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NOSTALGIA DA LUZ

02.10.2010
Por Luiz Fernando Gallego
NOSTALGIA DO GERÚNDIO

O email recebido:



"Gostei do tom trágico-romantico do documentário. No entanto, tenho minhas dúvidas sobre esta teoria de memória, presente e passado. Por mais respeito e admiração que tenha pelos familiares que buscam enterrar seus mortos ( e eu não os compararia a Polinices), aí está uma diferença clara entre a escolha deles e o que seria a minha. Existem outras formas de memória. Outras "arqueologias." Viajar no tempo mirando com o telescópio as estrelas que já não existem mais e cujos sinais só agora nos alcançam é emocionante e diverso da busca às ossadas. Nesse caso astronomico é como sentir vivamente que se habita uma estreita lamina do presente e poder se sentir privilegiado com isso, reverente. Realmente, eu não misturaria as metáforas, analogias, seja o que forem os tres eventos distintos retratados no filme."



Resposta de Luiz Fernando Gallego:



Você poderia ter razão se o filme Nostalgia da Luz apenas estabelecesse analogias por justaposição, mas não é bem o caso: o que é dado a ver é uma "sincronia tópica", se podemos falar mesmo em tempo do (ou no) espaço.



É fato registrado que naquele mesmo topos peculiar (a única mancha marron na Terra vista do espaço, tal a ausência de água e de verde) estão lá astrônomos, arqueólogos e as que eu chamei de "antígonas". Uma delas conta que, há algum tempo, recebeu a notícia de que encontraram a mandíbula de seu irmão e diz: "eu não quero a mandíbula, quero ele inteiro para enterrar". Difícil, porque os carrascos de Pinochet (e nem mencionei isso na breve resenha que pode ser lida no espaço da "Mostra Panorama" do festival 2010, mas é informado no filme) enterraram - mas depois, no final da ditadura, para confundir as pistas de seus massacres, desenterraram os corpos e ossadas das valas comuns (também existentes no Iraque de Saddan e procuradas pelas mulheres, sempre elas, carpindo com o coração, e vistas no filme Filho da Babilonia - outro momento pungente deste Festival, mas em outra linhagem, mais "rosselliniana") .



E o que os militares-torturadores e assassinos do Chile fizeram com os restos mortais desenterrados? Espalharam a mistura de ossos pelo deserto... Outros "lotes" eles teriam jogado no mar... Reitero que esses mortos sem sepultura são Polinyces, porque elas são novas Antígonas e Polinyces só é considerado "traidor" do ponto de vista de Etéocles e de Creonte, o ponto de vista da "História dos Vencedores" - mesmo que Etéocles tenha morrido também; mas por suas hostes terem vencido, ele mereceu o enterro digno. Já Polinyces, caso tivesse morrido mas sua tropa fosse vitoriosa, ele teria o enterrro dos heróis e Antígona teria que enterrar o corpo abandonado (também no deserto, para ser comido pelos abutres) de... Eteócles. Essa é a grandeza "supra-partidaria" de Antígona.



Outro trecho dramático em um filme que caminha de modo plácido e calmo, sem ênfases pleonásticas, é narrado por outra irmã (sempre elas, mulheres piedosas como as que enterraram Cristo - e duas das retratadas no filme são mesmo irmãs dos seus mortos, tal como Antígona era dos seus). Ela recebera o pé do morto, ainda dentro de um tênis, ambos bem ressecados e preservados, e conta que o acariciou, apesar de dizer que tinha "cheiro de decomposição" . Pois fora do deserto o material orgânico conservado perde o clima que o mantinha semi-hígido, e os "desaparecidos" ainda encontrados em valas podem ser vistos com as mãos ainda amarradas e/ou braços levantados em atitude de defesa instintiva e desesperada . Essa insistência seria fruto da morbidez de mulheres obstinadas? Luto patológico? Ou apenas o direito de tentar proceder ao ritual do luto, algo tão ancestral quanto outros aspectos que consideramos fundadores do que chamamos de civilização humana?



Concordaria que as estrelas dos astrônomos, os materiais ancestrais procurados pelos arqueólogos e os restos de perseguidos políticos, verticalizados em analogias poderiam redundar em uma justaposição gratuita de ideias e climas emocionais distintos. Mas é fato que tudo isso está ocorrendo lá, naquele mesmo lugar tão peculiar, e é dessa "co-incidência" factual que parte o documentário. E que ainda comenta a presença de Cálcio na estrutura das estrelas - e nos ossos humanos. Outra co-incidência? Fatos, curiosidades, pretextos que sejam: para falar da necessidade de termos um passado na memória, para continuarmos a existir no presente fugidio e termos perspectiva de um futuro que não se perca antes do devir. O filme, afinal, é um gerúndio.

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