RESUMO: O ensaio tem como objetivo investigar um elo perdido que aproxima o teatro do cinema, e vice-versa, em um momento histórico no qual as duas linguagens estiveram intrinsecamente ligadas: as duas primeiras décadas do século XX. Esta troca artística é marcante na obra de criadores como David W. Griffith, Vsevolod Meierhold, Sergei Eisenstein, André Antoine e principalmente Erwin Piscator, foco principal do artigo.
Nas duas primeiras décadas do século XX, o teatro e o cinema estiveram intrinsecamente ligados em uma troca artística marcada pela “superioridade” da linguagem cênica e pelas primeiras tentativas de construção das especificidades da chamada sétima arte. No entanto, por outro lado, os efeitos de realidade do cinema obrigaram o teatro a se repensar, como pode ser constatado na trajetória do encenador Erwin Piscator após a leitura do livro O Teatro Político, de sua autoria.
Griffith é considerado o principal inventor das especificidades da linguagem cinematográfica, que começou a despontar como manifestação artística após três quebras nas convenções teatrais que sufocavam os primeiros passos de criadores em um set de filmagem. São elas: o plano próximo nos rostos dos atores e das atrizes, o chamado close-up, para os norte-americanos, ou o gros plan, como diriam os franceses; a movimentação da câmera e a montagem paralela, que descortinou os primeiros filões do cinema como arte do tempo.
Em A Forma do Filme, Sergei Eisenstein resgata um trecho do livro The Rise of the American Films, de Lewis Jacobs, em que o escritor norte-americano narra as resistências enfrentadas por Griffith:
“Griffith decidiu dar um passo revolucionário. Ele moveu a câmera para mais perto do ator, no que é agora conhecido como o plano inteiro (uma visão ampla do ator), de modo que a plateia pudesse observar a pantomima do ator mais de perto. Ninguém antes pensara em mudar a posição da câmera no meio de uma cena...
O próximo passo lógico era aproximar a câmera ainda mais do ator, no que é hoje chamado de primeiro plano...
Nunca, desde O grande assalto ao trem, de Porter, cerca de cinco anos antes, um primeiro plano fora visto em filmes norte-americanos. Usado então apenas como um truque (o fora-da-lei era mostrado atirando na plateia), o primeiro plano se tornou em After Many Years o complemento dramático natural do plano geral e do plano total. Indo além do que ousara antes, numa cena mostrando Annie Lee meditando e esperando pela volta do marido, Griffith ousadamente usou um amplo primeiro plano de seu rosto.
Todos no estúdio Biograph ficaram chocados. ‘Mostrar apenas a cabeça de uma pessoa? O que as pessoas dirão? Isto vai contra todas as regras do cinema!...’
Mas Griffith não tinha tempo para discutir. Tinha uma outra surpresa, até mais radical, a oferecer. Imediatamente depois do primeiro plano de Annie, inseriu a fotografia do objeto de seus pensamentos – seu marido, naufragado numa ilha deserta. Este corte de uma cena para outra, sem conclusão também, desencadeou uma torrente de críticas contra a experiência”[1].
Como Griffith, que foi ator e dramaturgo, Eisenstein também teve forte formação teatral e ambos viam a tela de cinema como uma espécie de “palco vertical”. O cineasta russo estudou arquitetura e fez caricaturas políticas antes de se dedicar ao teatro a partir de 1920. Ele entra para o Primeiro Teatro Operário do Proletkult, onde faz curso de direção com Vsevolod Meierhold, seu grande mestre. Participa depois da fundação do FEKS, a Fábrica do Ator Excêntrico, que, aliás, é inaugurada encenando peças de teatro e termina realizando filmes.
Em março de 1923, Eisenstein estreia como encenador com a comédia O Sábio – Em Todo Sábio Existe um Pouco de Ingenuidade. Para essa montagem, roda o curta O Diário de Glumov, com duração de cinco minutos, seu primeiro filme. Também em 1923, ele escreve o famoso texto Montagem de Atrações, voltado para a linguagem cênica e com o objetivo de provocar choques emocionais no espectador, buscando inspiração no circo, no music hall, no grand guignol e no cinema. A pesquisadora Vanessa Teixeira de Oliveira, em seu livro Eisenstein Ultrateatral – Movimento Expressivo e Montagem de Atrações na Teoria do Espetáculo de Sergei Eisenstein, analisa a trajetória do artista como encenador antes de se dedicar ao cinema:
“Eisenstein escreveu o texto Montagem de Atrações como base teórica da encenação de O Sábio, peça em que continua a desenvolver seu trabalho como cenógrafo e em que pode como encenador, pela primeira vez, colocar em prática suas próprias ideias. Diferentemente de Meierhold, para Eisenstein, em lugar do ator, seria o espectador o material básico do teatro. A própria nomeação do método de encenação eisensteiniano faz referência ao momento de produção (montagem) e de recepção (atrações) do espetáculo”[2].
O diretor russo via a sétima arte como uma espécie de evolução do teatro e foi buscar procedimentos da montagem cinematográfica na maneira fragmentada de se contar histórias no teatro kabuki, no qual ele percebia uma independência grande dos elementos linguísticos, planos separados uns dos outros e até mesmo atmosferas de “câmera lenta”.
Em 1923-1924, Eisenstein monta Máscaras de Gás em uma fábrica em Moscou. A força da locação foi tamanha que ele partiu de vez para o cinema, abandonando o teatro, ainda movido pela convicção de que a potência das massas revolucionárias que ele tanto buscava não passaria de um grupo de figurantes no palco, enquanto que, na tela de uma sala de projeção, ela poderia ser “real”.
O pesquisador francês François Albera resgata em seu livro Eisenstein e o construtivismo russo depoimentos do realizador de O Encouraçado Potemkin sobre a encenação de Máscaras de Gás, realizada em parceria com Sergei Tretiakov:
“‘Em Máscaras de Gás’, escreve Eisenstein, ‘as turbinas e o plano de fundo da fábrica apagavam os últimos restos de maquiagem e de figurinos de teatro [...] No meio das máquinas reais, os acessórios tornaram-se ridículos. A encenação era incompatível com o odor acre do gás. Nossa miserável plataforma desaparecia o tempo todo entre as ‘plataformas’ reais do trabalho dos operários’. ‘Tendo chegado a esse ponto crítico, nosso teatro terminou e tornou-se cinema’, diz ainda Eisenstein”[3].
O encenador alemão Erwin Piscator é outro artista que também foi seduzido pela profusão de efeitos de realidade do cinema, mas suas experimentações fílmicas sempre estiveram voltadas para o teatro, com exceção de um projeto realizado em 1933 na antiga URSS: o longa-metragem A Revolta dos Pescadores de Santa Bárbara.
Antes de analisarmos os espetáculos de Piscator, é interessante resgatar trecho do ensaio Lumière, ‘o último pintor impressionista’, de Jacques Aumont, pois o pesquisador e crítico francês discorre sobre os efeitos de realidade do cinematógrafo, invenção dos irmãos Lumière, no final do século XIX, e sua reflexão contextualiza a recepção na época do dispositivo fílmico que, por sua vez, ilumina as intenções realistas, sobretudo históricas, duas décadas depois, com as quais o encenador alemão engendrava os seus espetáculos para provocar choques de realidade no público dos teatros onde atuou:
“Primeiro ponto, portanto, que nos será indicado pelas reações dos primeiros espectadores de Lumière. Pelo que lemos de tais reações, nos relatos da imprensa, o que sidera os espectadores e os críticos e, ainda e sempre, ao longo das projeções, uma única coisa: a profusão de efeitos de realidade. Fala-se sempre da famosa reação dos espectadores de A chegada de um trem à estação, de seu pavor, de sua fuga desvairada: como lenda, essa história é perfeita (impressionante e exemplar); mas não passa de uma lenda, cujo vestígio real não encontramos em parte alguma. O que encontramos, em compensação, e aos borbotões ao longo do ano de 1896 são observações surpresas, incrédulas, extasiadas, alucinadas sobre outros efeitos, menos maciços, menos propícios à lenda, efeitos evanescentes, mas obstinados, sempre ali.
Sem querer substituir uma lenda por outra, o que propomos aqui é um deslocamento importante da tônica: a história do pavor diante da locomotiva faz dos espectadores seres um pouco rudes, sensíveis a um efeito de real global e bem primitivo. Ora, foi, de modo um pouco mais sutil, por efeitos de realidade que eles foram tocados. Insisto sobre a verdadeira força alucinatória desses efeitos: um vê, por exemplo, as barras de ferro ‘incandescerem’ (em Ferradores), outro não vê as cenas reproduzidas ‘com as cores da vida’; de todos os relatos que li, não há um sequer que lamente, ao contrário, só ter visto uma imagem cinza. Manifestamente, são esses efeitos que prevalecem”[4].
