Após realizar quatro documentários focados na dança, Evaldo Mocarzel resumiu suas reflexões e experiências neste ensaio. O texto foi apresentado numa disciplina sobre cinema e dança ministrada pelo professor Cristian Borges no curso de pós-graduação da ECA-USP.
Como promover um casamento artístico do cinema com a dança, e vice-versa, sem que uma linguagem seja subserviente à outra? Como conciliar duas artes tão distintas, por vezes antípodas, embora tenham afinidades linguísticas, como, por exemplo, a possibilidade de prescindir de palavras na construção de suas estruturas narrativas?
A dança é uma arte primitiva e talvez por isso sempre tão contemporânea, como a pintura, que nos remete a períodos ancestrais da condição humana, a assombros primatas que antecederam a própria linguagem verbal. Acredito que a humanidade dançou antes mesmo de se expressar através de rudimentos de palavras. Ao lado da pintura, a dança é uma espécie de cenário originário do pensamento humano.
O cinema, por sua vez, é uma arte recente, com cerca de 119 anos em sua trajetória linguística. Arte do tempo por excelência e ontologicamente realista em suas especificidades mais expressivas, como diria o crítico francês André Bazin, o cinema foi uma espécie de vaticínio do mundo globalizado e imagético em que vivemos, despontando no percurso da humanidade em momento histórico no qual surgem as investigações psicanalíticas dos mistérios que envolvem a nossa psique mais profunda.
A chamada sétima arte é uma linguagem metonímica, na qual buscamos a universalidade do todo em um encadeamento de fragmentos, reunidos e engendrados com relações de complementaridade ou até mesmo de atrito, colisões de planos, como queria um cineasta como Sergei Eisenstein.
Retomo a pergunta: como conciliar em um projeto fílmico duas artes com tantas especificidades linguísticas tão conflitantes, por vezes tão antagônicas?
A questão da “presença” é um ponto polêmico que já despertou reflexões apaixonadas de pensadores da linguagem cinematográfica como o já citado André Bazin e o ensaísta e também cineasta Jean-Louis Comolli.
A dança, assim como as outras artes cênicas, tem uma potência presencial evidente, ao passo que, no cinema, esse tema é mais difuso, menos explícito e talvez até mesmo mais problemático para ser analisado.
Fugazes e fugidios como a própria vida, a dança, o teatro e as demais artes cênicas irradiam seus veios de atemporalidade, de eternidade, na urgência da mais absoluta efemeridade, enquanto que, no cinema, a textura temporal entrelaça uma outra cadência: a sétima arte flagra e eterniza momentos que jamais vão se repetir, descortinando-se linguisticamente como um cemitério de pessoas eternamente vivas, com seus vestígios de movimentos sendo repetidos ao infinito, desde que os suportes de captação sejam devidamente preservados.
Mas como levar a força presencial da dança para o ritmo fragmentário e para o batimento de atemporalidade da arte cinematográfica? Trata-se de uma inquietação que sempre moveu as minhas incursões como cineasta no universo gestual dessa arte do corpo.
No texto Teatro e Cinema, que faz parte da coletânea O Que É o Cinema?, lançada recentemente no Brasil, André Bazin analisa a questão da presença nas duas linguagens que dão nome ao ensaio. Suas reflexões podem apontar caminhos para quem se propõe a filmar a atmosfera evanescente do universo da dança:
“O cinema realiza o estranho paradoxo de se moldar sobre o tempo do objeto e de ganhar, ainda por cima, a marca da sua duração” , ressalta o crítico francês.
Bazin focaliza no mesmo artigo as possibilidades do olhar da câmera, que cria proximidades com suas lentes de aumento através da fragmentação da decupagem, potencializando os vestígios da presença captados nos planos e logicamente a fruição do espectador, talvez a grande força presencial da arte cinematográfica:
“É verdade que, no teatro, Molière pode agonizar no palco e que temos o privilégio de viver no tempo biográfico do ator; assistimos, entretanto, no filme Sangue de Toureiro [Brindis a Manolete, de Florián Rey, 1948], à morte autêntica do célebre toureiro, e, se a nossa emoção não é tão forte quanto se estivéssemos na arena naquele instante histórico, ela é, no entanto, da mesma natureza. Não reganhamos o que perdemos de testemunho direto graças à aproximação artificial que o aumento da câmera permite? Tudo se passa como se, no parâmetro Tempo-Espaço que define a presença, o cinema só nos restituísse efetivamente uma duração enfraquecida, diminuída, mas não reduzida a zero, enquanto a multiplicação do fator espacial restabeleceria o equilíbrio da equação psicológica.
