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AS CHAMAS DA VINGANÇA SEM O CALOR HUMANO DA LEI

21.08.2012
Por Luiz Fernando Gallego
AS CHAMAS DA VINGANÇA SEM O CALOR HUMANO DA LEI

A trágica morte do cineasta Tony Scott poderá talvez provocar uma revisão emotiva sobre sua carreira, até então pouco valorizada pela crítica (exceto pelo cult com vampiros mais atuais, Fome de Viver, e pelo roteiro de Tarantino que ele filmou, Amor à queima-roupa. Mas vai ser difícil afastar a ideia de que fazia filmes de ação bem produzidos e pouco mais do que isso. Eventualmente permitindo uma leitura de entrelinhas nada favorável. Como no texto escrito em 2004 para o Jornal do Brasil que aqui republicamos:



Chamas da Vingança (título original: Man on Fire), de Tony Scott, conta a estória da fúria narcisista de um guarda-costas que não conseguiu evitar o seqüestro da criança que ele acompanhava. A partir de tal frustração ele retorna à sua implacável mecânica de “máquina de matar”: afinal, é um ex-agente com muitos serviços prestados a Tio Sam em territórios fora dos EUA; e no papel de “justiceiro” tudo lhe é permitido: torturar sadicamente para obter informações e até mesmo matar criminosos abjetos de modo igualmente abjeto - por exemplo, com explosivo no ânus!...



Segundo Freud, o ódio é, cronologicamente, um sentimento bem precoce na história psíquica de cada um de nós, despertado por tudo que é vivido como “ruim” apenas porque não se coaduna com nossos desejos egocêntricos. Nesta “lógica” solipsista tudo estaria justificado; e nos adultos com fortes traços de narcisismo arcaico, as reações de fúria narcisista se manifestam intensamente como subproduto do amor-próprio ferido. Talvez esta premissa se aplique às nações. E ao personagem central deste filme, interpretado por Denzel Washington.



No já longínquo ano de 1915, David Griffith lançou Nascimento de uma Nação, obra que consolidava e definia a então incipiente linguagem cinematográfica. Mas seu enredo era lamentavelmente racista, mostrando um negro – escravo - que tentava violentar uma moça branca; e isto como que “justificava” a Ku Klux Klan ! Se não foi exatamente assim que nasceu a nação norte-americana, este foi o nascimento do cinema americano. O diretor Tony Scott, competente artesão na linguagem de videoclipe e propaganda, não é equiparável ao “pai” da sintaxe do Cinema; mas quase noventa anos depois (OBS: lembramos que este texto é de 2004), pode-se constatar o que permanece imutável no ideário norteamericano, assim como na dissociação entre a forma cinematográfica capaz de envolver o espectador e o conteúdo de muitos filmes portadores de preconceitos bem maquiados e azeitados para penetrar corações e mentes.



Em tempos de Condoleezza Rice, negros não mais seriam obrigatoriamente uma ameaça para mocinhas brancas; pelo contrário, um afro-americano como Denzel Washington pode até ser guarda-costas de uma menininha branca – ainda que filha de mãe americana e pai mexicano. Segundo o filme, guarda-costas seriam indispensáveis para os ricos do México que, como toda a América Latina – também afirma o filme – sofre o horror dos crimes de seqüestro.



Já o pai mexicano aceita o personagem de Denzel para defender a integridade de sua filhinha - mesmo que o outro lhe confesse seu alcoolismo. Mas a cativante menina - que toca Debussy e Chopin como nem Nelson Freire conseguiria na mesma idade (e olha que Nelson foi menino-prodígio no piano) – irá fazer com que o sisudo protetor se afaste da bebida para tentar cumprir adequadamente com seu dever.



Qualquer semelhança com George W. Bush, que sofreu com passado de alcoolismo e que se pretende “justiceiro” do Ocidente contra o Oriente, não é mera coincidência. Tal como Bush e seu conselho de segurança, o guarda-costas do filme falha em evitar seu onze de setembro particular; e sua “cruzada” vingativa também será implacável contra os que infligiram tamanha ferida no amor-próprio norte-americano.



A idéia é de que não se deve confiar em não-americanos, mesmo que sejam devotos da Virgem de Guadalupe; tal como árabes igualmente religiosos, mas que por seu fundamentalismo, podem ser perigosos. Hoje, os árabes – e outros povos do terceiro mundo - ocupam, não só no cinema, o lugar traiçoeiro que foi dos negros em 1915 e dos orientais em meados do século vinte (japoneses na II Guerra e, posteriormente, coreanos e vietnamitas nas demais incursões ianques ao Extremo Oriente).



Note-se que a trama que se esconde atrás do crime mais ou menos organizado dos seqüestros, tal como exibida no filme, é razoavelmente verossímil se comparada com a triste experiência de cariocas (e brasileiros em geral), já que encobre a possibilidade de uma promiscuidade degradante entre policiais e bandidos. E ainda um concubinato perverso entre os criminosos ricos e os de origem pobre. A isso (que causa revolta no espectador) vai se somar a simpatia pela menina lourinha seqüestrada, bem como pela atitude pretensamente atenuante do guarda-costas negro que parece sofrer por erros do passado.



A intenção é a de seduzir e manipular os sentimentos do espectador para que também aceite a vingança como substitutivo da Lei e da Justiça falhas. Enfim, uma “justificativa” para a barbárie da Roma atual, os EUA. O título do filme em português, neste caso, é bem sugestivo: a despeito da sabedoria de antigas peças gregas de Ésquilo que já propunham a troca da vingança furiosa pelos tribunais de júri, é fato que quando falta o calor humano da Justiça eficiente e da Lei civilizadora, irrompem as chamas da vingança cega, surda, muda e burra.

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