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PRISÃO – PORQUE O 6º FILME DE BERGMAN É CONSIDERADO "O PRIMEIRO"

10.07.2010
Por Luiz Fernando Gallego
O FUTURO NO PASSADO

Apenas sobre a abertura do filme: escuta-se um som seco breve, estridente e metálico - em um amplo espaço deserto, açoitado pelo vento, sob uma luz fria e difusa, caminha um senhor idoso. Ele se dirige a uma grande construção mal definida, uma espécie de galpão.



Quando ele entra o espectador se dá conta de que é um estúdio de filmagens: há maquinistas transportando pedaços de cenários, técnicos testando a iluminação; mal se percebe algo que talvez seja uma claquete (e seu som quando é fechada) - e em seguida, o tal senhor abre uma porta que é parte de uma parede-cenário; e tão logo ele a atravessa, a “parede” (com a porta) se desloca para a esquerda, carregada por operários.



Ele cumprimenta um homem que estava dirigindo uma cena e que o reconhece como seu antigo professor de matemática. Este se diz egresso de um “sanatório” (termo ambíguo nas legendas e que de fato seria um asilo psiquiátrico). Ele veio sugerir a seu ex-aluno um tema para ser filmado: o inferno.



Assim começa Prisão (Fängelse, título original), de 1948, o primeiro filme verdadeiramente de autor de Ingmar Bergman – ou seja, aquele em que direção, argumento e roteiro são assinados pelo cineasta.



Na já clássica monografia de Jacques Siclier sobre o cineasta (1961, Éditions Universitaires, Paris), um capítulo inteiro (cuja descrição do prólogo do filme foi parafraseada acima) é dedicado a esta obra que, se ainda não é exatamente uma das muitas “obras-primas” de Bergman, merece ser considerada como uma excepcional “opera prima” (primeira obra) do grande realizador sueco, de quando ele tinha trinta anos de idade.



Cabe assinalar que o que foi resumido anteriormente ainda não é o filme propriamente dito. O idoso professor ainda vai discorrer, sob olhares sarcásticos e risos de membros da equipe de filmagem, sobre sua concepção de como seria o tal filme sobre o inferno: um inferno absolutamente prosaico e cotidiano, com o mundo terreno dominado por Lúcifer e, de certa forma, ligado ao (na época) recente holocausto atômico de Hiroshima. Quem lançou a bomba seria condenado pelo próprio diabo, só que por ter propiciado “a saída mais fácil” (a morte) - motivo pelo qual a bomba também seria proibida aos humanos.



O demo não fecharia as igrejas nem baniria as religiões que, “na verdade, vêm promovendo seu sucesso”. Os conceitos de “certo e errado, mal ou pecado” seriam mantidos para que não fossem negados à humanidade tais “pontos de referência”.



Questionado se o capeta teria “uma plataforma como fazem todos os políticos”, o idoso afirma que “não ter uma plataforma é o segredo do sucesso” de Satã – e acrescenta que “seu oponente perdeu, provavelmente porque tinha muitas plataformas”.



Por que chamá-lo de ‘Maléfico’ se êle é uma força “benevolente em satisfazer nossas necessidades mais íntimas”? Deus está “morto ou derrotado” e a vida não passa de “um arco cruel e sensual do berço ao túmulo, uma grande obra-prima cômica, bela e hedionda, sem misericórdia ou sentido” – e daí... há o diabo, “um símbolo ou um testa-de-ferro” que “já reina sobre este inferno que é... a Terra”.



Vale aproximar algumas idéias tangenciais expostas no filme sobre o que seria o “inferno” do século XX, segundo Bergman(*) com trechos geniais de A Igreja do Diabo, um dos grandes contos “filosóficos” de nosso Machado de Assis.