Bandeiras, encenado em Berlim em 1924, é considerado pelo próprio Piscator sua “primeira tentativa dramática consequente com intenção de estilhaçar o desenho da ação dramática e de substituí-la pelo desenrolar épico do evento”[5], e as projeções cinematográficas no palco foram estratégicas na construção desse “drama conscientemente épico”[6]. Leo Lania, colaborador assíduo nos espetáculos do encenador alemão, comenta a utilização do cinema em Bandeiras:
“A representação na Volksbühne foi inteiramente construída em torno de um tema simples e claro que nós havíamos destacado. A mise en scène tinha – ideia original e feliz – utilizado o cinema a serviço do drama. Um prólogo introduzia a representação e explicava as características dos dirigentes operários, dos magnatas dos trusts e dos funcionários da polícia, enquanto que apareciam na tela as fotos dos personagens da peça. Eu achava menos feliz o efeito produzido pelos textos intercalados que estabeleciam, como no cinema, as transições entre as diferentes cenas”.[7]
Além da projeção das fotos, Piscator levou ao palco os intertítulos que encadeavam os filmes na época do cinema mudo e que foram recriados por Dziga Vertov em O Homem com a Câmera, de 1929: o cineasta polonês naturalizado russo decidiu construir uma obra sem cartelas explicativas, ou quase, mas com um conceito de “intervalo” entre as sequências que as desconstruiu de maneira antiilusionista com planos que mostravam o processo de construção do próprio filme.
Foi também com objetivos antiilusionistas que Piscator usou as projeções das fotos e dos intertítulos em Bandeiras. O encenador estava em busca do “real”, um real histórico que pulsava de forma explosivamente bélica na Alemanha naquele período e que culminou na Segunda Guerra Mundial. Em O Teatro Político, Piscator comenta que o espetáculo não tinha conseguido satisfazer a “todas as exigências do drama épico, aquelas que nós as definimos nos baseando nos trabalhos e nas experiências de Döblin, Joyce, Dos Passos (no plano do romance), Brecht e enfim as obras encenadas na Piscator-Bühne”[8]. Ele afirma que esse princípio foi somente elaborado mais nitidamente em espetáculos como As Aventuras do Bravo Soldado Schweyk e no primeiro ato de Conjuntura.
“Bandeiras foi o primeiro drama marxista, e sua mise en scène a primeira tentativa de apreender e de tornar perceptíveis as forças materialistas. Eu ainda não podia perceber completamente a importância teórica das projeções, empregadas pela primeira vez. Eu considerava este procedimento cênico, utilizado somente para ampliar o assunto e iluminar os planos de fundo da ação, como um ornamento interessante, em resumo, e foi preciso muitos anos de trabalho prático para reconhecer que os textos intercalados percebidos como ‘os menos felizes’, constituíam, ao contrário, o essencial desta representação.
Os dois quadros colocados à direita e à esquerda da cena, sobre os quais o texto projetado extraía o ensinamento da ação, constituíam um princípio pedagógico que devia ser conservado e aperfeiçoado em todas as mise en scènes. O filme em Tempestade sobre Gottland, e em Opa! Nós Vivemos (foto no alto), o calendário em Rasputin, se apegavam aos painéis empregados pela primeira vez em Bandeiras, e isso não apenas como meios explicativos, mas como meios próprios para elevar o drama ao nível superior do teatro didático”[9].
Piscator incluiu em seu livro texto do escritor Alfred Döblin sobre Bandeiras:
“Na época de Ésquilo, o drama-romance era a forma habitual do drama, ele pode se tornar novamente na nossa época em que o filme, narrativa dramática através da imagem, mostra o caminho”[10].
O encenador alemão começou a buscar cada vez mais uma linguagem que depois foi batizada (e também rejeitada) por ele de “peça de atualidade”, fortemente inspirada na estética dos cinejornais que faziam sucesso na época, vigoraram até os anos 1970 e tiveram no já citado Dziga Vertov um autor em experimentação permanente na série de filmes de atualidades intitulada kinopravda, ou seja, cinema-verdade. Em 1924, Piscator encena Revista Vermelha, feito sob encomenda do partido comunista, e conta com a colaboração do compositor Edmund Meisel, o mesmo que depois assinaria a música original de dois clássicos do cinema: O Encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein, e Berlim – Sinfonia de uma Metrópole (1927), de Walter Ruttmann. Em O Teatro Político, o encenador escreveu o seguinte sobre a parceria com Edmund Meisel:
“Com as projeções, eu continuava a evolução iniciada em Bandeiras. A música tinha, por sua vez, um papel importante. É preciso dizer que nós tínhamos em Edmund Meisel, que eu tinha conhecido durante as manifestações da Internacional para Ajuda aos Operários, um músico que compreendia, sabia o que se esperava dele: tratava-se não apenas de sublinhar a linha política com a ajuda da música, mas de prolongá-la deliberadamente e de maneira autônoma; a música devia ser concebida como um meio cênico original”[11].
Em 1925, Piscator encena o espetáculo Apesar de Tudo, no qual, pela primeira vez, o filme estava organicamente ligado aos eventos cênicos, segundo ele, ressaltando ainda que esse conceito já estava previsto em Bandeiras, porém ainda não realizado:
“A ligação dessas duas formas de arte aparentemente opostas: o teatro e o cinema, adquiriu um lugar abusivo, na minha visão, nas resenhas da crítica e no julgamento do público. Eu não atribuía a esta experiência uma importância tão considerável. Rejeitada por uns, saudada com entusiasmo pelos outros, ela foi raramente apreciada no seu justo valor. A utilização no cinema se situava aqui na mesma linha que a utilização das projeções em Bandeiras. (...) Ela só foi uma ampliação e um aprimoramento de meios já experimentados. O objetivo permanecia idêntico. Depois, afirmaram com frequência que eu havia tomado essa ideia dos russos”[12].
O encenador garante que os espetáculos soviéticos chegavam com muita parcimônia à Alemanha e que ele desconhecia o teatro que era feito na URSS na época.
“Mesmo mais tarde, os russos nunca atribuíram ao cinema, que eu saiba, uma função análoga àquela que lhe dei. De resto, essa questão de anterioridade me parece desprovida de todo interesse. Só resta a provar o seguinte: não se tratava de tal ou tal técnica para se dar prazer, mas de uma forma de teatro em via de gestação fundada sobre uma concepção comunitária do mundo: aquela do materialismo histórico”[13].
Os objetivos que norteavam as experimentações cinematográficas de Piscator eram os seguintes: ultrapassar a decupagem autônoma das cenas, o caráter puramente individual dos personagens; religar a ação cênica às grandes forças agindo no processo histórico de sua época e ainda dar aos destinos dos personagens um sentido superior.
“Para fazer isso, eu utilizei procedimentos mostrando a interdependência dos grandes fatores humanos e sobre-humanos, do indivíduo e da classe social. Um desses procedimentos foi o cinema. Mas não é nada além de um procedimento, e um outro procedimento pode muito bem substituí-lo amanhã”[14].
O filme era para ele um documento: imagens autênticas de guerra, tiradas de arquivos com a ajuda de amigos; a brutalidade dos combates, ataques com lança-chamas, corpos mutilados e cidades incendiadas. Efeitos de realidade capazes de chacoalhar a sensibilidade do público e, principalmente, acordar as massas proletárias para a urgência do momento histórico que estavam vivendo. A encenação de Apesar de Tudo misturava discursos autênticos, artigos, trechos de jornais, panfletos, convocações, fotografias e filmes de guerra, filmes da revolução, cenas e personagens históricos. Piscator ressalta em seu livro que buscou o político na acepção grega da palavra, ou seja, “que diz respeito a todo mundo”.
Através da ação e da discussão teórica do espetáculo, ele queria revelar não apenas traços políticos e sociais, influenciando o indivíduo, mas um sentido mais amplo, histórico, capilarizado e estampado na própria forma da encenação. O encenador renovava a experimentação colocada em prática em Bandeiras e que, em Apesar de Tudo, atingia paroxismos na ação dramática graças às surpresas provocadas pela alternância do cinema e do teatro.
“As duas artes se reforçavam mutuamente e resultava disso, em certos momentos, um frenesi como eu raramente vivi no teatro”[15].
