DVD/Blu-ray


CERIMÔNIA SECRETA

11.11.2011
Por Luiz Fernando Gallego
A TERRÍVEL NECESSIDADE QUE OS HUMANOS TÊM DE OUTROS SERES HUMANOS

O realismo não é como são as coisas factualmente, mas como verdadeiramente são as coisas

Bertolt Brecht



A “Coleção Cult Classics” vem lançando vários DVDs de filmes esquecidos onde alguns são mesmo “clássicos” que fazem jus ao rótulo - ou seja, não são apenas filmes antigos. É o caso deste Cerimônia Secreta. E apesar da telecinagem não ser a ideal (e não faz justiça plena à fotografia do filme), das legendas com erros de digitação, da sinopse absurda da contracapa (que induz a equívocos sobre o roteiro que já é elíptico) vale a pena alugar para conhecer (ou rever) um dos filmes menos citados e reconhecidos na obra do – atualmente também pouco lembrado – Joseph Losey.

Lançado em 1968, traz Elizabeth Taylor (talvez no melhor desempenho de sua carreira), Mia Farrow (excepcional) e Robert Mitchum, além de pequenas participações de atrizes inglesas mais veteranas na época das filmagens, como Pamela Brown e Peggy Ashcroft (que participou desde Os 39 Degraus, de Hitchcock, em 1935, até Passagem para a Índia, de David Lean, em ’84 - quando recebeu um prêmio BAFTA e um Oscar de atriz coadjuvante).

A longa carreira de Losey no cinema, em filmes de longa-metragem, implica em três fases:

a) Entre 1948 e 1951 filmou nos Estados Unidos, seu país de origem e de onde se exilou em caráter definitivo após a perseguição McCarthysta aos que acreditavam no comunismo como uma forma mais justa de organização social. Nesta época, rodou uma adaptação de M – o Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, com o título de apenas M, também lançado em DVD no Brasil pela mesma “Cult Classics” e que pode surpreender aos que esperavam uma pálida cópia do original alemão. Não é nada pálido e traz um desempenho marcante de David Wayne no papel equivalente ao tão característico de Peter Lorre no filme de Lang - mas com outra caracterização psicológica.

b) Uma primeira fase européia (1952-1962) quando precisou recorrer inicialmente a pseudônimos, pois mesmo na Inglaterra era impossível trabalhar como perseguido do McCarthysmo. Já assinados com seu nome, À Sombra da Forca (1957) e Eva (’62), este com Jeanne Moreau, foram lançados entre nós em DVD pela Lume Filmes, mas este último nunca teve exibida a versão do cineasta - e o que ele julgava que poderia ser seu melhor filme do período foi todo cortado e adulterado pelos produtores.

c) O reconhecimento surgiu finalmente com O Criado, de 1963, inaugurando uma parceria de três filmes tendo Harold Pinter como roteirista, sendo os outros dois, Estranho Acidente e O Mensageiro, Palma de Ouro em Cannes ‘71.

Entre altos (King and Country, jamais exibido comercialmente entre nós, e Mr. Klein, admirável colaboração com o roteirista de A Batalha de Argel e O Bandido Giuliano, Franco Solinas, e com o ator Alain Delon também como produtor) e baixos (O Homem que veio de longe) – estes dois últimos disponíveis em DVD no Brasil – o saldo é de uma obra consistente, mesmo em momentos de frustração. Dentre estes, Cerimônia Secreta é, por vezes, muito injustamente colocado, quando deveria ser alçado ao lado das obras-primas O Criado, O Mensageiro e Mr. Klein.

A fotografia admirável de Garry Fisher – com quem Losey trabalhou em Casa de Bonecas, Acidente, Mr. Klein e O Mensageiro - ao lado da direção de arte de John Clark (Tommy, de Ken Russell), utilizando a ambientação insólita de uma casa que existia de fato em Londres na época, e o roteiro de George Tabori (de A Tortura do Silêncio, de Hitchcock) baseado em um obscuro conto de origem argentina que lembra um mixto de Bioy Casares e Cortazar, fazem do lançamento em DVD de Cerimônia Secreta um fato importante, embora a apresentação técnica do produto não seja de primeira ordem.

Cabe lembrar que Losey ficou naturalmente muito indignado com o que os produtores do filme fizeram ao exibi-lo na TV americana, enxertando cenas onde dois atores em papéis de um psiquiatra e de um advogado discutiam a história, como que “explicando” o comportamento dos personagens.

Losey afirma que, para ele, o assunto do filme é a terrível necessidade que os seres humanos têm de outros seres humanos (**) dizendo da “dificuldade em satisfazer este desejo quando sua necessidade se manifesta em nosso mundo hostil”,

Ele dirigiu a primeira montagem teatral da peça de Brecht sobre A Vida de Galileu em 1947 e dizia (**) que seu cinema recebeu influências do teatro de Brecht, mencionado-as em vários itens que culminam no último deles:



1º) A importância do gesto preciso;

2º) A economia de movimentos, tanto dos atores como da câmera; nada se mexendo sem um objetivo;

3º) Fluidez na composição;

4º) A justaposição dos contrastes graças à montagem como a forma mais simples de obter o célebre “efeito de distanciamento”;

5º) A exaltação da realidade para compreendê-la.



Tudo isto para atingir



6º) A ampliação da visão do olhar individual.