Mas ainda estamos com menos de seis minutos de filme e, antes dos créditos, temos outra cena, em que o diretor de cinema comenta com um amigo jornalista, Thomas, e a companheira deste, Sofie (Eva Henning), a proposta “impossível” do velho, sendo que Thomas (Birger Malmsten, ator-assinatura da primeira fase de Bergman) tem um artigo que não conseguiu concluir sobre uma jovem prostituta explorada por seu namorado e pela “cunhada”, totalmente amorais. O espectador vê um flash-back da entrevista com a moça, Birgitta Karolina (Doris Svedlund), mas o cineasta do filme diz não ter encontrado material para rodar nada a partir do que Thomas lhe conta.



Com mais de 10 minutos de filme é que a ficha técnica e os créditos são informados por uma voz em off: não surgem escritos na tela, tal como, 18 anos depois, em Farenheit 451 - porque na história filmada por Truffaut a partir do romance de Ray Bradbury, a leitura e a escrita estariam interditadas. Em Prisão, há um filme, ainda em processo, dentro do filme que estamos assisitindo - e que talvez nunca se realize: quais créditos registrar?



Os nomes da equipe são enunciados simultanemante a um longo travelling para frente em uma rua cheia de lojas e a mesma voz masculina informa que “esta foi a introdução de nosso filme” e que estamos agora em “um meio-dia nublado de dezembro, quando todos estão com pressa”. Em uma esquina, a câmera se detém e a voz anuncia: “Vejam: é Brigitta Karolina - que se apóia em uma parede.



O filme propriamente dito vai começar, com enredos paralelos sobre a jovem prostituta e o casal Thomas e Sofie. Estes dois atores interpretarão outro casal (muito semelhante) no filme seguinte de Bergman, Sede de Paixões (1949), centrado na discussão do casamento, tema ao qual ele frequentemente retornaria.



Aliás, a maior importância de Prisão está no seu caráter seminal: praticamente toda a obra bergmaniana está resumida e antecipada neste pequeno grande filme de apenas 80 minutos.



É verdade que o desenvolvimento do enredo em sua parte central ainda engloba lances algo moralistas e melodramáticos dos cinco filmes anteriores que ele dirigiu antes, provavelmente atendendo ao ideário cinematográfico sueco do pós-guerra, influenciado pelo cinema francês de Marcel Carné e Jacques Prévert (Cais das Sombras, Le Jour se leve, Os Visitantes da Noite, Boulevard do Crime/Les Enfants du Paradis).



Mas Bergman foge da breve influência do neo-realismo italiano de Rossellini que se encontrava em seu longa anterior (Porto). O que se vê agora, conforme o título do capítulo em que Siclier analisa Prisão é Pirandello (sem pirandelismos vulgares) e Sartre - sem que “o inferno sejam os outros” na forma de compreensão equivocada sobre a alteridade que tanto irritava Sartre, já que para o filósofo, sua famosa frase pretendia apontar para o risco de congelamento do ser (em sua auto-imagem) na imagem especular em que os outros tendem a nos aprisionar. Quando nos submetemos a isso é que “o inferno são os outros”.



Mas, além de Nietzsche (“deus está morto ou derrotado”), o que norteia o filme é mesmo... Bergman - ou melhor dizendo: o futuro Bergman.



A morte faz sua primeira aparição, muito antes de O Sétimo Selo (1957) em um pequeno filme mudo de pastelão (que Bergman mesmo realizou) mas que, na diegese do enredo, seria antigo e visto em uma máquina de projeção da infância de Thomas (equivalente à “lanterna mágica” da infância do diretor e que é o título de sua autobiografia, além de vista em Fanny e Alexander, de 1982).



Este filmete seria reutilizado 18 anos depois, em trechos de Persona, radicalização de uma proposta mais do que a pirandelliana de Prisão (em que há personagens à procura de um autor). Mais do que apontar para “filmes dentro de filmes”, Bergman tentaria um “distanciamento” brechtiano na forma de Persona e na dos subsequentes Hora do Lobo (’67), Vergonha (’68) e Paixão de Ana (1969).



