DVD/Blu-ray


RASHOMON em DVD

De: AKIRA KUROSAWA
Com: TOSHIRO MIFUNE, MACHIKO KYÔ, MASAYUKI MORI, TAKASHI SHIMURA.
19.05.2014
Por Luiz Fernando Gallego
Edição caprichada do clássico de Kurosawa em DVD propicia reflexão sobre o filme e suas fontes literárias.

Com o lançamento de Rashomon em DVD pela distribuidora Versátil, temos, enfim, no Brasil, uma edição decente de um dos filmes mais festejados da história do cinema japonês - e não só.

Trata-se de uma versão restaurada que nos devolve a beleza e o uso dramático da fotografia de Kazuo Miyagawa (pela primeira vez na história do cinema o sol teria sido filmado, entre as folhas das árvores). Miyagawa também filmou com Mizoguchi e Ozu - e é tema de um dos extras deste DVD, talvez o mais interessante de todos os que acompanham essa edição especial, ainda que dure apenas 13 minutos. O cinegrafista já trabalhava em filmes há 14 anos, sendo bem conhecido no meio cinematográfico local quando trabalhou pela primeira vez com Kurosawa neste filme. E guardou em sua casa a placa do portal onde se lê (em ideogramas japoneses) Rashômon, como que intuindo que estava participando de de um momento histórico, ainda durante as filmagens.

Mais longo (68 minutos), com pouco ritmo, pouco editado, mas ainda assim cheio de informações é o “Documentário sobre o filme”. Completam os extras uma apresentação (não mais do que simpática) de Robert Altman (7 minutos) e o trailer de cinema.

Rashômon, lançado no Japão em 1950, é considerado o filme responsável pela abertura do mercado internacional ao cinema japonês no pós-II Guerra Mundial. Premiado no Festival de Veneza de 1951, alcançou rápida popularidade mundial, estimulando a curiosidade do público e da crítica pelo enigma de sua história - que tem uma certa tonalidade “policial” (tanto quanto se pode considerar “Édipo-Rei” como um enredo policial - e já original: pois o “detetive” Édipo descobre que é ele mesmo o assassino que procurava). Em torno de uma história de crime, a tendência é que o público - e muitos dos demais personagens - queiram identificar o(s) culpado(s). A questão é que cada um dos envolvidos no crime diz que matou a vítima, surgindo três autoacusações incompatíveis com a ânsia de sabermos o que teria realmente ocorrido.

Durante algum tempo, muitos cinéfilos supunham que o enredo central do filme (estupro de uma mulher e morte de seu marido-samurai) teria sido baseado em um conto do mesmo título de um importante escritor japonês. Mas a trama de assassinato e investigação - que é o que mais intriga as plateias - é de outro conto do mesmo autor, Ryonosuke Akutagawa - e que se chama “Yabu no Naka” (“Dentro do Bosque”, segundo uma tradução para o português; “Na Floresta”, segundo outra versão para nosso idioma).

Já o conto “Rashômon”, também de Akutugawa, foi bastante modificado para servir às cenas de abertura e de fechamento do filme. Estas se passam sob um pórtico em ruínas no qual outros personagens se refugiam de uma forte chuva. Para passar o tempo, vão narrar (uns) e escutar (outro) os relatos sobre o que teria acontecido na tomada de depoimentos e julgamento do crime que é o ponto nodal do filme - e do conto “Na Floresta”.

SOBRE O AUTOR DOS CONTOS ORIGINAIS:

Akutagawa nasceu em 1892 em Tóquio quando seu pai contava 42 anos de idade e sua mãe, 33 – idades tidas no Japão como de má sorte, respectivamente, para o homem e para a mulher. Devido a este fato, o bebê foi dado como “criança exposta” e recolhido por outra família. Os pais biológicos de Akutagawa haviam perdido uma filha aos 5 de idade no ano anterior ao nascimento do menino. Oito meses depois do parto, a mãe enlouqueceu e em 1899 o pai teve um filho com a irmã de sua mulher. Após a morte desta, em 1902, o outro filho é que foi registrado como sucessor legal da família, enquanto Akutagawa era oficialmente desligado da família paterna e adotado pela família da falecida mãe - de onde veio este seu sobrenome e um ambiente que cultivava o gosto pela literatura, pintura e artes cênicas.