Em todo caso, não poderíamos opor cinema e teatro somente com a noção de presença, sem explicar de antemão o que subsiste dela na tela e o que filósofos e estetas ainda não esclareceram. Não faremos isso aqui, pois até mesmo na compreensão clássica que lhe dá, juntamente com outros, Henri Gouhier, não nos parece que a ‘presença’ contenha, em última análise, a essência decisiva do teatro” .
No ensaio Viagem Documentária aos Redutores de Cabeça, que faz parte da coletânea Ver e Poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário, Jean-Louis Comolli aprofunda a reflexão de André Bazin sobre o tema da presença no cinema e no teatro, sempre defendendo a linguagem cinematográfica como arte do tempo, em que presença e ausência são uma espécie de duplo em permanente movimento pendular:
“Os teóricos do teatro (por exemplo, Henri Gouhier) defendiam este contra o cinema em nome da ‘presença real’, co-presença do ator e do espectador, da cena e da sala. Acontece que não apenas a cena do cinema – da filmagem – é co-presença dos corpos, dos olhares (atores, espectadores) e das máquinas de gravação, mas o que se chama de mise-en-scène no cinema vem, em última instância, trabalhar essa presença primeira já como ausência por vir: na tela, na verdade, tudo o que esteve presente para ser filmado só poderá ser representado, apresentado como ausência de um presente passado. Isso significa que o trabalho da cena cinematográfica é propriamente o de prefigurar o momento da ausência com o objetivo de intensificar através dela (essa ausência) o momento da presença, de intensificar, em suma, a presença dos corpos segundo a promessa de sua próxima ausência. À imagem do corpo do autor ausente, mas representado, responde e, talvez secretamente, corresponde o corpo real do espectador; presença, é certo, mas como que ausente de si mesma por ser projetada em direção a uma tela. No cinema, em todo caso, presença e ausência estão em um torniquete ”.
Em Ver e Poder, Comolli afirma e reitera em diversos ensaios que as potencialidades linguísticas do cinema estão centradas em suas especificidades como arte do tempo:
“(...) o cinema não filma os seres ou as coisas como tais (mesmo que seja reconfortante acreditar nisso), mas ele filma suas relações com o tempo – as relações dos seres e coisas com o tempo da tomada e, consequentemente, com o tempo da tela mental. O cinema torna sensível, perceptível e, às vezes, diretamente visível o que não se vê: a passagem do tempo nos rostos e nos corpos” .
Como realizador de documentários sobre o universo da dança, sempre tive certa desconfiança das atmosferas maneiristas e por vezes inócuas do que se convencionou chamar de “vídeo-dança”, conceito na minha visão amorfo, pouco rigoroso e que, de modo geral, pouco aprofunda a linguagem gestual do corpo no mundo fragmentário da arte cinematográfica.
A questão da presença, da potência presencial da dança, continua sendo uma inquietação constante na minha atuação como realizador. Mas como levar a força dessa presença para o cinema? Como potencializá-la com as possibilidades das especificidades da linguagem audiovisual? Ampliar a exuberância dos gestos com uma decupagem extremamente fragmentada? E depois reorganizar tudo no processo de montagem, até mesmo repetindo frases coreográficas em uma miríade de movimentos captados sob diferentes pontos de vista? Trata-se de uma percepção impensável para o olhar humano na plateia de um edifício teatral, mas sempre possível através das lentes de uma câmera (ou várias) e após a reconstrução do estilhaçamento dos gestos na ilha de edição.
A leveza e o minimalismo das novas tecnologias digitais trouxeram novas possibilidades de se filmar o corpo, fragmentá-lo, perspectivá-lo sob incontáveis pontos de vista, imprimindo na imagem o ritmo, a cadência, o batimento e a respiração de quem dança, sobretudo com a câmera acoplada ao corpo, desnudando-o como uma imensa paisagem construída com hiper-planos-detalhe.
Essas são algumas das possibilidades linguísticas, documentárias, narrativas, que o digital vem ofertando para quem se aventura a filmar o universo da dança, além da criação de novas cadências de tempo, repetições, fragmentação e reorganização coreográfica da “presença” de bailarinas e de bailarinos no processo de montagem. Mais: ainda a construção de rastros de movimento dentro da própria imagem, que parecem materializar, plasmar a própria passagem do tempo nos esforços e alegrias do corpo de quem dança, como talvez diria Jean-Louis Comolli.