Piscator destaca uma das cenas do espetáculo, quando os militares davam voto de confiança aos sociais democratas e era exibido um filme mostrando um ataque e os primeiros mortos: não apenas o evento estava caracterizado sob o plano político, mas uma emoção humana emanava e alcançava-se a arte, segundo ele. O encenador afirma em seu livro que o acerto de cenas como essa provava a exatidão do princípio que ele e sua equipe haviam criado, ressaltando ainda que “o efeito da propaganda política é o mais convincente lá onde a forma artística atinge a perfeição”[16].
Ele continuou experimentando a utilização de projeções cinematográficos nos espetáculos que realizou na Volksbühne. Em 1926, Maremoto, “uma paráfrase da revolução russa”, como ele mesmo define em O Teatro Político.
“Um grande progresso foi realizado na ocasião desta representação na elaboração e no aperfeiçoamento do filme. Pela primeira vez, se apresentava a possibilidade de introduzir na peça grandes trechos. O que reforçou o caráter dramático dos entreatos cinematográficos. Se a função do filme foi acentuada, a elaboração prática do espetáculo sofreu com a falsa estrutura do tema. Forçosamente, os eventos pessoais da peça se desenvolveram em eventos puramente pessoais no filme e na cena[17]”.
Nesse período, o encenador dirigiu vários espetáculos em sequência, mas ele destaca Vela ao Horizonte e O Barco Embriagado como os mais importantes sob o ponto de vista da mise en scène.
“Em Vela ao Horizonte, a função autônoma que adquiria o cenário (um navio) fazia do fim da peça, embora muito fraco, um momento dramático potente. As projeções em O Barco Embriagado sofreram uma transformação. Elas representavam o mundo, os grandes eventos sociais e políticos desenhados por George Grosz. A ação dramática se desenrolava em um espaço cênico delimitado por três grandes telas sobre as quais eram projetadas fotografias relativas a cada cena. (Eu tinha desejado no início dispor essas três telas, à maneira de um prisma, sobre uma base giratória.) Eu utilizava igualmente o cinema, no decurso da travessia, e não somente de maneira ilustrativa mas também como uma interpretação através da imagem do delírio de Rimbaud”[18].
A utilização de filmes no palco também promoveu mudanças na concepção que Piscator tinha para dirigir atores e atrizes em seus espetáculos. A lente de aumento do cinema ajudou o encenador a elaborar uma atuação que ele próprio definia como “neo-realista”:
“Com o tempo se formava nos meus espetáculos um novo estilo de jogo, duro, sem ambiguidade e desprovido de sentimentalidade. E ao mesmo tempo se impunha uma nova concepção do papel do ator face a face com seus personagens, que rompia não somente com a caricatura, o esboço excessivamente exterior das personalidades, mas também com a pintura de personalidades, onde se ia até as ramificações da alma, à maneira de Kayssler. Se eu tivesse de qualificar esse estilo, eu o chamaria de neo-realista (não confundir com o estilo naturalista dos anos 90). (...)
... nossa geração se opôs deliberadamente à superestimação do sentimento. Mudanças deste tipo não acontecem do dia para a noite. Eu não dediquei menos tempo a transformar o jogo dos atores do que a transformar as técnicas. Dada a construção aberta da cena, feita de madeira, aço e de telas, o jogo do ator devia ser autêntico, rigoroso, aberto, desprovido de ambiguidade. No que consiste o efeito produzido por uma criança, por um animal, pelo olhar ‘engordante’ do cinema? No natural do movimento e do gesto, que ultrapassa o ‘jogo’ dos grandes atores. É evidente que nós não exigimos um natural do profissional, mas uma criação a esse ponto pensada, intelectualmente e cientificamente, que ela produza o natural em um nível superior e isto com meios também pouco improvisados, tão preparados quanto aqueles da cenografia. Cada palavra deve se situar no centro da obra como o centro de um círculo. O que quer dizer que todo teatro deve ser calculado, estruturado organicamente. Assim o ator adquire para mim, que sonhava com o efeito global de uma obra e com a sua orientação política, uma função análoga à luz, à cor, à música, ao dispositivo cênico e ao texto em si”[19].
Piscator defende cada vez mais a ideia de um “teatro de atualidade”, ou seja, uma arte dramática atual, com ênfase nos problemas sociais. Ele argumenta:
“Diferentemente do poema lírico que não está ligado à época, na medida em que tira seus sons de uma corda cujas vibrações atravessam os séculos, a obra dramática é uma criação ligada à sua época (...), dependendo de todos os elementos da hora, da sociedade, dos problemas sociais”[20].
Em 1927, o encenador alemão dirige Tempestade sobre Gottland, em que utiliza um filme que cria um efeito de impacto: as massas revolucionárias marchando sobre o público. Ele usa ainda projeções que faziam com que os espectadores acompanhassem o desenrolar dos séculos e verificassem “a legitimidade das revoluções e de seus defensores; os princípios da revolução social eram mostrados em sua inelutabilidade e em seu valor geral, de Hamburgo à Xangai, e do ano de 1400 a março de 1927, data da representação”[21]. Tudo isso “em alguns segundos”, escreve em seu livro, graças ao cinema.
Aclamado pela crítica por provar que é possível unir “o cinema e o teatro vivo”, Tempestade sobre Gottland é, segundo Piscator, “um teatro político que fez explodir os limites do teatro tradicional”. Pressionado pela imprensa, o conselho de administração da Volksbühne censura o espetáculo e decide cortar justamente as partes cinematográficas da encenação. Protestos contra a retirada dos filmes. Chovem acusações sobre ele: “sequências cinematográficas de inspiração política soviética”; “acessórios soviéticos de Piscator”. O diretor se defende afirmando que a concepção da cena e das projeções foi “de natureza estritamente artística”.
O encenador alemão se lançou então ao desafio de construir o próprio teatro: a Piscator-Bühne, com infraestrutura sofisticada capaz de facilitar as suas experimentações cinematográficas.
“O teatro tinha se tornado ‘desinteressante’. O filme o mais pobre testemunhava mais da realidade excitante de nossa vida cotidiana do que não importa qual peça com toda sua pesada máquina dramática e técnica. (...) Eu tinha imaginado um tipo de máquina teatral, perfeitamente organizada, como uma máquina de escrever, com aparelho munido de procedimentos os mais modernos de luz, de mudanças e rotações horizontais e verticais, com inúmeras cabines de projeção, instalações de alto-falantes, etc. Também me era necessário construir um novo teatro que permitisse realizar tecnicamente o novo princípio dramatúrgico. O custo de tal empreitada devia, é claro, se elevar a inúmeros milhões”[22].
O novo teatro, com projeto de Walter Gropius e do próprio Piscator, cuja execução deveria ser confiada à Bauhaus, teria nada menos que 12 cabines para projeções, além de uma décima terceira na parte central para lançar na cúpula do edifício “nuvens, constelações ou imagens abstratas”, nas palavras de Gropius. No que diz respeito às 12 cabines, a intenção era, por exemplo, lançar o público “no meio do mar agitado, ou atacá-lo através de uma massa de homens que se precipitaria sobre ele de todas as partes”, ainda segundo texto de Gropius incluído no livro de Piscator.
Diretor da Bauhaus, Dessau, Walter Gropius também chamou seu projeto de “teatro sintético”, mistura de arena circular, anfiteatro grego e romano, e palco italiano. Ele assume que o cinema mudou a sua concepção de espaço cênico.
O encenador alemão enfatiza em seu livro que o objetivo deste novo conceito de teatro “não é acumular materialmente dispositivos e truques técnicos refinados”, mas criar meios para que “o espectador seja arrastado para o centro da ação cênica”. O projeto arquitetônico da Piscator-Bühne não foi construído como era o desejo do encenador e ele acabou adaptando-o a um teatro já existente.
Com seus efeitos de realidade, o cinema foi uma ferramenta preciosa com a qual Piscator tentou se esquivar das atmosferas expressionistas carregadas de sentimentalismo que ainda impregnavam os dramaturgos da época, principalmente Ernest Toller, parceiro do encenador alemão. Piscator queria abrir fissuras documentárias nos textos, inundando-os com irrupções de um real histórico que estava sempre prestes a explodir em guerras e injustiças. Ele estava em busca de uma “dramaturgia sociológica”.
“Esta época, talvez por causa de contingências sociais e econômicas, privou o indivíduo de sua ‘humanidade’, sem lhe oferecer a humanidade superior de uma nova sociedade, e elevou a um pedestal um novo herói: ela mesma. Não é mais o indivíduo, com seu destino pessoal, que constitui o elemento heroico da arte dramática de hoje, mas a época em si, o destino das massas.