Aos 13 anos, em 1905, um ano atrasado (por problemas de saúde) ingressou no curso equivalente ao antigo “curso ginasial” do Brasil, atingindo resultados brilhantes nos estudos e já participando de revistas literárias.

Aos 22 anos (1914) traduziu para o japonês um conto de Anatole France sobre o Rei Balthasar, um dos “três reis magos” mencionados nos Evangelhos sobre o nascimento de Jesus. Curiosamente, o personagem tem os mesmos 22 anos de Akutagawa no inicio do conto. O escritor francês se apropriou dessa figura lendária, imaginando um encontro do mesmo com uma Rainha de Sabá, relação esta cercada violência e até mesmo risco de vida para Balthasar, sendo que a rainha, posteriormente, nega os perigos (e relações sexuais estimuladas pela visão de sangue) que viveram juntos, dizendo que não passavam de “imaginações” do homem ferido, em estado semicomatoso, ao qual sobrevive. Abatido por esses fatos, Balthasar dedica-se à ciência, constrói uma alta torre para observar os céus, até que descobre uma estrela sobre a qual ele profetiza: “Feliz de quem nascer sob essa estrela”. Seguindo-a, encontra os dois outros reis que vão pelo mesmo caminho até o Menino Jesus. Balthasar conclui: “Venci minha luxúria e por isso a estrela me chamou”.

Além do estranho interesse por este conto, Akutagwa venerava Edgar Allan Poe e Strindberg, denotando em seus escritos posteriores outras influências ocidentais além destas duas: Maupassant, Baudelaire, Ibsen, Dostoievski, Nietzsche, etc.

Em 1915 escreveu o conto “Rashômon”, e em 1921, “Dentro do Bosque”. Apesar de ter alcançado renome como escritor, jornalista e professor, em 1927 sofreu grande revés financeiro por ter tido que arcar com dívidas de um cunhado (Akutagawa havia se casado em 1918) que se suicidara depois de ter sido acusado de incêndio criminoso.

Começa a dar sinais de desequilíbrio mental e tenta suicídio duas vezes, vindo a morrer na segunda tentativa devido à ingestão excessiva de soporíferos. Foi encontrado morto com um volume da Bíblia ao seu lado. Tinha 35 anos.

A VERDADE DE “RASHOMON” E DE “DENTRO DO BOSQUE”

É interessante observarmos que - no conto - as diferentes versões do crime que são dadas pelo estuprador, pela mulher e até mesmo pelo espírito do morto (através de um médium), acontecem como confissões isoladas, sem que se possa saber qual seria a versão verdadeira, já que não acontece um desvelamento que se efetue pela intersubjetividade (ou, como na terminologia de Hegel, pela intercomunicação de duas ou mais autoconsciências humanas). Os personagens que fazem suas narrativas não se comunicam entre si: o que eles contam (para o leitor) são suas “certezas subjetivas”, não se afastando delas para uma síntese (que poderia chegar a constituir uma “verdade objetiva”).

Mas no filme, Kurosawa e seu roteirista, Shinobu Hashimoto, fazem com que outros personagens (abrigando-se da chuva sob o portal de Rashômon) conversem sobre os crimes, realizando assim um esboço de “comunicação intersubjetiva” através da linguagem. Talvez se aproximem um pouco mais do que Hegel diz sobre a verdade: “Nunca é um dado, mas o resultado de um processo que, ao mesmo tempo, a produz e a revela”.

KUROSAWA:

Nasceu em Tóquio em 1910, caçula de uma prole de sete, tendo sido estimulado por um professor do “curso primário” para as artes plásticas, especialmente atraído pelo desenho. (Já nos estudos secundários, Kurosawa receberia zero em “Instrução Militar”...) No futuro ficariam famosos os desenhos do cineasta como planejamento visual de seus últimos filmes, como os que fez para “Ran” e “Kagemusha”. Este hábito de “desenhar” seus filmes antes de realizá-los também é encontrado em Eisenstein e em Fellini.