Um trecho do texto Da pose fotográfica à passagem cinematográfica: fundamentos da imagem fotossensível, de Cristian Borges, professor do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, de algum modo traduz a minha sofreguidão documentária nos quatro filmes que realizei sobre a dança, sempre com o mesmo ponto de partida: promover um casamento das duas linguagens sem que uma seja subserviente à outra:
“Tanto duas fotografias de Eugène Atget, Au lion d’or e Rue Mouffetard (ambas de cerca de 1902), quanto uma fotografia recente de Gui Mohallem, intitulada Ensaio para a loucura (2009), captada com a técnica do pin-hole, ilustram bem essa espécie de esmagamento temporal provocado pela condensação do movimento numa única imagem estática, que distorce as figuras, guardando delas apenas traços, vestígios de formas algo fantasmagóricas, fluidas, esfumaçantes, que insistem em escapar – da imagem e de seus observadores. Esse borrão que marca na fotografia a manifestação do movimento – extrapolando seu caráter essencialmente estático – parece clamar por mais espaço, por mais tempo para se distender. Mas seria preciso esperar que a velocidade de captação do aparelho acompanhasse minimamente a rapidez do movimento que transcorre diante dele, o que só ocorreria por volta de 1880, com o advento das cronofotografias de Marey e Muybridge” .
As novas tecnologias digitais guardam em seus pixels a exuberância de rastros e riscos que podem decupar, plasmar, desenhar no quadro a sinuosidade dos movimentos com o simples dispositivo do chamado shutter negativo, ou seja, com o obturador da câmera que pode ser ralentado para a captação de imagens até mesmo em situações de baixíssima luz, uma espécie de “hora mágica” do digital que vem possibilitando plasticidades de movimentos comparáveis aos exuberantes experimentos de Marey com esgrima e fumaça, entre muitos outros.
Talvez a grande afinidade linguística da dança com o cinema, e vice-versa, esteja ligada a essa emanação através da qual as duas artes podem dialogar em fina sintonia: o movimento. E a questão da presença, ou a dosagem de ausências e presenças, como destaca Comolli, não seja assim tão relevante na aproximação das duas linguagens que comungam na mesma paixão pelo movimento, embora espraiando-se em dimensões temporais completamente diferentes: a efemeridade fugidia e evanescente da dança e a “eternidade material” do cinema, como diria André Bazin.
Essa busca pelo movimento nas duas artes foi uma espécie de bússola que sempre me guiou como cineasta na documentação das companhias de dança.
O primeiro projeto que realizei foi São Paulo Companhia de Dança, documentário que estreou no Festival de Paulínia em 2010, foi lançado em circuito comercial em 2012 e vem sendo exibido em canais como Canal Brasil (em versão curta), Arte 1 e, em breve, Curta!.
O coletivo foi criado em janeiro de 2008 e, pouco tempo depois, fui visitar a sede do grupo que fica no segundo andar da Oficina Cultural Oswald de Andrade, no Bom Retiro, região central de São Paulo. Lá chegando, conheci as duas diretoras artísticas na época, Iracity Cardoso e Inês Bogéa, e expliquei a elas uma ideia de filme que me perseguia há anos: fazer um documentário sobre o processo de criação de uma companhia de dança sem nenhum tipo de entrevista (com um conceito de filmagem rigorosamente observacional), em que o espetáculo seria desconstruído na ilha de edição através da ação de tudo que havia sido experimentado no período de ensaios.
As portas do grupo foram generosamente abertas à minha documentação audiovisual, mas não havia verbas para a empreitada e, dentro de poucos dias, estava chegando o coreógrafo Alessio Silvestrin, que iria criar a primeira obra da São Paulo Companhia de Dança: Polígono, com música de Bach revisitada pelo grupo belga Het Collectief. Decidi encarar o desafio e fazer o filme no melhor estilo da chamada “guerrilha cinematográfica”, ou seja, com dinheiro do próprio bolso e muito entusiasmo.
Durante as trinta diárias, trabalhei com três diretores de fotografia: Fabiano Pierri, Milton Jesus e Alziro Barbosa. Mas como orientá-los? O que filmar? Como observar decupando uma nebulosa criação gestual, na qual todos ficam repetindo movimentos em busca de expressividades no próprio corpo, inicialmente sem um direcionamento claro do coreógrafo, que tenta traduzir em gestualidades as próprias inquietações artísticas, deixando-se levar por impulsos ainda muito embrionários que não são nítidos nem para ele mesmo? Um tremendo desafio para qualquer documentarista.
