Indo direto ao ponto: o principal interesse em conhecer o DVD com o filme Vidas em Fuga, realizado em 1959 por Sidney Lumet, com base em uma peça menos conhecida de Tennesse Williams, está na participação da atriz Anna Magnani (1904-1973).
Nome mítico do cinema italiano do pós-guerra a partir do definidor Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, a grande Magnani já podia ser vista em outros lançamentos nacionais de DVDs: alguns saíram no Brasil mais recentemente, como Carruagem de Ouro, de Jean Renoir; outros mais antigos, como Mamma Roma, de Pasolini, Belíssima e em um dos episódios de Nós, as Mulheres - estes dois últimos dirigidos por Luchino Visconti - além, obviamente, do filme de Rossellini que viria a influenciar enormemente o cinema de seu país e também a Nouvelle Vague francesa, o “Cinema Novo” brasileiro (e os “cinemas novos” de vários países), repercutindo, dreta ou indiretamente até mesmo em produções norte-americanas.
Magnani não chegou a ser uma “estrela” como suas conterrâneas com maiores atrativos físicos no estilo Sophia Loren. Mas seis anos antes de Sophia ganhar um inesperado Oscar, La Magnani era uma "diva" que já havia recebido o seu por Rosa Tatuada, de 1955, também com texto original de Tennessee Williams. O dramaturgo havia escrito esta peça para a atriz representar o papel de ´Serafina´, mas ela nunca o encenou nos palcos americanos por sua dificuldade com a língua inglesa.
Nada mais natural que houvesse grandes expectativas sobre Vidas em Fuga quanto à reunião de Magnani com Marlon Brando cuja carreira havia se firmado definitivamente em outro texto de Williams, Uma Rua chamada Pecado, filme de 1951. A peça original é mais conhecida no Brasil como "Um Bonde chamado Desejo".
Mas Orpheus Descending, título original da peça que deu origem ao filme de Lumet, já havia fracassado na Broadway em 1957, assim como em sua versão mais antiga de 1940 chamada de "Battle of Angels". Mesmo rebatizando o filme como The Fugitive Kind e apostando as fichas no elenco que ainda traz Joanne Woodward e Maureen Stapleton, o fracasso se repetiu, tanto junto ao público como aos olhos da crítica e no ranking de premiações.
Williams fazia sucesso nos palcos graças à ousadia (para a época) de suas peças, ousadia que se repetia (ainda que atenuada por modificações às vezes mutiladoras) nos roteiros adaptados para Hollywood. A maioria do que escreveu pode soar datado hoje em dia, em grande parte devido aos excessos de “simbolismos” um tanto piegas e situações que soam bem menos “realistas” do que antes, beirando a inverossimilhança e o gosto duvidoso. Curiosamente, este texto mal-sucedido parece menos “carregado” dos defeitos de Williams, embora não se possa esquecer a alusão a Orfeu no título da peça e a presença de metáforas óbvias em alguns diálogos, como a que fala de um pássaro sem pernas que nunca pode deixar de voar, sem nunca pousar na terra, só o fazendo para morrer. O insistentemente comentado casaco de pele de cobra do personagem de Brando também é uma alusão críptica da duvidosa poesia do escritor.
Quem só conhecesse Brando por este seu papel talvez não pudesse entender a fama de grande ator que cerca seu nome. No auge do sucesso inicial na década de 1950, no ano em que este filme foi feito em ´59 sua carreira começava a sofrer os primeiros abalos que resultariam em um período bem insatisfatório pelos dez anos seguintes e antes dos papéis novamente consagradores de Último Tango em Paris, Apocalypse Now e do primeiro Poderoso Chefão. Em Vidas em Fuga ele está “comendo as palavras” mais do que nunca, transmitindo um meio-termo entre o tédio desencantado do personagem e a indiferença de um ator que se julga acima do bem e do mal.
Já Magnani aparece como intérprete totalmente intuitiva, sem recorrer ao “método” do Actor’s Studio (que por vezes atrapalhava mais do que ajudava alguns atores da época), e se mostra maior do que a vida, maior do que o filme, maior do que Brando. O filme ganha uma força surpreendente quando ela inicia o primeiro longo diálogo com o ator - e ao longo do qual - parece até que ele se despe de parte de sua arrogância e pretensão para se deixar contagiar pelo pathos da atriz. Talvez ela também possa ter se beneficiado da única personagem mais bidimensional, bem mais do que um mero “tipo” esquemático como os outros do texto da peça. Mas sua ´Lady´ vai mais além ainda e se transforma em um ser humano tridimensional.
Nem mesmo a evolução do envolvimento entre os personagens de Maganani e Brando é bem definida pelos diálogos, sendo que na primeira cena ele parece querer seduzi-la de modo ostensivo e até mesmo grosseiro – mas bem mais adiante as falas dele sugerem que resiste e se mostra indignado com a entrega dela. Para Magnani, nada disso importa, ela parece sempre absolutamente verdadeira seja na recusa inicial, seja na entrega.
Cabe ressaltar que o filme não chega a ser exatamente “ruim”: sofre de uma certa solenidade do cineasta que se pretendia respeitoso para com um “grande texto” – que nem é tão grande, pelo contrário. Lumet estava em seu quarto filme para as telas, ainda trabalhando muito para a televisão, e certamente queria se firmar como diretor acima de média. Sua longa carreira bastante irregular traria excelentes filmes em número bem menor do que outros com resultado mediano ou mesmo grandes desacertos. Já bem idoso ainda é capaz de brilhar novamente com Antes que o Diabo saiba que você já morreu, exibido no Festival do Rio de 2007.
No elenco, ainda cabe destacar os esforços de Joanne Woodward que surge em overacting em sua primeira cena, mas atinge maior autenticidade para sua personagem sem muito relevo, um estereótipo comum nas peças de Williams: a moça de aristocracia sulista bem-nascida que se transforma em “ovelha negra” mas revela verdades ocultas sob a hipocrisia...
Maureen Stapleton tem um desempenho algo apagado em uma personagem secundária e cujo desenvolvimento abrupto perto do final surge "do nada". Surpreende saber que esta - em outras oportunidades, ótima - atriz tenha criado nos palcos, com elogios, o papel que Magnani encarna no filme. Assim como o papel de Rosa Tatuada.
A fotografia do grande Boris Kaufman (que trabalhou muito com Lumet, em 12 Homens e uma Sentença, O Homem do Prego, Longa Jornada Noite Adentro e O Grupo - além deste filme) aparece excelente no DVD e a música correta e eficiente de Kenyon Hopkins é bem utilizada (descontando-se os exageros da época).
O filme evolui mais satisfatoriamente no clímax do drama com uma boa cena final, que infelizmente se prolonga em um epílogo dispensável que só serve para colocar o letreiro de “The End”. O ritmo mais lento dos filmes de então não chega a cansar o público mais tolerante com filmes antigos, mesmo que não sejam obras maiores e sempre vale esperar pela próxima cena da Magnani.
Impressiona saber que ela tentou seduzir Brando durante as filmagens, mas que ele não a achava atraente; e que Tennessee Williams, amigo da atriz, irritou-se com o ator por achar que sua articulação das palavras, mais enroloada do que nunca nos diálogos com Magnani, visavam atrapalhar a interpretação dela (com suas dificuldades no inglês). Mas a criação que Anna Magnani empresta à personagem paira acima de todas as deficiências e problemas e faz de sua presença um atrativo indispensável que justificaria, por si só, conhecer este filme.