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A CLÍNICA DO VAZIO CHEGA AO CINEMA BRASILEIRO

14.11.2002
Por Luiz Fernando Gallego
ERA UMA VEZ EU, VERÔNICA

A depressão tornou-se uma epidemia psíquica das sociedades democráticas atuais (...) a sociedade depressiva não quer mais ouvir falar nem de sentimento de culpa, nem de intimidade, nem de consciência, nem de inconsciente.”

(Elisabeth Roudinesco).



Era uma vez eu, Verônica traz a abordagem (pouco freqüente no cinema brasileiro) das vivências subjetivas de uma personagem sobre a qual o filme se debruça. A escolha do roteiro foi a de uma recém-formada médica de Recife, cidade natal do diretor Marcelo Gomes - que já assinou Cinemas, aspirinas e urubus em 2005 e, em co-direção com Karim Aïnouz, Viajo porque preciso, volto porque te amo. Este último, lançado em 2009, acabou por se concretizar no formato da chamada “câmera subjetiva” levada ao extremo, oferecendo ao espectador apenas o que os olhos do personagem viam (ou filmavam), sem mostrar o personagem de modo objetivo, dando-nos acesso apenas à sua voz, pensamentos, observações...



Câmera subjetiva não é o recurso narrativo de Era uma vez eu, Verônica, mas temos a voz em off da personagem explicitando seus pensamentos e reflexões, muitas vezes paralelamente à ação que se vê na tela. Em uma breve cena em que ela está tentando atender uma paciente silenciosa e chorosa, escutamos: “Diga alguma coisa para consolar essa mulher, Verônica !” - exemplo do que é oferecido ao espectador sobre o que a médica está sentindo/pensando.



Mas o que é que a Dra. Verônica pensa sobre ela mesma? Dentre outras coisas, que não é “romântica”; que tem interesse por sexo, mas não sente amor; e até mesmo que usa o sexo como válvula de escape quando as coisas não vão bem para ela. E acima de tudo, o roteiro (também assinado pelo diretor) faz Verônica nos dizer mais de uma vez do seu sentimento de “vazio”.



É bastante curiosa essa tentativa de Marcelo Gomes mostrar em seu filme algo que os psicanalistas, já há alguns anos, rotularam como “clínica do vazio”. Um dos inúmeros textos que enfoca essa situação clínica (*), verdadeiro desafio para os psicoterapeutas, lembra que um contemporâneo de Freud, no final de sua vida profissional, já observava que as neuroses clássicas (resultantes de conflitos intrapsíquicos) não eram mais tão freqüentes; o que ele via cada vez mais era gente se queixando de “depressão”, mas uma depressão em que as pessoas não falavam de suas emoções, sentiam-se vazias, frustradas, insatisfeitas, com uma relativa falta de ansiedade e sem sentimentos de culpa – e ainda, uma vaga sensação de irrealidade. Poderia ser um roteiro de Antonioni nos anos 1960, e nos quais, frequentemente, os personagens sofriam de tédio, anedonia, sentimento de futilidade, um desconfortável senso de inconsistência, irrealidade e... vazio.



Uma das estruturas de personalidade que apresenta tais sintomas “negativos” (ou seja, há “falta” em vez de “acréscimos” de angústia, de histeria, de fobias ou de obsessões) tem a característica de “viverem constantemente sob a ameaça de queda na capacidade de estarem plenamente à altura das próprias expectativas ideais, coisa que o espírito da época nos impõe através da valorização extrema do desempenho e pragmatismo". (*) Dentre os mecanismos de auto-regulação e compensação para manter essa auto-estima sempre ameaçada, podemos encontrar um que é utilizado pela personagem do filme (e explicitado verbalmente pelos seus pensamentos em off): a hiper-sexualização. Se na visão freudiana a neurose crescia no terreno da repressão, os psicanalistas estão tendo que desatar novos nós e oferecer acréscimos às teorias para tentar dar conta, também na prática, de situações onde a repressão sexual não é a tônica, nem há mais tantas neuroses "tradicionais".