Nos primeiros dias de filmagem, optei por enquadrar pés, uma bateria de pés; depois braços e mãos, uma bateria de braços e mãos; em seguida as marcas dos movimentos nos rastros deixados pelo tempo no chão negro de linóleo das salas de ensaio; ainda reflexos de gestualidades distorcidas nas mais diferentes superfícies: das vidraças nas janelas arqueadas da bela arquitetura da Oficina Oswald de Andrade às imagens deformadas sobre uma tela de televisão que foi colocada na locação, passando por portas, espelhos, sombras, figuras em contraluz e até mesmo as barras de ferro que são utilizadas durante as aulas de balé clássico e dança moderna. Uma busca permanente por todo tipo de irrupção de movimento em todos os cantinhos das salas de ensaio, principalmente nos corpos das bailarinas e dos bailarinos.
Quando a coreografia começou a ser delineada com mais nitidez, a documentação audiovisual se concentrou em movimentos específicos que despontavam como uma espécie de estilhaçamento de eixos e pontos de apoio do corpo, uma característica marcante do estilo de Alessio Silvestrin, que foi influenciado por mestres como William Forsythe, com quem Alessio dançou quando atuava somente como bailarino.
Passamos um mês confinados em salas de ensaio e no palco do teatro em Caraguatatuba, no litoral paulista, onde aconteceu a estreia, sempre decupando pés, braços, mãos, todo tipo de movimento, agora emanando das frases coreográficas que estavam sendo criadas e depuradas por Alessio Silvestrin.
O conceito do documentário era o estilhaçamento dos movimentos para depois reorganizá-los no processo de montagem. A filmagem observacional foi extenuante e, ao final de cada dia, uma constatação: não há sacerdócio artístico mais árduo do que a dança, em que o corpo é, ao mesmo tempo, instrumento de trabalho e a própria obra, com ensaios de manhã à noite, sem contar as aulas, os aquecimentos, as sessões de pilates e os relaxamentos, o corpo sempre e sempre sendo trabalhado de forma exaustiva, algo inconcebível para quem não ama a dança com todas as suas forças.
No documentário, busquei essa árdua e dolorida atmosfera de trabalho; até mesmo uma certa “sujeira” que, de maneira geral, não faz parte dos mundos sublimes descortinados pela dança clássica. Saí em busca dessa “sujeira” e dessa “precariedade” que emanam do “real”, que tem fundo estourado e exibe pés de bailarinas com bolhas e feridas que não cicatrizam porque estão sempre em movimento, a cada novo dia de ensaio.
Além da documentação observacional do processo de criação da primeira coreografia da companhia, utilizei com os fotógrafos duas traquitanas capazes de levar a câmera para o corpo de quem dança, para a pele suarenta de quem labuta diariamente essa fascinante linguagem de gestos, ainda tentando imprimir movimentos na imagem, mas com a câmera estável e fixa no corpo das bailarinas e dos bailarinos.
Todo documentário envolve algum tipo de exercício de alteridade, ou seja, tentativas de ver o mundo através dos olhos do “outro”, mesmo nos chamados “documentários performáticos”, segundo definição do teórico norte-americano Bill Nichols, em que os realizadores são tema do próprio filme e acabam criando uma alteridade de si mesmos ao se colocarem na imagem, no som do filme ou em ambos.
Mas, digressões à parte, como é o ponto de vista de quem dança? O mundo gira, na maioria das vezes, com toda certeza, mas a câmera precisa estar fixa e colada ao corpo das bailarinas e dos bailarinos, detalhando movimentos, rastros de movimentos, ainda perspectivando gestos, uma miríade de pontos de vista a partir da expressividade do corpo. Nessas filmagens mais minimalistas, usamos um body-cam, uma espécie de colete no qual a câmera principal do documentário era acoplada e depois colocado no corpo de quem iria dançar. Já a segunda traquitana englobava uma microcâmera de segurança (do tipo que é usada em elevadores, por exemplo) que podia ser colocada em qualquer parte do corpo da bailarina ou do bailarino, o que criava para as imagens perspectivas incríveis e impensáveis para um olhar de fora, separado do corpo.
Com o body-cam, em determinados ângulos, com o monitor da câmera voltado para o rosto de quem dançava, um radical exercício de alteridade: a própria bailarina ou o próprio bailarino se filmavam, enquadravam a sala de ensaio, o palco, os próprios gestos, os desenhos e rastros das frases coreográficas que estavam dançando.