Aos 17 anos matriculou-se em uma escola de belas-artes que se orientava por padrões ocidentais de pintura, tendo chegado a classificar dois de seus quadros em exposições. Mas a situação econômica familiar não permitia dedicação exclusiva à pintura, tendo passado a desenhar cartazes para salas exibidoras de filmes. Outro contato indireto com o mundo do cinema teria existido através de um irmão que trabalhava nessa área, mas que se suicidaria em 1935, por motivos ignorados. No ano seguinte Kurosawa foi um dentre 500 candidatos que responderam a um anúncio para trabalhar como assistente de direção, tendo conseguido um contrato para trabalhar com a equipe de um diretor (como funcionava na época o sistema japonês de filmagem: cada diretor tinha sua equipe).

Em 1942 começou a escrever argumentos filmados por terceiros (foram quase vinte argumentos com este destino até 1955). Em 1943 intuiu que um livro - que ele ainda não havia lido – pelo tema abordado renderia um bom filme; e conseguiu que a companhia produtora comprasse os direitos para o cinema, tendo dirigido A Saga do Judô, contrastando o judô – esporte nobre e popular – com o jiu-jítsu, mais violento e vinculado ao espírito militarista, sendo bem sucedido. Seu quarto filme (Os Homens que pisaram a cauda do tigre, 1945) ficou censurado durante sete anos por tratar, metaforicamente, das tropas de ocupação americanas após a derrota do Japão na II Guerra.

Seu sexto filme (Não lamento minha juventude, 1946) foi sua primeira grande consagração no Japão, conquistando público e crítica com um enredo ficcional inspirado em fatos reais ocorridos na Universidade de Kyoto em 1933 mas “concebido na intenção de descrever os sentimentos de um povo que vivia dias de opressão e de humilhação” (na época da ocupação americana).

CURIOSIDADE:

Poucas pessoas sabem que um dos primeiros psicanalistas brasileiros a ser aceito na Associação Psicanalítica Internacional fundada por Sigmund Freud, Alcyon Baer Bahia, obteve seu título através da Associação Psicanalítica Argentina em 1956 com um trabalho (“Repressão, Lembrança e Amnésia”) que tinha como um de seus centros de investigação e pesquisa exatamente Rashômon, fazendo uma interpretação inusitada do filme, dizendo que se tratava de “um amargo mito construído - ou trazido à tona - a partir da realidade social, por um artista sensível em um período de exceção da vida de seu povo: com seus exércitos inopinadamente paralisados pela terrível intimidação da bomba atômica, o território pátrio humilhado sob o jugo das forças de ocupação, física e psicologicamente vencido, o povo japonês deve haver sentido a derrota até o mais recôndito do seu ser”.

Duvidamos que na época o psicanalista brasileiro tivesse tido acesso a filmes como Os Homens que pisaram a cauda do tigre, já que este só foi lançado no Brasil na década de 1980. Sua intuição sobre inimagináveis significados ocultos sob as aparências e abordagens mais imediatas do filme de Kurosawa são admiráveis a partir do momento em que sabemos que tais preocupações com a ocupação americana se faziam presentes nas intenções de alguns filmes iniciais do cineasta (como o quarto e o sexto mencionados) anteriores a Rashômon - que já é sua décima-segunda incursão como diretor.

O psicanalista propôs que todos se acusam do crime ocorrido “dentro do bosque” porque os japoneses assim se sentiam, com uma espécie de “mea culpa” coletiva: “somos todos responsáveis” - pela experiência guerreira, pela derrota e pela submissão ao invasor norte-americano durante a ocupação.

Já o ato de recolher uma criança abandonada no desfecho inventado pelo filme, ausente dos contos originais, seria a "afirmação da crença da coletividade na restauração da terra natal destruída, renascendo de escombros".

OUTRAS HIPÓTESES, outros olhares...

A partir dos dados obtidos das biografias de Akutagwa e de Kurosawa, podemos especular se, ao encerrar o filme com o personagem do lenhador acolhendo um bebê abandonado que os que se abrigaram da chuva acabam encontrando sob o portal de Rashômon, Kurosawa estaria manifestando algo ligado ao seu próprio nascimento. O lenhador diz que já tem seis filhos, tal como Kurosawa ao nascer encontrou seis irmãos.

