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A RUA, O PAÍS, O MUNDO

21.08.2012
Por Susana Schild
A RUA, O PAÍS, O MUNDO

Com seis dias de separação, o 40º Festival de Cinema de Gramado exibiu dois filmes radicalmente opostos e, por isso, passíveis de estabelecer um diálogo fértil em analogias e paradoxos.



O evento abriu com 360, produção com o carimbo da globalização em cada frame, assinada por Fernando Meirelles, consagrado no cenário internacional ao enveredar pelas ruas de um bairro periférico do Rio de Janeiro, no filme Cidade de Deus, em co-direção com Kátia Lund, a partir do livro homônimo de Paulo Lins.



Uma década depois, os limites da violenta aldeia parecem pequenos demais para conter os voos mais longos pretendidos por Meirelles, que consumiu generosas milhagens em seus dois seguintes – O Jardineiro Fiel (adaptação de romance de John Le Carré) e Ensaio Sobre a Cegueira, inspirado em livro de José Saramago.



O plot de 360 já foi bastante divulgado: personagens marcados por diferenças de nacionalidade, idioma, segmento social, aspirações, profissões e o que mais se puder imaginar de contrastes pessoais (de almas puras a criminosos variados) se conectam de forma aleatória, sobretudo em hotéis, aeroportos e rodovias da aldeia global - Paris, Londres, Bratislava, Denver e Phoenix. O elenco, um capítulo à parte, reúne celebridades como Anthony Hopkins, Jude Law, Rachel Weisz, ao lado de nomes menos conhecidos. A trama, mais complexa na forma do que no conteúdo, vem recheada por personagens tremendamente superficiais. A ciranda começa e termina em Viena, berço de Arthur Schnitzler, indiretamente inspirador da história com a peça La Ronde, que rendeu obra-prima de Max Ophuls em 1950. Nesta versão, um carrossel dava conta da circularidade da trama envolvendo de prostitutas a aristocratas. Velhos tempos.



Corte brusco para a quinta noite do Festival de Gramado. Na tela, O Som ao Redor, primeiro longa de ficção do pernambucano Kléber Mendonça Filho, respeitado por curtas como Vinil Verde, Eletrodoméstica, Recife Frio. Diferente de 360, sua inspiração não poderia ser mais local: a rua em que vive em Setúbal, bairro de classe média em Recife. A produção é tão doméstica que a casa do realizador fez parte das locações e abriga Bia (Maeve Jinkings), a dona de casa atormentada pelos latidos do cachorro do vizinho, entre outras agruras do cotidiano.



Depois de viajar por um circuito internacional respeitável (prêmio da crítica internacional no Festival de Roterdã), O Som ao Redor conquistou Gramado com seu foco centrado em uma rua, cenário de transformações históricas vivenciadas por personagens absolutamente comuns. Este expressivo corte vertical na sociedade brasileira apresenta um painel variado – um velho latifundiário que fez do asfalto uma extensão do antigo engenho, seus dois netos tão diferentes, um jovem corretor de imóveis, um pequeno marginal, além de vizinhos, empregadas domésticas, crianças, entre outros . A especulação imobiliária promete mudanças e instabilidade acentuando um clima de tensão urbana difusa, supostamente contida por grades e engenhocas eletrônicas. Para reforçar a proteção, um ‘segurança independente’, Clodoaldo (Irandhir Santos, excelente) bate de porta em porta para oferecer ‘sem compromisso’ seus serviços ao lado de um parceiro. A dupla, e mais tarde, um trio, pode funcionar como uma réplica de milícias que se espalham pelas ruas do país afora.



Em 360, para os personagens o mundo parece uma página de hipertexto, na qual se pula, aleatoriamente, de uma cidade ou uma relação para outra, sem maiores consequências. Já no filme de Kléber Mendonça, com poucos rostos conhecidos no elenco de notável força dramática, os grupos sociais se entrelaçam de forma orgânica e natural. Mesmo as atitudes mais remotas podem ter consequências sobre o presente, como revela o final de altíssimo impacto. Com uma narrativa que teve seu tom realista comparado ao do austríaco Michael Haneke, e referência aos thrillers de John Carpenter assumida pelo diretor, em O Som ao Redor, a sonoridade polifônica da vizinhança funciona como poderoso elemento desestabilizador, reforçado pela trilha musical do DJ Dolores.



Na coletiva para a imprensa, Meirelles arriscou uma definição para a narrativa fragmentada de 360: a exemplo de Robert Altman, teria realizado um filme coral, ou seja uma história contada por várias vozes. Mas um coral pressupõe, a princípio, que seus integrantes estejam minimamente sintonizados, sob risco de uma dodecafonia áspera e atonal, gênero que tem fiéis apreciadores. Já Kléber Mendonça ousou trocar a superficialidade e a fragmentação dos tempos virtuais pelo foco e pela concentração em uma rua cuja história também é contada por um coral. Mas neste coral local, apesar da individualidade de cada integrante, as vozes se unem para falar de uma realidade nacional impregnada de elementos explosivos. Não é pouco.



O Som ao Redor deixou Gramado com os prêmios de melhor direção e melhor desenho de som do júri oficial (merecia mais) e melhor filme dos júris popular e da crítica. Além, é claro, de ampla torcida para que chegue o quanto antes aos cinemas do país.





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