Com a segunda traquitana, a precariedade da textura vítrea e levemente esverdeada da microcâmera de segurança virou linguagem ao gerar momentos íntimos e muito sensoriais durante as filmagens e adquiriu organicidade na estrutura narrativa do documentário no processo de montagem. Um dos momentos mais inesquecíveis dessas filmagens com a segunda traquitana aconteceu quando uma bailarina sugeriu dançar com a câmera diminuta na palma da mão direita, o que criou raras e poéticas atmosferas graças à leveza e ao minimalismo das novas tecnologias digitais. Com essa segunda traquitana, uma rápida explicação técnica: como a microcâmera filma, mas não grava, pois não tem suporte de captação, nós criamos um segundo dispositivo na traquitana que era um vídeo-concha, com uma fita mini-dv, envolto em elástico, preso com velcro e também grudado ao corpo de quem dança/filma. O sinal de captação da diminuta câmera era então enviado para a fita mini-dv do vídeo-concha.
No processo de montagem, a permanente busca pelo casamento artístico da dança com o cinema, e vice-versa. O conceito da edição do material bruto foi engendrar o filme inteiro em falso raccord, ou seja, em falsa continuidade de movimento, como se tudo fosse uma única coreografia audiovisual: a frase coreográfica do espetáculo no palco em falso raccord com rastros desse mesmo trecho gestual no ensaio e, sempre com o mesmo conceito, os movimentos se desdobrando em miríades de gestualidades em falsa continuidade de movimento nas aulas de balé clássico, nas aulas de dança moderna, nas sessões de pilates, nos momentos de aquecimento e relaxamento, e depois novamente o ensaio e a volta à frase coreográfica no palco, esgarçada e decupada através das camadas gestuais que foram decantando nos movimentos mais expressivos do espetáculo.
O montador Marcelo Moraes, ao ler a carta que escrevi para ele com os conceitos para o rigoroso encadeamento dos movimentos no filme, desistiu três vezes do projeto, argumentando que não gostava de dança e que aquela concepção de montagem era inexequível. Depois de muita insistência, acabou aceitando o desafio. Minha preocupação constante era que os cortes cinematográficos fossem obrigatoriamente deflagrados por gestos, por fragmentos de gestos; as gestualidades alavancando os cortes e o filme como uma imensa coreografia audiovisual em falso raccord na maior parte do tempo, sempre que possível.
Criar essa íntima relação do corte com o gesto foi uma maneira de tentar fazer com que as duas artes dialogassem em harmonia, sem que uma tiranizasse a outra com o halo próprio de possibilidades linguísticas. Uma comunhão de duas artes entrelaçadas por cortes deflagrados por gestos.
Outro projeto cinematográfico que realizei focalizando o universo da dança foi Canteiro de Obras, experimento documentário-coreográfico em parceria com a coreógrafa Lia Rodrigues. Ela se preparava para começar o processo de criação do espetáculo Pororoca e havia alugado um galpão abandonado, imundo, coberto de fezes de pombos, na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. A companhia de dança dirigida por Lia Rodrigues estava se mudando para aquele espaço insalubre, que logicamente depois foi higienizado na medida do possível, e o objetivo era construir uma nova encenação a partir daquela residência artística na favela Nova Holanda.
Fui chamado para documentar essa chegada ao galpão no Complexo da Maré e também para interagir artisticamente com as bailarinas e os bailarinos da Lia Rodrigues Companhia de Danças durante cerca de dez dias. Realizamos o curta-metragem Canteiro de Obras que depois foi levado para a França pela coreógrafa para ser exibido em outro projeto que ela desenvolvia na periferia de Paris: Chantier.
Na companhia do fotógrafo Fabiano Pierri, filmamos os ensaios do grupo no SESC-Copacabana, reencenamos para a câmera trechos de outros trabalhos de Lia Rodrigues e depois documentamos a chegada ao galpão na favela Nova Holanda. Utilizamos as duas traquitanas com o body-cam e a microcâmera de segurança, e criamos dispositivos de documentação para as bailarinas e os bailarinos, que, inicialmente, investigaram o novo espaço, sempre com as câmeras acopladas aos seus corpos. Foi uma experimentação audiovisual extremamente sensorial, que destacou detalhes arquitetônicos do galpão, principalmente a “dramaturgia” da passagem do tempo em todos os lugares, cantinhos por vezes fétidos e pútridos em meio ao lixo e a objetos enferrujados que haviam sido despejados na locação. Depois, com a câmera principal do documentário no body-cam acoplado aos corpos dos integrantes da companhia, começamos a documentar a comunidade da Nova Holanda transitando pelas ruas estreitas da favela.