A busca de propiciar o olhar individual é coerente com outra declaração sua onde diz(**) que “se existe um talento teatral ou cinematográfico, ele deve comportar um engajamento social; mas hoje em dia, isto não é mais tão simples, pois não há mais respostas prontas, fáceis ou completas e ninguém pode dar respostas para ninguém: quer se trate dos pais aos filhos, dos professores aos alunos, ou dos teólogos aos iniciados. Pode-se apenas dar um estímulo. E eu creio que o melhor estímulo é uma criação artística completa, vale dizer, forma e emoção que conduzirão os que vêem e entendem a uma reflexão mais aprofundada - eis porque as várias interpretações de um filme são perfeitamente adequadas se são boas, mesmo que sejam estranhas às intenções do autor.”

Posteriormente decepcionado e “profundamente envergonhado” (*) com o stalinismo, não abandonou suas críticas às diferenças sociais, tendo abordado este problema em vários de seus filmes, sem dogmatismo nem sectarismo, promovendo aproximações sutis da questão - sem deixar de lado a pesquisa formal exigente e a investigação de áreas obscuras do psiquismo de seus personagens, embora sempre pontuando os determinantes sociais que também participaram na estruturação de suas personalidades.(*)

Em uma entrevista a propósito de Cerimônia Secreta, concordava(*) que ‘Cenci’ (Mia Farrow) fazia parte de uma aristocracia decadente e acrescentava: “O conflito entre a classe média e as elites é bem mais complexo que o conflito entre a classe operária e a classe média. A classe operária não tem mais ilusões: sabe que jamais terá o lugar dos senhores e sabe que morre por fome. Mas a classe média tem o seu conforto e prosperidade medidos pelos padrões das elites”.

Em vários de seus filmes encontramos a situação de um personagem que, para sobreviver, acha que deve morar numa casa protegida e se colocar lá dentro para fugir à violência do mundo - até o dia em que um personagem de fora se introduz, ultrapassa as paredes e quebra com a suposta proteção intra-muros. (**) Esta alegoria se repetiu em O Homem que veio de Longe e até na polêmica versão de O Assassinato de Trotsky. Em O Criado, a morte psíquica e a decadência moral, tal como em Eva.

Com a exceção óbvia do personagem Trotsky, os encastelados eram de uma elite alienada tanto social como psiquicamente, cujo exemplo mais intenso e mais típico é ‘Cenci’. Sobre ela, disse Losey: “Eu e Mia Farrow a concebemos como uma esquizofrênica histérica que parecesse normal em alguns momentos. ‘Leonora’ (Elizabeth Taylor) não é certamente sadia nem normal por aceitar uma vida esquizofrênica onde ela deve adotar uma outra personalidade. Sendo assim, é uma história de esquemas que se repetem como parte de um ritual, já que o ritual é, em si, uma repetição”. (*)

Enquanto repetição obsessiva de um ritual através do qual uma filha quer reencontrar a mãe morta e uma mãe pretende reencontrar a filha que se afogara, a folie à deux as protege – temporariamente - de se defrontarem com suas perdas e com uma falta ainda maior do que a perda de uma pessoa significativa emocionalmente: a falta de uma estrutura de personalidade própria. Uma se utiliza da outra como prótese, num espaço ambíguo entre o jogo de faz-de-conta e o faz-de-conta que não é um jogo.

O retorno de uma figura masculina como a do padrasto (Robert Mirchum) pode reorganizar as transferências psicóticas para uma configuração edípica em vez de simbiótica; mas ele é pervertido, tão ou mais excitado do que a enteada pela possibilidade do incesto. De qualquer forma, ele vai desfazer a simbiose entre ‘Cenci’ e suas mães: tanto a substituta quanto a original, cuja morte ela parece aceitar ao ir visitar seu túmulo. Ao mesmo tempo, a dissolução da simbiose vai lançá-la no abismo em que sua vida já vinha mergulhando.



O parágrafo seguinte pode não ser de interesse para quem ainda não conhece o enredo do filme (SPOILER)



A ruptura promovida pela “mãe”-Leonora ao desfazer uma gravidez imaginária de Cenci induz a jovem a trocar o jogo histérico de sedução pela busca do coito incestuoso - e ‘Leonora’ falha em sua promessa de não perder uma filha pela segunda vez, condenando-se a ser irremediavelmente só. Como um dos ratos da fábula que ela menciona: ambos cairam em uma tina de leite, e o que se debateu a ponto de transformar o leite pérvio ao afogamento em manteiga mais sólida para vir a caminhar sobre ela sobreviveu sozinho – enquanto o outro ratinho que gritava por socorro se deixou afogar...



BIBLIOGRAFIA UTILIZADA



(*) - CIMENT, Michel - “LE LIVRE DE LOSEY” - Éd Stock, France,1985, páginas 7, 331-337.

(**) - LEDIEU, Christien - “JOSEPH LOSEY” (Coleção ‘Grandes Cineastas’ - vol.: II) - Ed. Record, Rio de Janeiro, sem data (1974?) páginas 60-70, 75-92, 104, 139-140, 142, 146.

WRIGHT, Elizabeth - “PSYCHOANALYTIC CRITICISM: THEORY IN PRACTICE” - Methuen, N.York, 1984, pág.17

GALLEGO, L. F. - texto apresentado em debate na SociedadeBrasileira de Psicanálise do RJ, atividade PSICANÁLISE & CINEMA, 29/05/1998.

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