Quando o Teatro de Revista e suas vedetes entram em decadência, os shows de travestis no Teatro Rival - que é pioneiro no teatro de variedades no Brasil da década de 60 - ganham fôlego. E para comemorar os 70 anos do espaço, é montado o espetáculo “Divinas Divas”, que celebra 50 anos de carreira das atrizes Rogéria, Valéria, Jane Di Castro, Camille K, Fujika de Holliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios. E é nos ensaios para o espetáculo que começa o trabalho de registro da atriz agora diretora Leandra Leal, que faz um tributo ao avô Leandro Leal, que criou esta efervescente casa noturna. A nossa CBGB local, tendo a mesma atmosfera underground que havia na época da casa nova-iorquina; quando pela Cinelândia pululavam pessoas entre seus cinemas, bares e clubes.
Assim, Leandra, sem gritos mas no diapasão sussurros, vai desfiando sua urdidura de memórias e afetos. Desde o início das filmagens ela já havia decidido como seria o primeiro e o último take, mas não predeterminou o caminho que deixou ser afetado pelas contingências ao longo do percurso. Filmava quando dava, quando tinha um intervalo entre uma gravação e outra de novela ou filme. Tudo num ritmo decantado, já que ali estava diante do que considera sua família estendida. Leal aos instintos dos afetos sensíveis, apresenta o amor como algo revolucionário. Através do olhar de divas que nunca lhe foram estranhas por terem suas vidas interligadas desde a infância. Onde viveu as passagens mais fortes na tenra idade: nos bastidores, à beira do palco.
Diferente do universo competitivo que vislumbramos com frequência nas relações artísticas, o que vemos ali são oito artistas que se ajudam e se protegem. Tanto que uma foi levando a outra para se apresentar em Paris. Jane levou Eloína, que levou Rogéria, que chamou Valéria. Camille por muito tempo cuidou de pessoas com Aids. Marquesa tinha um conjugado na Glória que chegou a abrigar 20 pessoas. Solidárias, sabem a força e necessidade de manter alianças. Jane esperou a nova legislação para casar no civil com Otávio, um homem sensível que chora durante as gravações e não tem vergonha de camuflar seu afeto pela companheira de quatro décadas. Fabrício tem um olhar deslumbrado por Camille. Todas parecem conciliadas com a própria natureza e não mediram esforços pela arte e dor na transformação física. Tanto que se submetem como cobaias injetando hormônios, vendo algumas de suas amigas morrerem por um risco que, então, ainda não imaginado.
A diretora tem como ponto de partida uma observação wisemaniana. Mas, diferente do trabalho que encontramos no filme Crazy Horse, de Frederick Wiseman, no qual ele transita por um dos cabarés mais famosos do mundo com distância e desencanto. A atriz Leandra Leal - que sempre quis fazer coisas em que esteja comprometida até o fim e com a sensação de que saiu com a potência máxima do momento -, filmou por dez anos. Depois de levar seis meses decupando 400 horas de material e a um mês do lançamento, quando já estava com corte fechado, mixagem, corrigido, cor certa, decidiu inserir seu depoimento em off. Percebeu que também deveria se expor como os personagens contando sua história pessoal e envolvimento naquele projeto que, mais do que ficção – sua ideia original -, deveria ser um documentário sobre o que é ser atriz, ser dona de teatro. Pois, como dizia sua mãe, a também atriz Ângela Leal: “é mais que herança, é uma missão”.
Assuntos delicados e pouco comuns são abordados. Tanto que teve dificuldade para conseguir financiamento. Questões de gênero e velhice não são vendáveis numa sociedade que enaltece a juventude. Mas, mesmo sendo o primeiro trabalho em direção da atriz, ela soube montar uma equipe competente, tanto que já angariou diversos prêmios em festivais e mostras. Vale ressaltar o desenho sonoro feito por Vinícius Leal e Jesse Marmo, a trilha pertinente do Plínio Profeta e a captação direta do Felippe Schultz Mussel que garantiu o registro de conversas trocadas ao léu e que permitiram enfocar o aspecto intimista da obra.
É um filme de fã. A câmera está na coxia como um voyeur que se faz invisível. A intimidade diante de um universo que circulou desde criança - onde ficava no camarim enquanto a mãe atuava no palco -, lhe permite captar de forma natural falas e sentimentos com delicadeza pouco vista desde os filmes do Eduardo Coutinho. São reflexões sobre o envelhecer com dignidade, um mosaico geracional que dá conta de um discurso político de um Brasil que na época atravessava uma ditadura. Com sua costumeira abordagem direta, Rogéria fala que seus shows representavam uma espécie de respiro num momento tão combalido. A mesma função que o filme pode exercer no momento atual. Com romantismo, para elas o palco e a arte valem qualquer sacrifício. Elas se colocam num lugar que é inabalável: o de Diva como possibilidade de sobrevivência. São Divinas.
Marcia Vitari é jornalista, mestre em comunicação e cultura e tem contos incluídos nas antologias do Clube da Leitura, volumes I e II