O Complexo da Maré é um conjunto de favelas imenso e bastante agressivo, onde o tráfico de drogas é colocado em prática a céu aberto nas esquinas das vielas com uma ostentação de armas raras vezes vista em outras quebradas do nosso País. Diferentes facções criminosas disputam o controle da região, por vezes separadas por ruas muito estreitas. Uma atmosfera explosiva que mostra a sua cara nas tardes de sábado, quando criminosos se digladiam à curta distância empunhando e ostentando armas e metralhadoras.
Lia Rodrigues havia conseguido acesso à região graças à atuação de uma organização não governamental (ONG) na Nova Holanda e o clima era sempre tenso quando as filmagens entravam no período da noite. No caminho de volta, várias regras do crime precisavam ser respeitadas, como a proibição do uso de cinto de segurança nos deslocamentos de carro (alguém podia ser metralhado ao desafivelá-lo, caso o movimento sugerisse o súbito disparo de uma arma) e a obrigatoriedade da luz interna acesa nos veículos durante a noite.
Durante a filmagem com as bailarinas e os bailarinos com as traquitanas acopladas aos seus corpos (o que sempre tornava a cena mais estranha e perigosa, principalmente por causa da câmera), ouvimos algumas ameaças tais como: “O J. R. autorizou a presença de vocês? Vocês sabem o que aconteceu com o jornalista Tim Lopes?”. Felizmente, nada de grave aconteceu e os integrantes da Lia Rodrigues Companhia de Danças foram pouco a pouco documentando a comunidade da favela Nova Holanda, mas com uma orientação clara da direção do documentário: jamais interagir com as pessoas através de palavras, sempre por meio de gestos.
É interessante lembrar que tanto o cinema quanto a dança são linguagens que podem prescindir de palavras. Conversas e entrevistas foram conceitualmente banidas das filmagens e a comunicação com os membros da comunidade tinha necessariamente de estar respaldada em gestualidades. Por vezes as bailarinas e os bailarinos, com as traquitanas em seus corpos, pareciam “seres mutantes” de novelas televisivas para as crianças da favela, o que sempre gerava gritaria, brincadeiras e até mesmo pânico, mas o conceito da documentação gestual e silenciosa foi mantido.
A cada nova filmagem, mudávamos o body-cam de posição nos corpos dos bailarinos-fotógrafos e eram pés, depois mãos, em seguida braços, costas, enfim, uma multiplicidade de pontos de vista do corpo documentando as pessoas em suas casas nas vielas, em muitos momentos com o monitor da câmera voltado para quem dança e ao mesmo tempo filma. Tudo em constante movimento, mas a câmera fixa, grudada no corpo, gerando imagens com movimentos orgânicos, criadas com o batimento, o ritmo, a cadência e a respiração de quem documenta o mundo à sua volta através de gestos, sem palavras.
O resultado final do experimento documentário-coreográfico foi uma obra sensorial, mas com uma estrutura narrativa que procura construir as diferentes aproximações que os integrantes da companhia foram criando com os espaços e as pessoas da comunidade. Canteiro de Obras não é propriamente um filme, um curta-metragem, mas um híbrido de linguagens fruto de uma experimentação que serviu aos objetivos da coreógrafa Lia Rodrigues como um primeiro diálogo gestual e ao mesmo tempo cinematográfico com aquela nova locação, que passou a ser a sede da companhia.
O terceiro documentário que realizei sobre a linguagem do corpo e dos gestos foi novamente com a São Paulo Companhia de Dança, em 2012. Naquele momento somente sob a direção artística de Inês Bogéa, o grupo me convidou para um novo trabalho sobre as diversas atividades do coletivo, que vão desde a criação de um amplo e consistente repertório coreográfico, do clássico ao contemporâneo, até aulas, palestras e seminários para a formação de novos públicos para a dança.
Como já havia documentado de forma quase sempre observacional o processo de criação da primeira coreografia da companhia (e o desafio havia sido grande em função da difusa atmosfera dos ensaios em torno de algo nebuloso para ser filmado e que estava sendo criado em tempo real no corpo do coreógrafo para depois ir aos poucos se capilarizando nos integrantes do corpo de baile), optei por um caminho cinematográfico diametralmente oposto. O conceito do segundo trabalho com a São Paulo Companhia de Dança foi pinçar trechos de frases coreográficas de diversos trabalhos do grupo, rigorosamente escolhidos para serem repetidos de maneira incansável em diversas situações: no palco, durante o espetáculo; na sala de ensaio; também com o body-cam acoplado aos corpos de quem dança; ainda com uma câmera GoPro, utilizada em esportes radicais; e por fim no topo de edifícios da Avenida Paulista e também no terraço da Assembleia Legislativa, no Ibirapuera.
