Risco do Real: “No momento em que os grandes grupos internacionais se assenhoram, por todos os lados, do controle da produção, da distribuição, da difusão audiovisual, em que triunfam os modelos, os programas, os automatismos, os sistemas de vigilância e de previsão, em que o marketing, a publicidade, a propaganda impõem um novo magma – a informação-cultura-mercadoria –, parece-me digno de nota que o cinema documentário resista e se desenvolva. Vejo nessa conjunção um fato político. À programação e à precaução generalizadas, opõe-se o risco inerente ao empreendimento do documentário. Os atos, os projetos, as obras, as construções não se deixam reduzir mais ao cálculo de máquinas humanas do que aos desejos dos homens mecanizados. A sociedade do espetáculo triunfa, mas uma parcela obscura do espetáculo mina o espetáculo generalizado. Chamemos essa parte de ‘a parte da arte’. Cabe a ela, hoje mais do que nunca, representar a estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em resumo, tudo o que a ficção à nossa volta nos esconde, escrupulosamente: que estamos no período posterior à destruição dos conjuntos fechados, que a cena é aberta, fendida, rompida, e é a esse preço que ela ainda pode pretender historicamente tudo o que neste mundo não é virtual”.
Além de explícitos matizes neorrealistas, a autoficção no cinema nesses tempos digitais também parece ter camadas das estratégias minimalistas de dirigir corpos num set de filmagem do antes citado Robert Bresson, para quem a sétima arte não era um espetáculo, mas uma escritura. Tentando fugir da influência teatral na criação cinematográfica, o mestre francês parou de dirigir atores e atrizes, e passou a trabalhar com modelos, como um pintor.
O processo de criação de Bresson, sublinhe-se, não tinha nada a ver com a busca neorrealista por atores e atrizes não profissionais, que tem parentesco próximo com o conceito de “tipagem” utilizado por Sergei Eisenstein, ou seja, a escolha de pessoas que tenham o physique du rôle dos personagens do filme. Eisenstein depois ampliou o conceito de tipagem, referindo-se a uma interferência mínima do cineasta na condução do próprio filme, como se isso fosse possível. Diz ele no ensaio Do Teatro ao Cinema, que também faz parte da coletânea de artigos A Forma do Filme “Quero salientar que ‘tipagem’ deve ser entendida de modo mais amplo e não reduzida ao uso de um rosto sem maquiagem, ou à utilização de tipos ‘naturalmente expressivos’ em lugar de atores. Em minha opinião, ‘tipagem’ significa uma abordagem específica dos eventos abrangidos pelo conteúdo do filme. Aqui também o método é o do mínimo de interferência no curso natural e nas combinações dos eventos. Conceitualmente, Outubro é pura ‘tipagem’”.
Mas, digressões à parte, voltando ao pensamento de Robert Bresson, o cineasta francês, na verdade, queria os atos falhos e os gestos involuntários dos corpos de seus modelos, além da “fosforescência” em seus olhares, sempre mantidos em estado de contenção e reserva, sem jamais enveredar por qualquer tipo de interpretação teatral ou maneirista. Bresson promovia leituras brancas dos roteiros, acelerava e ralentava o ritmo das falas e dos diálogos, como uma partitura, de forma desdramatizada, procurando afastar todo e qualquer tipo de atuação calcada em técnicas teatrais. Orientava seus modelos a andar de um lado para o outro, repetidas e incansáveis vezes, para que não pensassem no que estavam fazendo, para que fossem guiados pela intuição, jamais por um pensamento consciente elaborado; para que todos simplesmente fossem eles mesmos no set de filmagem. E, subitamente, um ato falho, um gesto involuntário, uma palavra com coloratura anímica, uma emanação no olhar que é pura fosforescência dos mistérios que habitam nosso corpo, nosso inconsciente, sobretudo o acaso, o inesperado que nos invade, que nos transpassa, que irrompe do fundo de nossa alma, e aí então Bresson se dava por satisfeito, pois o “real” para ele era justamente esse automatismo e essa imponderabilidade dos nossos gestos mais involuntários. É interessante comentar que o mestre francês jamais fez um filme documentário, mas buscava incessantemente uma irrupção epifânica do “real” na ficção propriamente dita, ou melhor, na arquitetura do inesperado que elaborava para os corpos de seus modelos. Revelação, minimalismo e criação por subtração são características sempre muito presentes nos filmes deliberadamente desdramatizados de Robert Bresson.
Nesses tempos digitais, há uma camada bressoniana na construção autoficcional contemporânea, como já foi dito. No entanto, essa hibridização do documentário com a ficção propriamente dita, e vice-versa, não ambiciona apenas encontrar pessoas reais, ou melhor, modelos, com semelhança moral com os personagens ficcionais, à maneira do mestre francês. A autoficção é um passo além, talvez em outra direção: o corpo do personagem real está no centro da cena, e não a serviço de uma ficção estrangeira ao seu mundo. A dramaturgia é criada especialmente para que ele atue sendo ele mesmo. Suas histórias de vida, dores, alegrias, vivências, cotidiano, enfim, tudo isso acaba sendo o ponto de partida e o fio condutor para que a ficcionalização possa se hibridizar com o documental, criando assim esse embaralhamento de fronteiras reais e inventadas que tanto marca a criação artística nos dias de hoje, conduzida por uma forma de casting que poderia ser batizada de “tipagem autoficcional”. Close-up (1990), de Abbas Kiarostami, No Quarto de Vanda (2000), de Pedro Costa, Entre Os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, FilmeFobia (2008), de Kiko Goifman, O Céu sobre os Ombros (2010), de Sérgio Borges, e Girimunho (2011), de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, são alguns dos inúmeros títulos que comprovam essa forte tendência do cinema brasileiro e mundial nas últimas décadas.
---- Evaldo Mocarzel é cineasta, dramaturgo e mestrando da Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da ECA/USP