O finado fusca de chapa 1348 era um fusca como outro qualquer. Não participou de guerras nem revoluções, não transportou presidentes nem celebridades. Nem mesmo se envolveu em acidentes de grande repercussão. Era um fusquinha, apenas. Mas o Fusca da Volkswagen, de maneira geral, não foi um carro qualquer. Materialização de um ideal pesquisado desde os anos 1930, na Alemanha de Hitler, começou a ser fabricado em 1940. Chegou ao Brasil dez anos depois, já consagrado como o modelo mais econômico e resistente da história automobilística – sinônimo de o mais popular. A nacionalização de sua produção foi uma das bandeiras do desenvolvimentismo na era Kubitscheck. Para muitos brasileiros, o fusca virou símbolo de emancipação pessoal e mobilidade social.
É essa mitologia que justifica a escolha do 1348 (as letras da chapa mudaram com o tempo) para protagonista e dispositivo narrativo deste filme. Através da história de seus oito donos entre 1965 e 2007, Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso fazem um corte longitudinal da sociedade urbana brasileira. O fusca aparece como detonador de memórias e visões de mundo, ao mesmo tempo em que explicita uma dinâmica no ciclo dos sonhos de consumo. É interessante verificar como ao envelhecimento do carro corresponde uma regressão na escala econômica dos sucessivos proprietários, terminando com um nono herdeiro que é mencionado apenas visualmente: as formigas do ferro-velho. Com poucas exceções – como as formigas –, o fusca teve para cada dono um papel semelhante de realização e conforto.
Entre os estados de São Paulo e Pernambuco, a trajetória do 1348 revela um pouco do Brasil em quatro décadas. Do ufanismo dos anos 1960 à era da regeneração evangélica, passando por temas como a imigração, a ascensão social, a corrupção política e até a vaidade feminina. Há um bocado de sorte no encontro desses personagens, mas também um elogio à pesquisa como base de um bom documentário. E ainda um cuidado na composição de imagens e sons que passa muito ao largo do amadorismo disfarçado de espontaneísmo como tanto vemos por aí.
Os dois diretores lançam aqui a pedra fundamental de uma construção que iriam edificar com seus futuros filmes, especialmente Um Lugar ao Sol, de Mascaro, e Pacific, de Pedroso. A posse de um bem ou o desfrute de um passeio servem de atalho para os cineastas chegarem às práticas sociais e ao imaginário dos personagens, com destaque para os de classe média, segmento relativamente pouco visitado pelo documentário no Brasil. Não se trata de definir o homem pelo consumo, como faria um sociólogo grosseiro, mas de procurar na relação com os bens materiais uma maneira de estar no mundo, uma forma de se viver o que se entende por felicidade.
A estratégia de construção dos personagens em KFZ 1348 é curiosa. Numa primeira rodada, somos apresentados a cada um, em ordem cronológica de posse do carro. Quando a história parece já inteiramente contada, voltamos a eles, em ordem mais livre, para que conheçamos uma camada a mais de suas personalidades e histórias. Frestas são abertas para a intimidade dessas pessoas, adensando os perfis que podem ser rápidos, mas não necessariamente superficiais.
KFZ 1348 pertence a uma linhagem das mais interessantes no documentário brasileiro contemporâneo, que eu chamo de “documentário de rede de pessoas”. Nesse tipo de filme, os personagens estão reunidos, em princípio, não pela sua especificidade individual, mas por relações reais ou virtuais que os aproximam. Estariam ali não pelo que são, mas pelo que têm em comum. Os melhores desses filmes são os que, como KFZ 1348, conseguem reverter essa lógica, fazendo, no fim das contas, as pessoas serem mais interessantes que o vínculo entre elas. E olha que o vínculo aqui é também um personagem e tanto: o fusca de 43 anos de idade que chega a seu destino final diante de nossos olhos. Os proprietários contam com nosso interesse e curiosidade, mas nossa ternura, confessemos, fica com o fusquinha.