Convidados


VOZ NA LUZ

16.10.2004
Por Carlos Alberto Mattos
PARA ALÉM DOS SONS

A psicanálise e o cinema nasceram praticamente ao mesmo tempo e, mais que isso, parecem irmãos siameses unidos pelo liame do sonho. Entre as muitas disciplinas do conhecimento com que o cinema tem estabelecido interfaces, a psicanálise é sem dúvida uma das mais freqüentes e férteis. Embora a grande maioria dos estudos na área privilegiem a psicologia dos personagens ficcionais ou a análise psicanalítica das razões do criador-cineasta, existe um ramo de investigação ainda mais profundo: é o que toma a própria natureza do cinema como lugar de interseção entre o real, o simbólico e o imaginário.



O trabalho de Dinara Machado Guimarães pertence a essa última e mais nobre estirpe. Dinara não é apenas uma psicanalista que usa o cinema como campo de observação. Antes disso, é uma cinéfila de mão cheia, daquelas que não se permitem perder nada de importante, freqüentam festivais e não dispensam uma boa conversa à saída de cada filme. Daí que o cinema, para ela, não seja mero instrumento a serviço de outra categoria do conhecimento, mas objeto de hipóteses teóricas apenas mediadas pela psicanálise, e que se voltam, em última análise, para o cinema mesmo.



Suas reflexões estão disponíveis em dois livros. Um deles, Vazio Iluminado, teve sua segunda edição lançada este ano e propõe uma nova teoria do olhar baseada no “algo mais” que o cinema oferece – o vazio inacessível à visão, mas cheio de significados. O outro livro, Voz na Luz, redireciona seu método para uma fronteira ainda mais remota que aquela do olhar. Aqui Dinara especula sobre alguma coisa que antecede o olhar, qual seja a estruturação do pensamento entendida como “voz”.



Parte considerável do investimento teórico da autora é dedicado a alargar o conceito de voz na produção ficcional (e não apenas no cinema). Recorre basicamente a Lacan (“quem introduz na psicanálise a concepção de voz como um objeto”) para configurar a idéia de voz (a)sonora, isto é, aquela que ecoa à revelia da existência de uma boca, de um aparelho fonador ou mesmo do sistema auditivo do espectador. São vozes freqüentemente sem palavras. Vozes que não coincidem com corpos, nem sequer com os corpos imaginados no extra-quadro de uma cena (as chamadas vozes off). A partir dessa definição libertadora, o conceito se abre para uma infinidade de alternativas, que exprimiriam, ao fim e ao cabo, a alteridade. A voz de que fala Dinara é invariavelmente a voz de um Outro.



Vale a pena vencer as pedregosas 18 páginas do primeiro capítulo, onde a autora fundamenta sua análise nas teorias de Freud, Lacan e Merleau-Ponty com uma enunciação e um jargão pouco acessíveis, pelo menos a não-iniciados nos estudos psicanalíticos. No segundo capítulo, onde o risco maior é a síntese excessiva, Dinara resume e discute alguns pressupostos teóricos de Jean-Louis Baudry, Christian Metz, Serge Daney, Pascal Bonitzer e Michel Chion. Explora, ainda, o diálogo entre Salvador Dalí e Lacan para concluir que a razão paranóica do pintor seria resultado da ação de vozes.



Ao desembarcar em sua antologia de aplicações cinematográficas, Dinara tem o leitor enfim enredado em sua argumentação. É hora de desfiar o seu cortejo de vozes. Nos filmes seminais de Griffith, ela vai apontar a construção de uma “voz da consciência moral” que dispensa a audição ou compreensão das palavras ditas pelos personagens. Construção que, por sua característica não-sonora, começou justamente no período do cinema mudo e rege a parcela dominante do cinema narrativo norte-americano até hoje. Metropolis, de Fritz Lang, merece uma das melhores análises do livro, quando mostra como os elementos visuais denunciam a voz de comando do nazismo sobre a massa mecanizada. O irracionalismo dos sonhos, o ciúme delirante e a fantasia paranóica são vozes determinantes nos filmes de Buñuel, assim como a voz da memória fala alto na obra de Alain Resnais e o silêncio carrega uma voz onírica nos filmes da cineasta-bailarina Maya Deren.



A voz, para Dinara, é também o que comanda o impulso criador. Ela oferece exemplos cristalinos em Marguerite Duras e Federico Fellini. Em Duras, sublinha a criação literária como “escuta” interna e, no cinema, a invenção de vozes exteriores à narrativa. Em Fellini, destaca a sensação do diretor de ser “habitado por um hóspede obscuro” na hora de dirigir suas cenas. Fellini é comparado, então, a um ventríloquo que vocaliza “a memória do mundo à sua volta ao tentar intuir o intruso que cada um é de si mesmo ou o estranhamento consigo”. Godard, por sua vez, é objeto de insights iluminadores a respeito da música como princípio de organização de pensamento e do agenciamento de outros autores como “vozes” entremeadas à do próprio cineasta.



A invocação de vozes transcendentes e o surgimento de vozes da ausência são tratados em filmes de Carl Dreyer e em exemplares de terror moderno. A voz do “supereu materno” mereceria um desenvolvimento menos confuso a partir de Psicose, de Alfred Hitchcock. A arregimentação de alguns exemplos não chega a se justificar com suficiente clareza. São os casos, ainda, de Alma Corsária, de Carlos Reichenbach, e Orfeu, de Cacá Diegues, em que a abordagem interessante teima em escapar, porém, ao escopo da voz.



Em matéria de texto, Voz na Luz dá sinais, aqui e ali, de um certo truncamento, além de cochilos de revisão que não estão à altura da densidade de idéias presente em suas páginas. Mas isso está longe de solapar a originalidade com que Dinara Machado Guimarães contribui para o diálogo entre a luz do cinema e a algaravia de vozes que ressoa dentro de cada um de nós.





# VOZ NA LUZ – Psicanálise e Cinema

Autoria: DINARA MACHADO GUIMARÃES

Editora: GARAMOND

Rio de Janeiro, 2004

188 páginas

Preço: 27 reais

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