Nazif é um homem comum: trabalhador, sustenta sua família, incluindo a mulher e duas filhas. Sai de tarde para cortar lenha, raspa o gelo do carro e procura ferro-velho abandonado para catar e vender – a baixíssimo custo. O protagonista do novo filme do bósnio Danis Tanovic habita uma história tipicamente neorrealista, com homens sofrendo na pele os problemas econômicos do país. E o diretor reconhece isso a todo o momento, realizando um drama muito próximo da realidade social da Bósnia atual.
A estrutura do roteiro se concentra na rotina de Nazif e da esposa, Senada, para introduzir a humilde vida do homem, sempre preocupado em conseguir arranjar o dinheiro necessário para passar o mês. O desenvolvimento se dá com poucos diálogos, observando os personagens pacientemente, assim como o ambiente onde vivem, com atuações marcantes de todos da família. Tanovic não se preocupa em estabelecer uma mise-en-scène complexa, compondo situações naturalistas, eficientes por provocar intimidade do espectador com os habitantes da aldeia. A câmera na mão auxilia nessa intimidade, criando momentos claustrofóbicos que a montagem ressalta, com cortes abruptos (como do carro ruim para o cano de descarga). E com essa iniciativa, Tanovic concebe momentos poderosos que soam tão espontâneos quanto simbólicos, tal como a montanha de lixo.
Quando Senada sofre com uma dor no abdômen Nazif tem que levá-la ao hospital. É aí que o filme tem seu ponto de ruptura: a secretária do hospital nega atendimento a Senada (que está com sérios riscos de aborto) e este momento-chave leva o longa a discutir o papel do governo na qualidade de vida do cidadão – como no cinema neorrealista. Nazif implora, em vão, porque sabe não estar em um ambiente propício à qualidade de vida. Em certo momento, ele diz que “era melhor na Guerra”, o que denota um claro desespero em seu pensamento. O homem divaga sobre seu momento na guerra, de como servira o país e havia sido esquecido. Não é uma fala apenas sobre o passado: é sobre o presente.
Essa discussão social é o que Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho tem de mais complexo. A família de Nazif vive numa aldeia onde todos se respeitam, cumprimentam-se, ajudam-se – o que é colocado como contraponto extremo à impessoalidade do sistema de saúde da Bósnia-Herzegovina. O hospital onde Senada é levada insiste na apresentação de dinheiro para tratar um caso de emergência, o que culmina no desespero de Nazif buscando recursos financeiros. O lixo, a degradação do ambiente gelado e as agruras do catador são expostos de maneira simples, por toques visuais (a já citada montanha de lixo) ou pelo próprio texto (“94 marcos”).
As usinas da cidade, visão corriqueira no drama, são a representação que Tanovic encontra para comentar a frieza da metrópole, um lugar onde o protagonista fica claramente desconfortável. Um lugar de dualidade temporal. É um parecer realista não só pelo fato de Nazif-personagem e Nazif-ator serem praticamente a mesma pessoa; é uma extensão da realidade do leste europeu filmada pelo bósnio desde seu Terra de Ninguém, e que, dolorosamente, soa politicamente estagnada – ainda que inversa – há mais de vinte anos, desde o fim da União Soviética.
Além da camada social há um belo estudo de personagem no filme. O desenvolvimento de personagens é bem realizado quando se sente a emoção de um homem que tenta fazer de tudo para tranquilizar sua família. Seja no ótimo plano dos quatro deixando o hospital, seja no semblante feliz de Nazif, o filme é tocante, cheio de vida. Uma influência, diga-se de passagem, dos heróis de Vittorio de Sica, que tem a árdua tarefa de viver em tempos difíceis, mas o superam com solidariedade e a pureza da humilde alegria de abraçar sua mulher.
E o filme é bem eficiente na exposição da solidariedade dos aldeões versus a impessoalidade da cidade moderna. Quando as barreiras do que é ficcional e do que é realidade são rompidas – ao surgir o nome dos “atores” – o filme adentra num contexto de confissão documental.
Visceralmente documental.