O indivíduo (...) não vive mais o seu destino, só, desligado do mundo. Ele está ligado indissoluvelmente aos grandes fatores econômicos e políticos de sua época, esta época em que, para citar Brecht, ‘todo coolie[23] é forçado, para ganhar o seu pão, a fazer a política mundial’. Tudo que ele diz, tudo que ele pensa está ligado ao destino de sua época qualquer que seja a sua situação pessoal.
Para nós, o homem tem na cena a importância de uma função social. Não é mais a ligação do homem com ele mesmo, nem sua relação com Deus que está no centro de nossas preocupações, mas suas ligações com a sociedade. Em todo lugar onde ele aparece, sua classe ou sua camada social aparece. Quando ele entra em conflito (moral, psíquico ou afetivo), é com a sociedade. A antiguidade via essencialmente a posição do homem diante do destino; a Idade Média sua posição diante de Deus; o racionalismo, sua posição diante da natureza; o romantismo, sua posição diante das paixões. Mas uma época na qual as relações no interior da coletividade, a relação de todos os valores humanos, a convulsão de todas as relações sociais estão na ordem do dia, só pode ver o homem em sua posição diante da sociedade e dos problemas sociais de seu tempo; somente como um ser político. (...) A missão do teatro revolucionário consiste em pegar a realidade como ponto de partida, em intensificar o desacordo social para fazer dele um elemento de acusação e preparar assim a revolução e a nova ordem”[24].
Piscator viveu uma época bélica na qual pessoas eram linchadas na rua por não fazerem gestos de apoio à guerra em manifestações públicas. Com formação de ator, foi convocado para os campos de batalha e não se recusou, nem fugiu. Completamente despreparado para os combates, passava dias na trincheira com as calças pesadas de fezes e urina sem ao menos saber que podia se lavar de quando em quando. Durante uma tempestade de morteiros e granadas, recebeu ordem para se enterrar, se esconder na terra. Desajeitado e incapaz de se proteger, um militar superior lhe perguntou qual era a sua profissão. Piscator foi tomado por uma vergonha absoluta ao dizer que era ator e essa sensação de humilhação, ele relata em seu livro em momento emocionante, era mais intimidadora que os morteiros e as granadas que eram lançadas sobre a trincheira onde tentava se esconder. A partir desse momento, despertou no fundo de sua alma uma consciência histórica e ele compreendeu que, em sua época, a arte não podia mais estar dissociada da política.
“Quais são as linhas de força do destino de nossa época? Em que a nossa geração reconheceu o seu destino, destino ao qual ela deve se submeter se ela não quer sucumbir, que ela deve superar se ela quer viver? Na economia e na política, e na resultante das duas: a estrutura da sociedade. Esses três fatores são o nosso destino. E é somente os reconhecendo, seja para aceitá-los seja para combatê-los, que nós ligamos a nossa vida ao ‘conteúdo histórico’ do século vinte.
Se então eu considero que a ideia fundamental de toda ação teatral reside na elevação das cenas privadas ao nível da história, só pode ser uma elevação no plano social, político e econômico. É graças à ela que nós ligamos o teatro à nossa vida”[25].
Para Piscator, novas arquiteturas dos edifícios teatrais e novas técnicas, aliadas às possibilidades do cinema, eram o caminho necessário para levar o espectador ao centro da cena. No Teatro da praça Büllow, mandou instalar três aparelhos de projeção cinematográfica, que podiam, graças à distância focal, englobar o gigantesco ciclorama da cúpula. Já na Piscator-Bühne, onde também eram ministrados cursos de cinema, criou três desfechos para o espetáculo Opa! Nós Vivemos, além de um filme que exibia um gigantesco canhão ameaçando o público no final. Sempre a busca por um casamento artístico do teatro com o cinema no palco.
“O espectador devia ver no início uma tela gigantesca sobre a qual era projetado o filme de introdução. Depois, no instante em que esta introdução cinematográfica desembocava dramaticamente no quadro representado, o arco da cena devia se abrir (as prisões representadas no filme se encadeavam sobre a cela da primeira cena). Então uma união perfeita do cinema e do teatro”[26].
Ele lamenta que a ideia para a abertura do espetáculo não foi totalmente realizada por causa de problemas técnicos com as engrenagens. As projeções de Opa! Nós Vivemos envolveram a escritura de dois roteiros, a produção de filmagens complexas e extensas, pesquisa de imagens de arquivo e um processo de montagem que não chegou a terminar a tempo da estreia.
“A estrutura do espetáculo foi concebida em função de uma grande utilização do filme. Em grande quantidade, o filme já estava contido no manuscrito de Toller. Mas ele adquiriu uma importância muito maior no decurso do trabalho. O objetivo determinante permanecia o mesmo: explicar o destino dos indivíduos através de fatores históricos gerais, religar no plano dramático o destino de Thomas à guerra e à revolução de 1918. O filme adquiriu contudo uma importância maior, uma função dramática maior, e isto por causa da ideia fundamental que é o pivô da peça: um homem, isolado durante oito anos, se encontra brutalmente confrontado com o mundo de hoje. Era preciso mostrar esses oito anos com todos os seus terrores, suas loucuras e também seus aspectos insignificantes. Era preciso, em uma palavra, fazer perceber a monstruosidade contida neste lapso de tempo. O choque só poderia ter toda a sua força se esse abismo escancarado se tornasse visível. Não há outro meio a não ser o cinema para fazer desenrolar, em sete minutos, oito intermináveis anos.
Para este ‘filme intercalado’, um manuscrito foi especialmente aperfeiçoado que recapitulava em torno de quatrocentas datas da política, da economia, da cultura, do esporte, da moda, etc. Para a peça em si, outro manuscrito cinematográfico foi criado, ao qual foi preciso dedicar diversas semanas de preparação. Na base desses manuscritos, elaborados no nosso escritório de dramaturgia, verdadeiros cenários foram aperfeiçoados por Simon Guttman e Kurt Ortel, que dirigiu a produção cinematográfica de Opa! Nós Vivemos. Em torno de mil metros de filme foram rodados para Opa! Nós Vivemos. Naturalmente, somente uma ínfima parte deste filme foi utilizada. O pátio, a praça livre do entreposto e mesmo a rua que contornava o Teatro da praça Nollendorf se tornaram, durante duas semanas, os locais de filmagem. Nos dias que precederam a estreia, os refletores iluminaram até três horas da manhã, com suas luzes que cegavam, o conjunto do prédio. No interior foram rodadas as cenas do asilo de noite. A caminhada de Thomas de fábrica em fábrica e a entrega dos encouraçados ao conselho dos soldados tiveram como cenário o teto do teatro.
Paralelamente, uma pequena equipe, sob a direção de Victor Blum, procurava sem descanso sequências autênticas nesses dez últimos anos nos arquivos das grandes sociedades de produção cinematográfica. Algumas incongruências, por causa da montagem desses filmes recentes e antigos, não puderam ser evitadas durante a representação.
Uma das cenas mais interessantes, tanto do ponto de vista cinematográfico quanto do ponto de vista da técnica de jogo, foi aquela do rádio-telegrafista no ato do hotel. Aí eu associei o anúncio feito por alto-falante, o texto dito pelo ator e a imagem cinematográfica. Era preciso que o filme fosse, como dizemos hoje, ‘sincronizado’ com os outros elementos. Em outras palavras, a extensão das frases devia ser cronometrada e as sequências do filme decupadas em função disso. A imagem cinematográfica constituída pela radiografia de um coração batendo, que tanto havia machucado Ihering (‘Ele – Toller – quer restituir o caráter fantástico, nervoso e sem alma do século da técnica, e ele nos faz ouvir no rádio as batidas do coração de um aviador sobre o oceano! Toller romantiza o mundo mecânico’, Börsen-Courier de 5 de setembro de 1927), se referia à tentativa, feita na época, de estabelecer um diagnóstico de cardiologia através da rádio-telegrafia, a partir de um transatlântico.
Ao lado do cinema documentário, eu queria utilizar em Opa! Nós Vivemos o cinema não figurativo; em vez de uma música tonal, uma ‘música de movimento’. No momento em que Thomas enunciava o conceito temporal de oito anos, uma superfície negra, rapidamente dissolvida em uma sucessão acelerada de linhas, depois quadriláteros (indicadores dos dias, das horas e dos minutos), devia visualmente traduzir este conceito. A montagem da sequência foi confiada a Ernst Koch. Infelizmente faltou tempo para terminá-la”[27].
Piscator lembra em seu livro das dificuldades que o elenco enfrentou nesse novo mundo teatral inventado pelo encenador, no qual o cinema dita novas regras de precisão para a interpretação dos atores e das atrizes.