E mais ainda, este episódio que Kurosawa acrescentou como epílogo para que houvesse uma mensagem de fé – conforme a fala do personagem do sacerdote, um dos que participa das conversas durante o temporal (fé, em tudo contrária ao desfecho niilista do conto original que se passa em um portal destruído, mas com outro enredo) – poderia ser uma espécie de realização de desejos de Akutagawa - cujo nascimento não teria sido nada festejado, ainda mais em confronto com o nascimento de Jesus, até hoje comemorado, e que é o tema final do conto francês antes mencionado e que o escritor japonês se empenhou em traduzir para sua língua (sua primeira publicação!). Ao contrário da criança nascida em Belém, Akutagawa teve “uma estrela má” pela idade dos pais e superstições da época, pela loucura da mãe, morte de irmãos, rejeição paterna, etc.

Seria Akutagwa o bebê “exposto”, abandonado sob o portal de Rashômon? E que Kurosawa, como um deus ex-machina transforma em símbolo de recuperação da fé?

Tais especulações não seriam gratuitas, ainda mais se considerarmos que muitos críticos questionam o desfecho dado ao filme como “moralista” e que se choca contra o núcleo do que se passa “dentro do bosque” e em clave muito diversa dos depoimentos contraditórios dos envolvidos. No conto, são apenas três; já o filme acrescentou o depoimento – e participação – do lenhador no cenário do crime, sendo este o único personagem que pertence aos dois núcleos: o que se passa sob o portal durante o temporal, e o que se passa antes, na floresta e no julgamento.

Se alguns acusam o desfecho de “moralista”, há críticos que observam que os filmes de Kurosawa trazem personagens colocados diante de questões morais mesmo (característica que, segundo Camus, define a modernidade dos personagens criados por Dostoievski – autor de quem Kurosawa adaptou o romance “O idiota”, logo após Rashômon). Não lhe interessam os problemas metafísicos trazidos por outro grande cineasta japonês, Kenji Mizoguchi, em Contos da Lua Vaga.

Já John Howard Lawson no livro de 1964, “Film: the creative process”, diz que o tema de Rashômon é o que Walt Whitman chamava de “dúvida das aparências”, comparando a situação dos personagens de Kurosawa com a dos de Ano Passado em Marienbad (de Alain Resnais com roteiro de Robe-Grillet, 1961). Diz Lawson (em 1964): “Os seres humanos perdem-se num labirinto de falsas aparências; não conseguem encontrar uns aos outros por não poderem encontrar a si próprios, nem ter mais certeza do que é passado e do que é presente. Mas surge uma tendência oposta em Kurosawa, já que a criança representa o triunfo da realidade humana. Se o conflito está presente em toda sua obra, com a fúria cega controlando a ação em Trono manchado de Sangue, uma pálida luz de esperança ilumina a ruína humana de Ralé, sendo que a obra de Kurosawa tem se ressentido de uma incapacidade de resolver esses conflitos”.

BIBLIOGRAFIA

AKUTAGAWA, R. - "Rashomon e outros contos"; tradução de Antonio Noriji e Katsumori Wakisaka. Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1983.

BAHIA, A. B. - 'Repressão, Lembrança e Amnésia" - Ministério de Educação e Cultura, 1959.

FRANCE, A. - "Baltasar", in: "Maravilhas do Conto Bíblico", Ed. Cultrix, 1958.

GALLEGO, L.F. - "VERDADE E MORAL - os autores de "Rashomon", Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - Departamento de Pesquisa Ano 1, Vol. 1, Nº1, 1987.

LAWSON, J.H. - "Film: the creative process" / "O Processo de Criação no Cinema" Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1967

NOJIRI, A. - "Akutagawa" in: "Rashomon e outros contos"

RODRIGUES, J. - "KUROSAWA", in: "Filme Cultura, Ano II, Nº9, abril, 1968.

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Outros comentários
    1518
  • Joao Luiz Vieira
    21.05.2014 às 06:21

    Um ótimo texto, a ser indicado para alunos e interessados em geral (não só em cinema). Bem pesquisado, argumentado e escrito, abre questões importantes suscitadas por esse grande filme.
    • 1520
    • Luiz Fernando Gallego
      21.05.2014 às 06:29

      Obrigado pelo comentário, João Luiz