O objetivo foi esgarçar à exaustão um mesmo trecho de frase coreográfica para depois reorganizá-lo com repetições que, pouco a pouco, vão formando uma espécie de miríade de fragmentos de movimentos que foram ampliados com todas as modalidades de planos descritas anteriormente. Um filme-referência foi o curta Pas de Deux, de Norman Maclaren, de 1967, no que diz respeito especificamente à criação dessas miríades de movimentos repetidos.
A intenção foi decupar os trechos de frases coreográficas com o olhar do cinema, com o dom de ubiquidade da câmera, que, em tempos digitais minimalistas, pode ser colocada em incontáveis partes do corpo, gerando imagens impensáveis para quem está sentado com um ponto de vista único em uma plateia de teatro, mas completamente possível sob o olhar fragmentário da sétima arte. O cinema potencializado em suas especificidades linguísticas e a dança rigorosamente contemplada com suas miríades de movimentos, inalcançáveis para o olhar humano, mas um veio inesgotável para o cine-olho vertoviano, ou melhor, para o leque de possibilidades do olhar da câmera depois reorganizado no processo de montagem, promovendo assim de algum modo esse casamento linguístico e harmônico da dança com a sétima arte que eu tanto buscava.
O dispositivo cinematográfico para esse segundo trabalho com a São Paulo Companhia de Dança foi o estilhaçamento em pontos de vista de um mesmo trecho de frase coreográfica e repetições, uma miríade de repetições em uma espécie de falso raccord alongado, assumidamente esgarçado, possibilitando ao espectador de cinema ver e rever o mesmo fragmento de movimento diversas vezes, ao contrário do espectador em uma plateia de teatro, que sempre vai ver as frases coreográficas uma única vez no palco e de um ponto de vista único.
No que diz respeito aos planos gerais no topo dos edifícios, criamos alguns conceitos para batizar as imagens, como, por exemplo, “a cidade aos seus pés” e “bailarinas e bailarinos literalmente nas nuvens”, entre outros.
Sob a ótica de quem dança, todo movimento pode ser um achado coreográfico, até mesmo a sinuosidade do voo de um inseto ou os deslocamentos de pessoas, carros, ônibus e motos na cidade. Esse conceito também foi incorporado ao filme, que utilizou movimentos urbanos como uma espécie de dança da metrópole.
No processo de montagem do filme, que foi exibido na TV Cultura em dezembro de 2012, o prazer de construir essas miríades de movimentos que se repetem no palco, na sala de ensaio, com o body-cam, a GoPro e depois tudo se ampliando a céu aberto no topo dos edifícios. As bailarinas e os bailarinos quase tocavam as nuvens nas filmagens diurnas e também as torres acesas da Avenida Paulista na chamada “hora mágica”, ou seja, nos cerca de quarenta minutos antes do por do sol, quando o céu continua azul e as luzes da cidade já acenderam, e ainda durante a noite. Tínhamos em mente criar na montagem um voo coreográfico sobre a cidade.
Escolhemos trechos de frases coreográficas do clássico ao contemporâneo, passando por uma obra radical e exuberante como In the middle, somewhat elevated, de William Forsythe, uma espécie de demolição exasperada dos passos do balé clássico, feita sob encomenda em 1987 para o Balé da Ópera de Paris sob direção de Rudolf Nureyev. Forsythe, por exemplo, não gostou nada do esgarçamento de trechos de sua histórica coreografia reagrupados em miríades cinematográficas de movimentos repetidos e não autorizou a nossa montagem. Na verdade, os coreógrafos não apreciaram muito a recriação cinematográfica de seus trabalhos, mas somente o grande bailarino e coreógrafo norte-americano, radicado na Alemanha, não nos deu autorização, o que nos obrigou a usar no filme apenas alguns minutos de sua obra no palco sem nenhum tipo de corte. Assim foi feito. No entanto, o resultado cinematográfico impressiona e documenta a coreografia de modo a permitir uma ampliada fruição da beleza de um mesmo movimento, logicamente respeitando e dignificando a dança na linguagem da sétima arte.
Por fim, um quarto trabalho fílmico sobre o universo do corpo e dos gestos: Buracos no Céu, realizado em parceria com a bailarina e coreógrafa Célia Gouvêa. Ao ingressar na Pós-graduação da ECA/USP, tive Célia Gouvêa como companheira de classe em diversas disciplinas. Em uma delas, Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo, ministrada pelo professor Marcos Aurélio Bulhões Martins, um dos trabalhos finais foi a realização de um filme-performance na cidade. Resolvi encarar o desafio dirigindo Célia Gouvêa no mesmo terraço da Assembleia Legislativa, no Ibirapuera, onde havia filmado com a São Paulo Companhia de Dança.