“Logo no início, meus dispositivos parecem completamente estrangeiros e mesmo hostis aos atores habituados à cena burguesa. Eles se sentem perdidos por entre as gigantescas construções mecânicas que não permitem mais a eles desenvolver seus habituais momentos de bravura. Também eles só se habituam muito dificilmente à precisão que o filme exige. (...)
Afirmar que o ator não pode absolutamente interpretar diante da imagem cinematográfica, que a superfície plana da tela permanece incompatível com a pesquisa plástica da interpretação, me parece ridículo. Esta afirmação aliás caiu em desuso. Eu jamais compreendi no que a superfície plana do filme se diferenciava da superfície plana de antigos cenários pintados ou da tela de fundo. Eu sempre verifiquei o contrário que o homem vivo vivia mais e era muito mais interessante quando ele se integrava ao filme animado. E se, ainda hoje, uma desarmonia subsiste, é, eu repito, porque o estilo de interpretação apropriado a este novo dispositivo cênico não foi completamente elaborado”[28].
Na estreia de Opa! Nós Vivemos, o espetáculo que inaugurou a Piscator-Bühne com música de Edmund Meisel, a tensão de todos intensificada por filmes sendo montados quinze minutos antes das cortinas se abrirem, o encenador relembra em O Teatro Político.
“Dia 3 de setembro de 1927, a cortina se ergueu pela primeira vez na Piscator-Bühne. Após semanas de trabalho, um único sentimento me dominava: agora nada mais pode ser mudado. O trabalho estava feito, mesmo se ele permanecia inacabado em vários pontos e ainda não perfeitamente ‘depurado’. Na noite da estreia, marcada para sete horas, eu ainda encontrava Gasbarra e Guttman que, às 19h45, montavam em uma sala da adega o filme intercalado que devia passar às 20h, eu tomei eu mesmo algumas decisões durante a representação e utilizei o entreato para verificar as iluminações de algumas cenas do fim. Enquanto o público já se espremia nos corredores, às 18h45, nós ainda fazíamos testes no filme sonoro do final para a conversa através de golpes desferidos contra a parede[29]”.
Trechos de críticas após a estreia, que o encenador chama de “julgamentos políticos”, ressaltaram a utilização dos filmes como uma estratégia do encenador para fustigar o texto de Ernst Toller e ainda fazer propaganda comunista no palco: “Ele (Piscator) acentua com ódio, em todos os lugares onde ele pode, as cenas de Toller. Toller ironiza, Piscator mente. O filme, de novo, lhe dá meios para que seu fim só consiga profanar”. Outro trecho de crítica: “Mas Piscator cria seus próprios entreatos, ele organiza seu cinema comunista de choque sem se preocupar de modo algum com o que o autor quer dizer”. Outra resenha mais positiva, inserida em uma série de críticas agora batizada de “julgamentos artísticos”, mantém o cinema em destaque: “Piscator se libertou desse romantismo. Ele não se esquiva. Ele enclausura o estilo ‘sentimental’ de Toller com a armadura de aço de seu dispositivo cênico. Esta montagem com suas paredes móveis e transparentes, suas telas e suas cortinas, sobre as quais o filme, na frente e no fundo, é projetado, faz tudo [...] Uma imaginação técnica fenomenal realizou milagres”[30].
Opa! Nós Vivemos saiu de cartaz quinze dias depois. Apesar do fracasso, Piscator reafirma que a forma nova do seu teatro é indissociável da sua fé no socialismo revolucionário e que o cinema é uma espécie de ponte épica utilizada para ampliar a trajetória dos personagens em uma dimensão histórica.
A revolução alemã em Opa! Nós Vivemos. O espetáculo seguinte foi Rasputin, sobre a revolução russa. No programa do último, escreveu Leo Lania, um dos autores da dramaturgia:
“O teatro só é importante aos nossos olhos na medida em que os documentos o justificam. Esta ampliação e este aprofundamento documentários são obtidos pelas projeções que, colocadas entre os atos e os momentos decisivos da ação propriamente dita, a interrompem sem cessar e constituem escapadas que o projeto da história decupa assim na profunda obscuridade do tempo”[31].
O projeto cênico de Rasputin foi concebido de forma hemisférica e Leo Lania, no mesmo texto, explica que os espectadores de 1927 formam uma espécie de “unidade global, um fragmento da história universal, com Rasputin, os Romanov, e o povo que se levantará contra eles”. Para este novo espetáculo, foi feita uma extensa pesquisa documentária sobre fatos históricos: mais de cem mil metros de película, englobando material das sociedades cinematográficas (“com resistências desta vez”, ressalta Piscator em seu livro), imagens de filmes de atualidades semanais, fitas culturais e científicas, e ainda o filme O Fim da Casa dos Romanov, cedido pelos russos. No cenário de Rasputin, um imenso globo.
“A utilização simultânea do globo e do filme provocou um fenômeno surpreendente. Logo no início, nós acreditávamos que o globo deformava a imagem cinematográfica a ponto de torná-la incompreensível. Consequentemente, eu havia colocado em prática longas pesquisas para que se conseguisse projetar o filme a partir de um sistema de prismas montados em tubos, o que eliminava em parte a deformação provocada pela curvatura do globo. Mas tudo isso se tornou supérfluo. Obtivemos sobre a superfície da curva uma imagem com uma plasticidade e uma vida excepcionais”[32].
Piscator acreditava que o cinema dava vida real ao teatro, potencializando a força presencial do elenco. Em Rasputin, ainda foi utilizado um “calendário”, um quadro sobre o qual foi aplicada uma tela, com largura de dois metros e meio e tão alto quanto a abertura da cena. O quadro podia avançar e recuar muito facilmente no lado direito do palco. O encenador explica em seu livro que este dispositivo se tornou necessário diante da impossibilidade de se dar ao material histórico toda a amplitude desejada: como eram muitos eventos militares e políticos, que tinham na peça uma função dramática, Piscator precisava de uma ferramenta especial, o quadro, para inserir na peça todos esses eventos, de preferência simultaneamente.
Em O Teatro Político, o encenador explica que havia uma tripla função para o filme no espetáculo:
“O filme didático mostra os fatos objetivos, os fatos atuais como os fatos históricos. Ele informa os espectadores sobre o assunto. (...) O filme didático amplia o assunto no espaço e no tempo. (...)
O filme dramático intervém no desenvolvimento da ação. Ele substitui a cena falada. Lá onde o teatro perde tempo em explicações e diálogos, o filme esclarece a situação através de algumas imagens rápidas. Apenas o mínimo necessário. (...) Este filme é projetado, entre ou durante as cenas, sobre a tela de gaze estendida entre o palco e o público. (...) É assim que o teatro se lança no plano da história.
O filme, preenchendo uma função sem ambiguidade, assegura uma transição com um terceiro procedimento cinematográfico, procedimento que terá um papel mais importante em Rasputin do que em Opa! Nós Vivemos, e que adquire uma significação nova.
O filme de comentário acompanha a ação à maneira de um coro. (...) Ele se dirige ao espectador, o interpela. (...) O filme de comentário atrai a atenção do espectador para as reviravoltas importantes da ação. (...) Ele critica, acusa, precisa as datas importantes, faz por vezes propaganda direta. O filme destinado a preencher esta função adotada em Rasputin adquiriu a forma de calendário. Ele deu visualidade à palavra. Superposto à imagem, ele produziu um novo contraste, patético ou satírico, de acordo com cada caso. (...) Mas acontece também que o filme de comentário renuncia totalmente ao texto... Com certeza, o filme permanecia como um documento, mas ela falava igualmente sua própria linguagem. Ele contradizia as palavras pronunciadas em cena. (...) Da mesma maneira que em Tempestade sobre Gottland, eu utilizei em Rasputin o filme como projeção do drama no futuro. O filme reduz a cena a seu verdadeiro conteúdo confrontando o espectador, ou com os protagonistas, ou com o destino futuro deles[33]”.
Em 23 de janeiro de 1928, estreia o espetáculo As Aventuras do Bravo Soldado Schweyk, no qual Piscator radicaliza ainda mais as suas experimentações cinematográficas: ele utiliza desenhos animados para sugerir o mundo grotesco e sem sentido do personagem-título.
