A narrativa de Na Próxima, Acerto no Coração (título original: La prochaine fois je viserai le coeur, França, 2014) é estruturada a partir da superposição em um mesmo personagem de um assassino sexual serial e o policial responsável pela investigação: um homem normal à primeira vista, um policial militar disciplinado da “gendarmerie”, corpo de elite da polícia civil francesa; mas é ele, dentro da patrulha, quem pratica os crimes ao invés de vigiar e punir.
Assim abrem-se duas linhas de relacionamento do espectador com o filme. Uma é a que estabelece o espectador que desconhece tratar-se de uma história baseada em fatos reais relatados pelos jornais e pelo livro de Yvan Stefanovich - o que o leva a usufruir o filme como uma ficção cinematográfica do gênero policial, sem maiores delongas. A outra é a do espectador informado de que se trata de fato verídico que ocorreu durante vários meses, entre 1978 e 1979, aterrorizando os moradores do Oise, na França.
Dessa última perspectiva evidencia-se a pertinência do diretor Cédric Anger em acentuar a dissimulação excessiva do policial assassino Franck Neuhart (Guillaume Canet), um personagem psicopata que se adequa muito bem à sua função de ficar encarregado de investigar os assassinatos cometidos por ele mesmo, sem o peso da culpa, o que determina os outros aspectos, como o da frieza e o da secura. De forma racional, mesmo que patológica, Franck Neuhart usa o próprio conhecimento de investigação policial para encobrir seus crimes. A morte em série não lhe coloca em risco diante de sua impotência de tornar erotizável seus fantasmas amorosos e sexuais, problemática evidenciada sobretudo com Sophie, encarnada por Ana Girardot, com quem se pode perceber a intrincada presença da pulsão de destruição não erotizada que tanto modela a vida impiedosa do psicopata, quanto também instaura a relação de forças despropocionais das origens psíquicas que tornam possível os campos de extermínio no social.
É nesta tensão que se evidenciam os mecanismos de construção de um olhar voyeurista no espectador exercendo uma espécie de supervisão policial ao acompanhar a busca para descobrir, no decorrer da investigação, de quem é o traço criminal: do policial ou do psicopata assassino. Há um compromisso constituído como sintoma entre uma defesa (a denegação) e a emergência de produtos das representações inconscientes sob a forma de pensamentos e ações associados à mortandade na desumanidade.
Dinara Guimarães é psicanalista e autora de livros sobre cinema e psicanálise