Numa resenha dedicada ao filme O Estopim durante o Festival do Rio (leia aqui), o crítico Nelson Hoineff se refere de passagem ao documentário À Queima Roupa, acusando os dois filmes de cometer “gravíssimo problema ético”. Esse problema consiste, segundo Hoineff, na utilização de cenas dramatizadas misturadas ao material de reportagem e aos depoimentos em ambos os filmes. Não vi O Estopim, portanto não posso me pronunciar sobre ele, mas a meu ver, no caso de À Queima Roupa, meu amigo Hoineff está completamente equivocado.
Em nenhum momento a diretora Theressa Jessouroun teve a intenção de enganar o espectador, fazendo com que ele confundisse o que é realidade filmada com o que é reencenação. Para começar, as cenas encenadas têm claras marcas distintivas, sendo rodadas em preto e branco, ao contrário de todo o restante do filme. Além disso, algumas cenas dramatizadas são filmadas com foco doce, outras desfocadas, outras ainda foram editadas em câmera lenta. Muitas delas contêm narração dos depoentes em voice over, que explica o que se vê, e todas contam com uma trilha musical. Lançando mão de uma frase do próprio Hoineff, ninguém com mais de dois neurônios confundiria o que é documental com o que é ficcional.
Empregar reconstruções dramáticas em documentários não é uma novidade, nem algo desconhecido na história do cinema. A clássica série americana The March of Time, lançada nos cinemas em 1935, utilizava sequências de atualidades mescladas com dramatizações. Além do seu grande sucesso junto ao público, a série recebeu um Oscar em 1937 por ter “revolucionado os jornais da tela”. Outros filmes de denúncia de violações aos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, para ficar apenas nesse país, também usaram abundantes reconstituições dramáticas, uma vez que essas violações sempre ocorriam longe das câmeras.
Assim como esses últimos exemplos, À Queima Roupa é um filme-denúncia. Ele não aspira à neutralidade. Para ir mais fundo na demonstração da brutalidade policial e não ficar apenas nas narrativas verbais, Theresa Jessouroun construiu magníficas dramatizações – reconstituições da memória dos que narram os crimes, como a própria polícia costuma chamá-las – que traduzem em imagens a emoção e o sofrimento das vítimas. Theresa acredita (e eu também) na veracidade dos depoimentos e os reforça usando o poder da linguagem audiovisual. Alguém duvida que esses depoimentos sejam verdadeiros? Alguém acha que os sentimentos dos que sofreram as violências policiais são simulados?
Nelson Hoineff acha, desafiando a lógica, que “a dramatização é uma opção desastrosa”, porque “tudo o que é verdadeiro, já vimos”. Acontece que não, não vimos tudo. Na verdade, não vimos quase nada, porque não era mesmo para ninguém ver, já que os policiais criminosos não são ingênuos. Seguindo o raciocínio de Hoineff, a narrativa das vítimas, como não foi filmada ao vivo, não tem direito ao estatuto da verdade. Se levado a sério, esse pensamento resulta no seguinte: nenhum negro foi seviciado nos Estados Unidos, muitos moradores das comunidades do Rio foram mortos mas não sabemos como, ninguém foi fuzilado pela polícia à queima roupa, os depoimentos dos poucos que conseguiram sobreviver milagrosamente às chacinas são discutíveis.
A prevalecer esse pensamento, os filmes-denúncia estão definitivamente condenados. Bom para os criminosos, bom para os que fazem a sua própria lei. E ruim para os cineastas que se servem dos documentários para lutar contra a violência e a injustiça.
ALBERTO FLAKSMAN é produtor e professor de cinema