Baseado em romance do escritor checo Jaroslav Hasek, a encenação contou com adaptação dramatúrgica assinada por Leo Lania, Gasbarra e Brecht, que também haviam trabalhado juntos em Rasputin. As Aventuras do Bravo Soldado Schweyk é uma sátira política com muita ação que utilizou um dispositivo cênico com tapetes rolantes. Piscator explica em O Teatro Político a sua nova obra:
“Dado que Hasek e seu herói Schweyk se situam além de todos os conceitos aceitos ou ultrapassados, e além de toda convenção, nós assistimos à confrontação do homem natural com os massacres e o militarismo contra-natureza, em uma ótica verdadeira, aquela em que tudo que parece ter um sentido se transforma em nonsense, o heroísmo em ridículo e a ordem divina do mundo em um asilo grotesco de loucos”[34].
Em texto incluído no livro O Teatro Político, Gasbarra conta que, para criar o mundo do soldado Schweyk, Piscator, “como era comum”, resolveu a questão através da utilização do filme, com a diferença que, no novo espetáculo, o encenador decidiu usar desenhos animados.
“Lá onde Hasek, no começo de cada capítulo, e sobre o tema de cada capítulo, intervém diretamente através das declarações do príncipe, Piscator fez projetar desenhos animados de George Grosz. Ele chegou a uma redução eficaz de todas as contradições contidas na peça. (Piscator, me parece útil lembrar aqui, alimentava há um certo tempo a intenção de só colocar em cena o personagem de Schweyk, todos os outros personagens aparecendo desde então sob a forma de desenhos animados.)
Em compensação, os parceiros de Schweyk, na medida em que eles não sustentavam a ação, foram representados por bonecas ou marionetes. Na origem, uma classificação mais rigorosa, correspondendo às diversas ideologias dos personagens, havia sido prevista”[35].
Piscator explica que “a significação do mundo que envolvia o herói, e que eu representava graças ao filme e ao jogo de marionetes”, estava ainda mais explícito na nova montagem do que em outros espetáculos, nos quais “os personagens se explicavam a partir deles mesmos”. As marionetes representavam “os tipos paralisados da vida social e política da antiga Áustria”, com diferentes níveis: “meia-marionete”, “tipos próximos da marionete”, “meio-homens”, sendo o soldado Schweyk o único ser humano a se opor a esse mundo fantástico. Para o encenador, Schweyk destrói tudo que representava autoridade, igreja, estado, exército, sem atacar ou negar nada, mas aprovando tudo incondicionalmente.
“O filme, por sua vez, se revelou muito importante para caracterizar o mundo que rodeava Schweyk. Apenas, eu não podia, desta vez, diante das exigências do tema, me contentar com um filme documentário e naturalista. O filme devia aqui participar do caráter satírico e caricatural da representação (...) a preferência foi dada a um desenho animado político e satírico. Autor: Grosz, evidentemente. (...) Mas o principal mérito de Grosz não residia somente na maneira genial com a qual ele havia tipificado as diferentes personagens; o êxito consistia principalmente na maneira com a qual ele destacava o personagem Schweyk, e o mundo que o rodeava, da contingência histórica; em outros termos, na maneira com a qual ele tinha estabelecido a ligação com uma realidade inflamada. (...)
Paralelamente ao filme de desenhos animados, utilizamos também, é claro, o filme naturalista, lá onde era preciso dar esta ou aquela atmosfera a esta ou aquela cena: ruas de Praga, viagem de trem, etc. Para essas cenas de rua, nós até havíamos enviado à Praga nosso operador, Hübber-Kahla. O cenário, quando havia o tapete rolante, necessitava de uma técnica de filmagem particular, que envolve grandes dificuldades. Nós tínhamos necessidade de imagens muito calmas, passando ao ritmo da caminhada. Mas como a câmera só podia ser transportada por um carro, e os paralelepípedos de Praga são no mínimo irregulares, isso resultou em tomadas em zigue-zague. Foi somente depois de várias decupagens repetidas das melhores sequências que nós pudemos obter um filme relativamente satisfatório.
Eu tentava, no final das contas, unir o filme naturalista e o filme de desenhos animados na caminhada sobre Budweiss, e também nas cenas de guerra no final. Na ‘anábase’[36] de Budweiss, eu fiz copiar, sobre as tomadas das paisagens, fileiras de árvores desenhadas, o que nos levava a mostrar com força e continuidade essa marcha sem esperança. No intervalo, o filme permitia passar bem naturalmente aos dispositivos desenhados.
Na última cena – esta ideia me veio então que, desesperado, eu queria a qualquer preço tentar salvar o fim do espetáculo, uma meia-hora antes do início da estreia – eu fiz projetar, sobre as imagens fixas (os corpos dos soldados mutilados), um filme contínuo de cruzes desenhadas, que corriam por assim dizer na direção dos espectadores. Nós esperamos ansiosos, na estreia, o efeito extraordinário que nós tínhamos acabado de ensaiar. Em vão. As tomadas fixas de paisagens apareceram, mesmo que pálidas demais, mas as cruzes não vieram. No fim da representação, nós soubemos que o operador, tendo completamente perdido a cabeça, tinha projetado o filme sem abrir o diafragma”[37].
George Grosz, autor dos desenhos, que havia participado do movimento dadaísta na Alemanha, uma influência distante, mas presente no pensamento e na obra de Piscator, comenta em texto incluído em O Teatro Político que “uma nostalgia wagneriana da obra de arte total” nunca havia abandonado o encenador.
Em abril de 1928, a estreia na Volksbühne de Conjuntura, definida pelo próprio Piscator como “a comédia da economia”, tendo o petróleo como tema. O espetáculo realiza um sonho do encenador, que talvez seja uma das gêneses do que hoje chamamos de processo colaborativo e que se tornou prática recorrente entre os grupos de teatro de São Paulo desde os anos 1990: a escritura do texto em parceria estreita com as intenções do diretor.
“A Revolução tomada como objeto de um mercado sórdido e, apesar de tudo, o triunfo da Revolução. A comédia, cujo título provisório era Vermelho contra Branco, se referia aos eventos da China, e colocava no centro da ação um general chinês caindo, na Inglaterra, nas mãos de um homem de negócios muito ativo que faz dele uma espécie de espantalho para os burgueses. As peripécias cômicas desta história, provocando a bancarrota do dito homem de negócios, constituía a estrutura da peça. (...) Foi aí o primeiro teste de aplicação de nossas ideias: o autor, encarregado pela direção do teatro de escrever uma peça, se aproximando da criação desta ‘peça de encomenda’, se mantém, desde a partida, em contato estreito com o encenador, e guarda presentes no espírito as condições e as possibilidades cênicas que foram definidas”[38].
A escritura dramatúrgica ficou sob a responsabilidade de Leo Lania e também contou com Brecht como colaborador. Piscator queria utilizar o filme “em perspectivas muito novas” no espetáculo.
“Como eu havia decidido fazer a ação se desenrolar segundo uma concepção cênica dinâmica, conferindo aos elementos do cenário uma significação particular, o filme não devia somente trazer à luz os planos de fundo da peça, nem se contentar em ampliá-los, ele devia também dar à comédia um ‘quadro’ fixo, no verdadeiro sentido da palavra.
Esta comédia de jornalismo, era preciso que ela se desenvolvesse a partir de um jornal, quer dizer que o arco da cena fosse completamente fechado por uma folha de jornal, mais exatamente por uma tela dividida, como uma folha de jornal, em diferentes colunas, em que cada uma corresponderia a uma área de jogo determinada. Então, na cena, se desenvolvia a luta entre os grupos rivais pela jazida de petróleo, na tela a guerra da imprensa entre a França e a Itália se desencadeava. Eu consegui com sorte uma visão geral extraordinariamente simples dos eventos enfim tornados concretos de maneira plástica, como em um manual escolar. A página do jornal, sempre sob os olhos do espectador, logo intacta, logo rasgada, abria a cena. A ação se inseria no lugar preciso onde terminava o comentário de jornal, e isto até que o jornal se inflamava, indicando que a revolução albanesa atingia seu ponto culminante através do incêndio dos poços de petróleo”[39].
Piscator estava muito entusiasmado com Conjuntura porque, pela primeira vez, segundo ele, um espetáculo era ambientado “no terreno da política econômica mundial contemporânea”. O encenador pregava cada vez mais uma experimentação técnica, mas com clareza, sem ambiguidade, para não perder a força política. “Se ele quer preencher sua missão pedagógica, o drama político não deve pegar como ponto de partida o indivíduo mas o documento”, insiste em seu livro. Conjuntura, no entanto, criou problemas políticos com a imagem da URSS, o que obrigou Piscator a mudar a dramaturgia. Nesse momento, Brecht foi uma espécie de deus ex machina: ele mudou o final da peça, tornando a personagem principal uma impostora, com o objetivo de não dar a impressão de que a URSS queria implantar a revolução nos países para se apossar do petróleo.