Mas a médica Verônica, embora tenha escolhido fazer sua especialização em Psiquiatria, parece nunca ter pensado na hipótese de procurar auxílio psicanalítico para seu desconforto psíquico, embora vejamos, em uma cena de seu quarto, dois livros em cuja lombada branca podemos ler “Psicanálise”. (Já na sala, onde seu pai fica escutando antigos discos em vinil, um livro sobre Lênin é notavelmente visível várias vezes, mas sem nenhuma articulação com o restante do enredo).



Verônica, volta e meia, reflete sobre si mesma como se fosse uma paciente sua, detendo-se entretanto em uma forma descritiva, vaga que seja – e como não poderia deixar de ser? – de seu "vazio" pessoal. Quando atende uma paciente com sensações muito similares às suas, quebra a barreira médico-paciente, e diz que sabe “mesmo” como a outra se sente. E é vista levando a paciente em casa, no seu próprio carro. Decididamente, a Dra. Verônica precisaria de uma supervisão, tal a ingenuidade das atuações profissionais em que é vista. Nada contra uma personagem algo ingênua, ainda jovem na atividade e ainda pouco experiente e despreparada: mas o desenvolvimento (ou não-desenvolvimento) no arco da personagem vai se mostrar pouco verossímil e refém de uma dramaturgia... vazia na construção ficcional.



O mesmo não se dá com os pacientes que ela atende em um hospital público: são muito bem caracterizadas as pessoas humildes que ela atende e que mal sabem dizer o que sentem, centradas em sintomas físicos (dor de cabeça, insônia) sem quase nenhuma capacidade de introspecção sobre sua vida emocional. Parece haver uma tentativa de estabelecer um certo paralelismo entre as pessoas que não sabem falar dos seus sentimentos e as vivências de vazio psicológico da psiquiatra, mas nada vai além dessa provável alusão de semelhanças em pessoas tão diferentes (pelo menos na aparência cultural e social).



A prática profissional de Verônica também é mal definida: em algum momento, o psiquiatra sênior a quem ela se remete parece criticá-la em uma discussão sobre um atendimento que ela fez. Ela assume uma postura defensiva e ele chama sua atenção quando ela menciona que “na conversa com o paciente” notou (ou não notou) tal ou qual sintoma: “Você não conversa com o paciente: você examina o paciente”, ele sentencia. Mas o exame psiquiátrico não se dá, preferencialmente através do diálogo? E sem que nos seja oferecida alguma evolução mais significativa nos atendimentos de Verônica, esse mesmo médico diz que a indicou para um plantão em clínica particular, o que sugere uma avaliação positiva da psiquiatra - coisa que o filme não nos permite confirmar.



Por outro lado, temos muitas cenas que mostram o relacionamento afetuoso da médica e seu pai idoso e adoentado: a dificuldade de Verônica amar um homem além das transas sexuais intensas viria de um complexo edípico, tal a ligação com o pai (que não deixaria espaço emocional para um relacionamento amoroso com outros homens)? Aí já estaríamos saindo da estrutura psicológica que o roteiro insiste em diagnosticar para sua personagem e retomando uma situação “neurótica” típica. Um filme de ficção não tem obrigação de ser um tratado científico coerente com o que os livros dizem, mas o que chama a atenção no que Era uma vez eu, Verônica tem de mais insatisfatório é que o filme derrapa em um antigo paradoxo: um filme sobre tédio precisava ser entediante? E um filme sobre o vazio precisa parecer tão vazio? Não fosse o desempenho admirável de Hermila Guedes, tudo naufragaria nas boas intenções de abordar um complexo tema contemporâneo, que não está apenas nas preocupações dos psicanalistas, mas também nas de pensadores de outras áreas (ver Bauman, por exemplo).



Há outras qualidades de sustentação do filme na trilha musical (tanto na música incidental de Karina Buhr como nos trechos diegéticos) assim como na fotografia (de Mauro Pinheiro Jr.) procurando transmitir uma forte sensorialidade (sol, mar) e mais forte ainda sensualidade nas cenas de sexo.

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(*) “Contrato narcisista e clínica do vazio”, do psicanalista italiano Mario Rossi Monti. Trad.: Roberta Barni para a Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol.11 no.2, São Paulo Junho de 2008

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