O conceito foi o seguinte: dirigir a veterana bailarina para que ela extraísse do próprio corpo a memória de influências que haviam marcado profundamente o seu estilo como artista. Célia dançou durante muitos anos na Europa e participou do histórico grupo Mudra, criado por Maurice Béjart em 1992. Fons Goris, professor de jogo teatral da bailarina na companhia, costumava dizer o seguinte: “As coreografias de Maurice Béjart são como buracos no céu”.
A partir desse mote, que acabou batizando o filme, pedi à Célia Gouvêa para coreografar improvisando diferentes tipos de “acenos” no topo da Assembleia Legislativa. Ela foi esculpindo gestualidades como acenos coreográficos em direção ao céu, como se estivesse abrindo buracos por entre as nuvens. A partir daí, retornava com as mãos ao próprio corpo, resgatando na memória da pele uma influência marcante. Em seguida, improvisava e performava trechos de frases coreográficas que haviam decantado em seus músculos, ossos, nervos e tendões como uma espécie de legado sensorial daquela influência em sua vida. Uma memória corpórea que foi sendo trazida à tona com os diferentes tipos de acenos coreográficos criados por Célia Gouvêa.
Ela aplicou o mesmo dispositivo performativo-coreográfico para resgatar no próprio corpo influências de Maurice Béjart, Renée Gumiel, Ruth Rachou, Alvin Nikolai, a mãe e pianista Odete Gouvêa, a filha e também bailarina Vânia Vaneau e ainda o encenador Maurice Vaneau, companheiro de toda uma vida pontuada por parcerias artísticas.
Célia Gouvêa, que já passou dos 60 anos, dançou, improvisou e performou durante mais de sete horas no chão acidentado e rude do telhado da Assembleia Legislativa, em entrega visceral e emocionante em busca da própria história de vida decantada na memória do corpo. O filme acabou ganhando uma dimensão além dos portões da USP e foi exibido em mostra do fomento à dança na Galeria Olido em 2013 que homenageou Célia Gouvêa e Maurice Vaneau.
Para André Bazin, o cinema é uma arte do espaço. Já para Jean-Louis Comolli, trata-se de uma linguagem essencialmente de corpos: corpos filmados em “auto-mise-en-scène” (ele aprofunda o conceito criado pela pesquisadora Claudine de France) que revelam para a câmera pulsões inconscientes e também gestualidades das convenções sociais que decantam na nossa pele, desnudando ainda os corpos dos cineastas quase sempre fora de quadro, sem contar o corpo do espectador engendrando imagens e sons na própria tela mental. No texto Sob o Risco do Real, que também faz parte da coletânea Ver e Poder, Comolli fala de uma “potência de convicção” e de uma “beleza” que somente o corpo filmado é capaz de conhecer, o que de algum modo aprofunda a questão da presença e nos faz pensar sobre como o cinema pode ampliar a força corpórea da dança:
“Esses homens e essas mulheres, seres reais tomados na relação filmada, nela irão manifestar (é o que convém esperar) toda sua singularidade: o que faz que um corpo, uma palavra, uma subjetividade se tornem em relação ao cinema (e talvez apenas a ele) únicos, insubstituíveis, não reproduzíveis (a não ser pelos meios mecânicos, laboratórios, cópias, projeções). O milagre terá acontecido: filmado, o corpo atinge uma potência de convicção, uma beleza que o corpo não filmado não conhece. Melhor que o teatro e a pintura, o cinema expõe o corpo humano em todos os seus estados: verdade (crueldade) da tomada cinematográfica, como não filmar a passagem do tempo nos corpos?” .
O cinema e a dança são duas linguagens que podem comungar em casamentos artísticos além, muito além da reiteração das palavras, que nem sempre conseguem nos fazer frequentar os mistérios sugestivos e silenciosos dos gestos e das imagens. Trata-se de uma troca artística que tem o movimento como matéria-prima essencial e que adquiriu novos contornos, novos caminhos, graças ao minimalismo e à leveza das tecnologias digitais, que estão banindo as tediosas atmosferas cinematográficas do que se convencionou chamar de “teatro filmado” e têm criado novas e antes impensáveis possibilidades de “presença” para a dança e para as artes cênicas, de maneira geral, na linguagem fragmentária do cinema.