Em seguida, “a catástrofe”, nas palavras do próprio encenador. As dívidas da Piscator-Bühne se acumulavam. Ele identifica o grande erro: ter autorizado o diretor de produção a assumir o Lessing-Theater, que, de algum modo, passou a concorrer com a Piscator-Bühne.
“Tudo era experimentação, exploração de terras desconhecidas. As experiências custam caro... No teatro tanto como no mundo da técnica e da ciência, no qual é preciso investir somas importantes antes que o menor resultado comercial seja obtido. Podemos chamar de culpabilidade a extensão das minhas exigências? Para mim, um só objetivo foi determinante: dar ao nosso empreendimento, no plano da propaganda, a forma mais impactante e a mais eficaz”[40].
Cada vez mais influenciado pela sétima arte, Piscator tinha uma visão cinematográfica do palco como uma espécie de “diafragma que pode aumentar ou reduzir à vontade o arco da cena como a íris de um aparelho fotográfico”[41].
No fatídico ano de 1929, ele encena Mercador de Berlim. Trecho de crítica negativa publicada após a estreia: “Vocês sabem agora o que resta a vocês fazerem. Vejam O Encouraçado Potemkin”[42].
Mais de trinta anos depois, em 1962, o encenador escreve novo prefácio para O Teatro Político, no qual rejeita uma expressão que marcou a sua trajetória artística: “teatro de atualidade”.
“Minha intenção não tinha sido contudo jamais fazer um teatro jornalístico, e é com desagrado que eu via a expressão ‘teatro de atualidade’ substituir aquela de ‘teatro político’. É conveniente que as verdades mostradas por um real teatro político sobrevivam à atualidade. Ao me apegar a isso, eu me esforçava para fazer o meu teatro sobre princípios científicos e históricos, que guardam neles uma justificativa com um prazo mais longo, quer dizer uma justificativa artística”[43].
Ele lembra de palavras de Meierhold em seu balanço final: “Cada geração começa do zero e cada indivíduo por sua conta. Meierhold me dizia um dia: ‘Vejam vocês, a cada cinco anos, eu faço pessoalmente no palco uma revolução contra mim mesmo’.”[44].
Piscator lamenta não ter inaugurado uma parceria mais próxima e profunda com Brecht:
“Era preciso encontrar com urgência técnicas novas, técnicas de análise e de informação. Essas técnicas novas não apareceram do exterior como um estilo bruscamente inventado; elas se constituíram delas mesmas e se tornaram o fundamento do teatro épico. Meu amigo Bertolt Brecht chegou a uma concepção de teatro extremamente próxima da minha, assim como ele mesmo nota, em 1947, em uma carta que me enviou: ‘Deixe-me te dizer, de acordo com os bons princípios, que entre as pessoas que fizeram teatro durante esses vinte anos, ninguém foi tão próximo de mim como você’. Eu respondi a ele nesses termos: ‘Eu acredito, do meu lado, que nenhum autor se aproximou mais do que você da ideia que eu fazia do teatro’. Eu não admito mais que se faça distinção entre o autor e o diretor, e é por isso que eu lamentei que o acaso nos tenha impedido de colaborar, Brecht e eu, verdadeiramente. Em uma outra carta de Brecht, eu destaco o seguinte: ‘É difícil para eu imaginar que possa ser bem conduzida sem você uma luta coroada de sucesso contra o provincianismo vazio e por um grande teatro politicamente maduro’. Que arrependimento!”[45].
Em 27 de fevereiro de 1933, na noite do incêndio do Palácio de Reichstag, sede do parlamento alemão, episódio que ajudou a nazismo a chegar ao poder, foram até a casa de Piscator para prendê-lo. Outra pessoa estava dormindo em sua cama e logo foi encarcerada, mas depois solta. O encenador alemão estava na URSS preparando a produção de um filme. O primeiro projeto era uma adaptação de um dos últimos espetáculos de Piscator: Os Prisioneiros do Imperador, baseado “no grande romance da literatura universal sobre a guerra naval”, segundo o encenador. Como os soviéticos ficaram temerosos de problemas diplomáticos com a Alemanha, o filme acabou não acontecendo. Piscator decidiu então realizar o projeto A Revolta dos Pescadores de Santa Bárbara, adaptação da obra da escritora alemã Anna Seghers. O filme preconizava uma espécie de frente popular contra o partido nacional-socialista. Hitler chegou ao poder antes da conclusão do trabalho, lembra o encenador em seu livro.
“É claro, hoje ainda, inúmeros críticos, recusando-se a admitir o conteúdo político de A Revolta dos Pescadores, reconhecem a potência da expressão e seu valor artístico. Com distanciamento, o filme pode parecer muito próximo, no plano formal, a produções de Pudovkin e de Eisenstein. Mas na época esses filmes se diferenciavam nitidamente, estávamos ainda na transição entre o filme mudo e o filme falado, e eu encontrei dificuldades técnicas quanto dificuldades políticas. Os realizadores soviéticos ainda não estavam decididos a abandonar as grandiosas aquisições do cinema mudo. O diálogo ainda não havia adquirido a sua autonomia, ele era sobretudo considerado um obstáculo, em um tempo em que obedecíamos sempre ao método de decupagem através de sequências curtas”[46].
É interessante comentar que os personagens principais deste ensaio sobre teatro e cinema são Sergei Eisenstein e Erwin Piscator, e que os dois artistas se encontram, ou melhor, se falam ao telefone no livro do encenador alemão, na seguinte passagem narrada por Piscator sobre as dificuldades técnicas e políticas que ele enfrentou nas filmagens de A Revolta dos Pescadores de Santa Bárbara:
“Foi assim que se produziu um incidente quando eu quis mover a câmera: apavorada, a direção de produção e os outros colaboradores me desaconselharam. No meu desespero, eu telefonei a Eisenstein e expus a ele as minhas razões: eu queria, mais do que destacar certas partes do diálogo, religá-las graças ao movimento de câmera. Após um longo silêncio, a resposta me chegou, categórica: ‘A câmera permanece fixa, ela não se desloca’. E, de fato, durante quase dez anos, a câmera soviética não se deslocou, e foi preciso esperar muito tempo antes que a produção cinematográfica soviética adquirisse o mesmo controle no filme falado como no filme mudo de antigamente.
Alguns anos depois (devia ser por volta de 1936), eu vi o filme em Paris e obtive, tardiamente é claro, uma satisfação. Um sindicato de marinheiros-pescadores me ofereceu um presente, acompanhado deste comentário: ‘Há dez anos, em vão nós tentávamos organizar na Argélia, na Tunísia e no Marrocos um sindicato de marinheiros-pescadores. Mas no dia seguinte do dia em que nós tínhamos apresentado o seu filme, o sindicato foi fundado”[47].
A Revolta dos Pescadores de Santa Bárbara foi exibido pela primeira vez na Alemanha no dia 4 de março de 1960. Em O Teatro Político, Piscator inclui trechos de críticas que foram publicadas nos jornais na época do lançamento. Uma delas, do Die Welt, ressalta a força social dos closes e dos planos-detalhe do encenador alemão:
“Não é menos verdadeiro que com esta estreia tardia na Alemanha, Piscator obteve um sucesso pessoal grandioso [...]. Como Eisenstein, Piscator, então com 40 anos, havia compreendido e explorado a função de crítica social que pode adquirir o close-up. Como Eisenstein, na descrição do fuzilamento na escadaria de Odessa, Piscator liberta a interpretação de um evento não somente através de excelentes composições, mas através de associações de imagens obtidas com a ajuda da decupagem e da montagem. Ele consegue assim colocar em relevo certos detalhes. Partindo da mesma concepção do seu amigo russo, Piscator utilizou a cena de massa, rodada com mão de mestre, como tradução, como equivalente objetivo da ação coletiva. Tão fascinante como havia sido há dez anos, no Schauspielhaus de Bochum, as cenas de massa na peça de Georg Kaiser, Gaz, encenada por Piscator”[48].
Em 1937, em Nova York, Piscator trabalhava em um novo projeto de filme sobre As Aventuras do Bravo Soldado Schweyk, no qual Brecht deveria colaborar, como ele já havia feito na primeira versão em Berlim em 1929.
“Nesse ano, Brecht me visitou em Nova York e nós falamos de uma versão inteiramente nova: Schweyk na segunda guerra mundial, que nós queríamos montar juntos. Mas Brecht desapareceu, em direção à Hollywood, e o Schweyk americano não foi terminado a tempo, como Guerra e Paz”[49].
