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HUMBERTO MAURO E AS IMAGENS DO BRASIL

05.08.2004
Por Carlos Alberto Mattos
A HISTÓRIA É CACHOEIRA

Marc Ferro, a maior referência mundial nos estudos sobre a relação entre cinema e história, costuma dizer que não há salvação fora do estudo dos arquivos. “Sem arquivos, não há legitimidade”, escreveu. E completou: “O problema do estudo dos arquivos é o de verificar sua credibilidade. Para isso, é preciso confrontá-los a outros arquivos e não retirá-los do seu contexto”.



Sheila Schvarzman, historiadora e professora da Unicamp, parece ser uma devotada cumpridora dos preceitos de Ferro, com quem estudou em Paris. Seu compromisso com a pesquisa de fontes primárias e a vasta contextualização de suas afirmações fazem de Humberto Mauro e as Imagens do Brasil um estudo que já nasce clássico. Poucos livros sobre a filmografia brasileira podem se orgulhar de que, neles, a História ilumine o cinema na mesma medida em que o cinema esclarece a História.



Em trabalho que partiu de uma tese de doutorado, a autora não se limita a analisar os detalhes mais significativos de cada filme de Mauro. Ela vai buscar nos arquivos de instituições, em acervos de correspondência particular e nas páginas de ideólogos – muitos dos quais hoje esquecidos pela historiografia dominante – as informações que dão conta de todo um projeto de construção do país através das imagens cinematográficas. Um projeto de que Humberto Mauro participou ora como seguidor vacilante, ora como artífice principal, ora como objeto de monumentalização e culto na fronteira entre o artístico e o político.



A cada uma dessas fases, Sheila oferece uma leitura que amplia o até então conhecido ou mesmo questiona algumas verdades aparentemente cristalizadas. Sua crença básica é a de que a carreira do “pioneiro de Cataguases”, o “pai do cinema brasileiro” – e não são poucos os epítetos conferidos a Mauro – documentou não apenas a história do cinema brasileiro, mas “sobretudo as tensões de como construir a imagem do país no cinema”. Na etapa em que trabalhou para a Cinédia de Adhemar Gonzaga (Braza Dormida, Ganga Bruta), Sheila vai encontrar um Mauro bem distante do estereótipo de poeta campestre que o acompanharia no final da vida, em boa parte difundido por Paulo Emílio Salles Gomes. O que temos ali é um cineasta razoavelmente afinado com o desejo de modernidade que animava a militância da revista Cinearte e também agitava o pensamento das elites brasileiras nas décadas de 1920 e 1930. Ao mesmo tempo, Mauro criava seus espaços para subverter aqui e ali as orientações de Gonzaga, inserindo-se como autor.



Desse empreendimento de modernização pela superfície e pelo elogio da indústria contra o “atraso” rural, Humberto Mauro vai se transferir, de armas e bagagens, para a construção de outra utopia no seio do Instituto de Cinema Educativo (Ince). Sheila Schvarzman procede, então, a um levantamento muito bem fundamentado do projeto de Roquette-Pinto para utilizar o cinema como ferramenta de educação popular, saneamento eugênico e afirmação positivista da identidade nacional durante o governo Vargas. É nesse período que a autora joga a âncora de sua ressintonização historiográfica.



De um lado, Sheila contesta uma visão corrente que situa os filmes do Ince como uma fase menor, não propriamente constitutiva, da carreira de Mauro. Vai demonstrar, por exemplo, como a filmagem de assuntos científicos ajudou a formar o olhar do diretor diante da Natureza. De outro lado, aponta a estratégica e dissimulada omissão desses filmes no retrato mitológico que se construiu de Mauro à época do Cinema Novo, quando Paulo Emílio teria criado o “mito de origem” para o cinema brasileiro. Os filmes do Ince, por seu caráter oficial e por veicularem um país de natureza exuberante e vultos insignes, mas esvaziado de povo e de realidade, melhor seria esquecê-los.



A abordagem da última fase, onde se destacam as Brasilianas e A Velha a Fiar, vai mostrar como a musicalidade do cinema maureano não apenas ecoa uma maneira própria, romântica, de ver o país, mas também coaduna-se com um ideário de recuperação já antecipado por Mário de Andrade e Villa-Lobos.



Entre rupturas, continuidades e ressonâncias, a extensa filmografia do cineasta é aqui revisitada com um olhar, digamos, menos “interessado” e mais abrangente que o de Paulo Emílio no seu igualmente magistral Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, livro que o de Sheila prolonga e matiza. Ao mesmo tempo, Humberto Mauro e as Imagens do Brasil é uma obra a partir de agora referencial para quem quiser compreender o cinema brasileiro não como uma manifestação casual e insuficiente, mas como expressão da convivência dialética entre os poderes constituídos e individualidades como a de Mauro. É o cinema também como terreno onde se engalfinham as forças empenhadas na edificação de uma idéia de nação.



Nunca é demais sublinhar a fatura literária de um livro que transpõe o formato acadêmico para chegar ao texto límpido, escorreito e envolvente. Se, para Humberto Mauro, cinema era cachoeira, para Sheila Schvarzman a História é um filme que se desdobra com prazer nas mãos do leitor.





HUMBERTO MAURO E AS IMAGENS DO BRASIL

Autora: SHEILA SCHVARZMAN

Editora Unesp, SP, 2004

398 páginas

Preço: R$ 49,00

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