Mas algum “distanciamento” já se insinuava no filme de 1948: afinal, como diz Siclier, “ Prisão é a história de um filme que poderia ter sido feito, mas jamais se fará” - e que, no entanto, é visto pelo espectador quando tem acesso às vidas de Thomas, Sofie e Birgitta Karolina".



Já mencionamos os casais em crise de Sede de Paixões, um tema recorrente na filmografia do autor, seja em Quando as Mulheres esperam (’52), Sorrisos de uma Noite de Amor (’55) ou, principalmente, em Cenas de um casamento (’73) - dentre outros. Sonhos “strindbergianos” - ou cenas oniróides -, tal como em Morangos Silvestres (’57) e tantos outros de seus filmes, também tem importância visual e narrativa em Prisão.



Mais do que no enredo, que pode soar um pouco datado para muitos, a forma da narrativa visual - e as idéias - permanecem atuais: a maturidade cinematográfica de Bergman já se faz notar antes mesmo de ter encantado o crítico de cinema Jean-Luc Godard com Juventude (’51) e Monica e o Desejo (’53); e antes das obras-primas da década de 1950 que vão de Noites de Circo (’53) a Morangos Silvestres, passando por Sorrisos... e Sétimo Selo, para não mencionarmos a “trilogia do silêncio de Deus” do início da década de ’60 (Através de um Espelho, Luz de Inverno e O Silêncio): mas Deus já está “morto ou derrotado”, uma impossibilidade silenciosa em Prisão.



Até mesmo a intriga do filme é defendida por Siclier no sentido de que “a originalidade do argumento não reside no casal em revolta contra a sociedade, nem no personagem ‘simbólico’ do professor, nem no clima “noir” da prostituta, cafetão, indivíduos inadaptados, alcoolismo e desespero; mas na utilização das situações já conhecidas como, ao mesmo tempo, uma demonstração e um inventário: trata-se de um ‘filme-chave’. Podemos não conhecer seus filmes anteriores sem que se perca algo de essencial, mas não se pode conhecer e compreender Bergman sem ter visto Prisão onde encontramos a posição do homem e do artista Bergman: desconcertante, mas tal como o conhecemos hoje.” (Siclier, 1961)

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(*)Mais detalhes do discurso do personagem sobre o tema podem ser vistos por quem alugar ou adquirir o DVD da Versátil Home Vídeo, recentemente lançado no Brasil em telecinagem que preserva a qualidade fotográfica e sonora do original – e que só foi exibido no Brasil por ocasião de uma mostra Bergman pelo grupo Estação Botafogo há bem mais de dez anos – e que parece não existir em DVD nos EUA – onde é chamado de The Devil’s Wanton, embora já tenha sido lançado na Europa - como em Portugal - Um dvd desta origem foi cedido por Julio Miranda em uma homenagem que promovemos na Sociedade Brasileira de Psicanálise do RJ em 2007 quando da morte do cineasta).



DVD Versátil em preto & branco (original), 78 minutos.

Áudio original em sueco com legendas em português.

Extras: quase os mesmos de outros filmes de Bergman lançados pela Versátil: slides de vida e obra e trailers de outros DVDs. Esta distribuidora vem lançando, em 2010, um filme de Bergman por mês, dentre os menos conhecidos e mais antigos, em ordem cronológica (excetuando-se desta ordenação os que já foram lançados anteriormente) sendo o próximo, Sede de Paixões.

OBS.: Geralmente os lançamentos da Versátil, com raras exceções parciais, têm ótima qualidade de som e imagem, diferentemente dos videos de outras lançadoras nacionais de filmes “clássicos” em formato dvd - e que são verdadeiros “piratas”. Voltaremos ao tema em um próximo artigo sobre Infâmia, de William Wyler, na primeira versão de 1936, que foi copiada de um canal de TV a cabo – diferentemente da versão de 1961 do mesmo cineasta, lançada com boa qualidade pela Versátil.







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