O Teatro Político termina com um texto curto escrito por Piscator em agosto de 1961, intitulado A arte de escutar, no qual faz uma reflexão sobre a fruição do espectador no teatro e no cinema:
“O fenômeno atual me parece poder se explicar através do fato de que em resumo nós conseguimos não mais representar que somente uma ação dramática, e ainda nos apegamos quase histericamente ao ritmo, ao excesso de mise en scène e às formulações lapidares. Nós assim renunciamos ao sentimento de conforto que deveria experimentar o espectador afundado na sua poltrona. No cinema, o espectador experimenta sempre esse sentimento, ver e escutar constitui um relaxamento, enquanto que no teatro o estado de tensão é permanente e acaba por criar uma espécie de desconforto. A história contada não deveria retomar a amplitude no teatro? O estilo épico não tem agora uma nova missão? Hoje mesmo, os sentimentos e os pensamentos não deveriam encontrar um campo mais vasto, na narração dos eventos essenciais (no plano político) ou dos eventos secundários em que todos disputam para provocar o conflito dramático? Eis o que presumiria sobretudo uma pesquisa do natural e da simplicidade. Isto, que não significa obrigatoriamente um retorno ao ‘primário’, suporia sobretudo uma pesquisa do natural e da simplicidade, na qual se encontraria excluída, em todo caso, a obsessão da formulação.
Se nós chegarmos a esse resultado, o homem escutará talvez com mais prazer. Não é preciso cansar o espectador se nós esperamos dele que reflita. Muito pelo contrário, para refletir, ele tem necessidade de relaxamento. Quando somos obrigados, durante o espetáculo, a um penoso trabalho de decifração, como nos tornaríamos inclinados à reflexão? O cérebro está, ele também, sentado em uma poltrona na plateia, ele exige que nós apresentemos a ele demoradamente e calmamente eventos claros nos quais ele possa se deter”[50].
É interessante a reflexão de Piscator e faz referência talvez ao excesso de conceituação que tomou conta do teatro (e da arte, de modo geral) após a disseminação das ideias e das estratégias de distanciamento engendradas por Bertolt Brecht.
No livro A Inversão da Olhadela – alterações no ato do espectador teatral, o pesquisador Flávio Desgranges lembra que o filósofo Walter Benjamin, influenciado por Brecht, vislumbrou no cinema a possibilidade de uma ampliação da semeadura social e política do teatro épico.
“Benjamin, ao entrar em contato com as primeiras produções cinematográficas – em especial os filmes mudos de Chaplin e de cineastas soviéticos –, vislumbrava o cinema como espaço propício para a efetivação de um ato artístico coletivo, em que o público seria o protagonista do evento. Entendia que ‘o alcance histórico dessa refuncionalização da arte’ seria ‘especialmente visível no cinema’. O filme poderia servir ‘para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais na sua vida cotidiana’. Concebia a sala de cinema como espaço privilegiado para que os espectadores, as únicas pessoas efetivamente presentes no local, fossem tomados como os legítimos autores do acontecimento. (...) O cinema conseguiria, dessa maneira, efetivar em máxima potência os intentos não ilusionistas propostos pelos encenadores teatrais modernos”[51].
Walter Benjamin acreditava que “a natureza ilusionística do cinema é de segunda ordem e está no resultado da montagem[52]”. Com todo respeito ao grande ensaísta, filósofo, sociólogo, crítico literário e tradutor, seu vaticínio se revelou ingênuo e até mesmo infundado.
A potência ilusionística do cinema é uma das especificidades mais evidentes de sua linguagem audiovisual, na qual os espectadores acabam ficando em um estado de pré-hipnose diante de sons e imagens em movimento em função de um defeito nas próprias retinas. Hollywood é uma prova disso.
Vários artistas tentaram fazer da sétima arte um instrumento de choque de realidade, e Erwin Piscator foi certamente um dos pioneiros mais importantes. Um cineasta radical como Dziga Vertov, outro exemplo, acreditava que a arte cinematográfica era a mais fiel tradução da teoria da relatividade de Einstein (não confundir com Eisenstein) em todos os corpos, trens, carros e paisagens que são projetados em uma tela na velocidade da luz. Energia = massa na velocidade da luz. Vertov rejeitou todo tipo de dispositivo ficcional mais explícito e fez obras-primas somente com imagens da vida cotidiana. Acreditava piamente que a objetividade do olhar da câmera e o processo de montagem conseguiam reordenar o instável e até mesmo caótico olhar humano, incapaz de observar duas ações simultâneas, tendo sempre que escolher entre uma ou outra, para que as pessoas pudessem por fim ver a “verdade” na tela grande das salas de projeção.
Influenciado por Vertov e por Brecht, Jean-Luc Godard, principalmente nos anos 1960, tentou fazer da fruição cinematográfica um ato de reflexão política. Realizou diversos filmes que eram antimodelos brechtianos contra o ilusionismo dos gêneros hollywoodianos.
O cineasta argentino Fernando Birri chegou a realizar um projeto no qual tentava fustigar os olhos dos espectadores com imagens que explodiam em luzes incômodas na sala escura: Org (1979). Protagonizado por ninguém menos que Terence Hill, ou melhor, o galã Mario Girotti, que depois esteve à frente de diversos títulos do chamado spaghetti western, Org acabou sendo alvo de uma intensa batalha judicial em função da insatisfação do ator que também era um dos produtores do filme.
Talvez o diretor mais brechtiano da História do Cinema seja o sérvio Dusan Makavejev, realizador de títulos com provocativas intenções antiilusionistas como W. R. – Mistérios do Organismo (1971), baseado na obra de Wilhelm Reich, e Sweet Movie (1974).
Outro exemplo do legado brechtiano (e também piscatoriano, a gênese do teatro épico) no cinema contemporâneo é Dogville, de Lars Von Trier, livremente inspirado em canções do dramaturgo alemão. Construído de maneira antiilusionista com riscos no chão para indicar os cenários em um imenso estúdio cinematográfico, o filme só não se tornou um tedioso teatro filmado graças à leveza das novas tecnologias digitais, que possibilitaram filmagens muito próximas dos corpos das atrizes e dos atores (principalmente a protagonista vivida por Nicole Kidman), que foram captados como uma estranha e bela paisagem minimalista. Dogville parte de uma atmosfera antiilusionista para inaugurar outra modalidade de ilusionismo mais estranhado, terminando como um libelo contra o imperialismo norte-americano.
Em tempos digitais, é interessante tentar aprofundar a reflexão de Erwin Piscator sobre o espectador dos anos 1960. Após as experimentações com choques de realidade do encenador alemão e, principalmente, depois da epicização brechtiana que foi uma espécie de divisor de águas não apenas no teatro mas na arte, de maneira geral, como lidar com a figura do espectador nos dias de hoje? Após tantas iconoclastias que transformaram as vanguardas em peças de museu, em meio a um campo previsível de estilhaços e de pastiches de tantas revoluções que ficaram no passado. Ainda em meio à virtualidade dessa sociedade do espetáculo contemporânea, sempre com tanta fome documentária, ficções respaldadas em muletas documentais, nas quais o antiilusionismo virou uma nova modalidade de ilusionismo, uma forma de desconstruir para potencializar por vezes ainda mais o mundo das aparências, que tem o simulacro do “real” como um de seus elementos de composição mais cobiçados.
Nos anos 1960, Piscator denuncia um excesso de conceituação no teatro, como se houvesse uma hiperinflação de elementos cifrados e racionalistas sendo despejados sobre o cérebro do espectador. Sabiamente, ele nos lembra que o cérebro faz parte do corpo, e que esse corpo precisa relaxar para se entregar ao espetáculo, para poder fruí-lo e recriá-lo na própria tela mental, em um processo em que emoção, razão, memória e imaginação estão indissociavelmente ligadas.
O teatro é uma linguagem antiilusionista por excelência, no qual sempre vemos todos os artifícios expostos, mesmo na encenação psicológica mais naturalista. O cinema, por sua vez, é ontologicamente ilusionista, embora tenha nascido das trevas do teatro, também fruto do casamento da lanterna mágica com a câmera cronofotográfica, que gerou o cinematógrafo como arte do tempo com seus efeitos de realidade.
As experimentações cênicas e cinematográficas de Erwin Piscator, suas combinações de jogos teatrais e fílmicos, com projeções prolongando e ampliando a perspectiva do palco, são filões artísticos de um visionário que podem indicar novos caminhos para a arte contemporânea, sempre tão marcada pelo hibridismo de linguagens. A visão política do encenador, que jamais esteve dissociada dos seus impulsos como artista, é também um permanente alento de idealismo em meio a todo esse mercantilismo consumista que tomou conta do mundo em que vivemos.