Se um já é complexo, imagine então o que seria acompanhar o desenrolar da cerimônia de Dois Casamentos. Ou melhor, a espera do início da cerimônia na sacristia enquanto seus noivos não vem.
Após vinte anos sem fazer um longa-metragem, Luiz Rosemberg Filho volta com um projeto de cinema/teatro. Com o apoio e estímulo do produtor Cavi Borges que solicitou uma ideia economicamente viável, o roteiro surge durante uma viagem a Ribeirão Preto quando, sentado num banco de praça, Rosemberg escuta uma mulher conversando com outra, onde esta revela ser apenas através do casamento a única saída de uma vida de privações e a possibilidade de mudança. Sair de uma cidade acanhada e, num bom matrimônio, ganhar a cidade grande.
Na montagem, acompanhamos o diálogo entre duas noivas com personalidades distintas que se debatem entre o mar e o rochedo. Não por acaso - e, por sorte, um acaso - o cenário onde se passa a trama comporta uma grande rocha que brota no meio do palco. Filmado no Teatro Floresta em Rio das Pedras (RJ), este elemento cenográfico natural penetra como um totem irrompendo o clima noir, soturno; onde tudo acontece. Um corte epistemológico que, com sua dureza, contrasta com a maleabilidade das situações e circunstâncias. A cada momento elas se adaptam e se convertem uma na imagem da outra: um autêntico exercício de conversação/conversão.
O discurso político-afetivo do diretor aparece por meio da necessidade de se romper o hábito, "diálogos-panfletos" e palavras escritas tatuadas uma no corpo da outra: impressões-cicatrizes. Marcas que funcionam como ritos de passagem. Logo na abertura do filme, lemos à frase da filósofa búlgaro-francesa Julia Kristeva, aquela que preconiza estar toda subjetividade ancorada no corpo. Corpo e linguagem como um bloco único interagindo e, nesse movimento, o surgimento do ato transformador. Mesmo com todo palavreado que brota da tela/palco, o olhar tendencioso dirigido ao sexo feminino nota-se na seguinte frase: "o silêncio das mulheres". Algo que apenas um ouvido generoso como o do diretor poderia atribuir a este gênero reconhecido - inclusive cientificamente falando - como aquele onde as palavras são uma ferramenta bem mais desenvolvida se comparado ao sexo masculino.
O aspecto teatral-alienante da festa é reforçado pelas imagens em negativo que encerram a trama. O vestido branco, nesta virada, se transforma em negro luto. Neste tributo à melancolia, o filme homônimo do diretor Lars Von Trier - Melancholia (2011) -, nos veem à mente quando logo na abertura havia uma limousine tentando avançar numa estrada exígua e, como consequência, fica ali estagnada, encalhada. A metáfora das Bodas como algo de inadequação ao livre curso da vida. Um embate entre natureza e cultura. Como se apenas deixando o livre curso dos acontecimentos, nada aconteceria. E percebemos - assim como no filme de Rosemberg -, o sentimento de melancolia que exala todo o tempo da encenação. O casamento como o túmulo do sexo, mas necessário para a garantia da prole/família: um paradoxo contido em si mesmo.
Depois de mais de uma década gestando um trabalho de fôlego, Rosemberg mostra seu valor. Além de um longa-metragem, uma peça teatral está sendo encenada simultaneamente, mostrando, assim, que um projeto múltiplo e versátil ratifica suas impressões do que seja uma cerimônia-performance. A exemplo do dramaturgo americano David Mamet, que encara projetos casados de cinema/teatro, temos aí um brasileiro que também começa sua empreitada no mundo das artes cinematográficas e cênicas com o mesmo vigor que sempre imprimiu em suas realizações.
Marcia Vitari é mestre em comunicação e cultura, jornalista e tem contos incluídos nas antologias do Clube da Leitura, volumes I e II