Os Corruptos (título original: The Big Heat), obra de Fritz Lang que estreou nas salas de cinema em 1953, já havia saído há muitos anos em DVD nacional pela Columbia, mas estava fora de catálogo há bastante tempo. Agora, temos um relançamento caprichado em DVD como parte da nova caixa da Versátil distribuidora, “Filme Noir Volume 2”. A caixa traz 3 discos contendo seis filmes do gênero, os demais menos conhecidos do que Os Corruptos, mas assinados por gente do porte de Elia Kazan, Fred Zinnemann e Anthony Mann, além de dois títulos cultuados do gênero, A Dama Fantasma, de Robert Siodmak, e Mortalmente perigosa, de Joseph H. Lewis. Não lembro de ter visto nenhum dos outros filmes, mas só por trazer Os Corruptos em versão restaurada (e com dois extras breves: um com Micahel Mann e outro com Martins Scorsese comentando o filme), a caixa já vale quanto custa para o cinéfilo.
No elenco, além de Glenn Ford com a categoria e discrição de sempre, o destaque é Gloria Grahame em seu melhor papel, embora tenha sido oscarizada por outro filme. Aliás, o único prêmio que o filme levou quando lançado foi o “Edgar Allan Poe” (dado para roteiristas de filmes policias, mistério e similares); no caso, para Sydney Boehm que adaptou um livro - inferior ao filme, segundo opinião de François Truffaut. Mas também há a surpresa de encontrar Lee Marvin muito antes da fama e a ‘Lady Macbeth’ do filme de Orson Welles, Jeannette Nolan, em personagem igualmente maquiavélica. E ainda temos a possibilidade de conhecer Jocelyn Brando, irmã do muito mais famoso Marlon, em um dos poucos filmes de destaque em que ela esteve.
O fotógrafo é um dos maiores nomes da “era de ouro” de Hollywood, Charles Lang, mestre do preto-e-branco com o qual preferia trabalhar (mas não só), indicado 18 vezes ao Oscar (com uma estatueta apenas) e colaborador de Billy Wilder em A Montanha dos sete abutres, A Mundana, Quanto mais quente melhor e Sabrina (a partir deste filme passou a ser um dos fotógrafos que Audrey Hepburn colocava como uma de suas exigências contratuais sempre que possível; e antes dela Marlene Dietrich fazia o mesmo).
Vários contratados da Columbia, técnicos experientes e competentes, estão na ficha técnica: a edição, por exemplo é de outro veterano de então, Charles Nelson, cuja montagem enxuta, mal deixa o filme chegar aos 90 minutos e mantém o espectador bem atento. E a direção de arte e decoração de interiores capta bem a época, especialmente no que diz respeito aos espelhos e vidraças transparentes que a câmera utiliza de modo elegante e funcional para a dramaturgia ambicionada pelo maestro que rege todos os mencionados, e que é mesmo Fritz Lang.
Quando seu nome é mencionado, Metrópolis, de 1927, é logo lembrado como um dos poucos filmes não-cômicos da fase silenciosa do cinema que sobrevive muito bem no gosto das mais variadas plateias. Entre alguns grandes cineastas, o título mais lembrado é o sinistro/poético A Morte Cansada (também conhecido como “As Três Luzes), de 1921, favorito de Hitchcock, admirado por Bergman e mencionado por Buñuel como motivador de sua futura carreira de diretor.
Ainda nesta primeira fase de filmes rodados na Alemanha, críticos, teóricos e ensaístas em geral que comentam a linguagem cinematográfica louvam especialmente o uso do (então recente) som para a trilha do ainda hoje impactante M, o Vampiro de Dusseldorf (1931).
Depois de uns quinze filmes em seu país natal, com a ascensão do nazismo, Lang emigrou para os Estados Unidos depois de breve passagem (e um longa realizado na França em ’34). Sua “fase americana”, que vai de Fúria (1936) até Suplício de uma alma (título original Beyond a reasonable doubt, 1956), com outros vinte longas por ele assinados, envolve policias e até mesmo westerns que ele recebia dos estúdios como tarefas a cumprir. Além de filmes sobre a pena de morte - como os dois já citados e que unem as duas pontas de sua carreira hollywoodiana. Os “policiais” são arrolados no gênero “noir”, por sua vez tributário do expressionismo alemão do tempo dos filmes mudos - e não por acaso, Os Corruptos é um dos melhores exemplares, tanto do cinema “noir” americano, como da obra de Lang.
Se isto é quase um consenso entre cinéfilos, nem sempre foi assim: a década de 1950 não foi bem sucedida para o grande diretor, pois seus filmes não alcançavam boa bilheteria - fator essencial para a indústria de filmes ianques - e ele acabou tendo que voltar para a Alemanha onde rodou apenas três filmes em ’59 e ’60, vindo a morrer em 1976 sem mais dirigir... Em 1963 interpretou a si mesmo em O Desprezo, de Godard, fazendo um cineasta que pretende filmar "A Odisseia", de Homero.
Junto à crítica americana seus últimos filmes despertavam, no máximo, indiferença, e mesmo na crítica francesa, que quase sempre louvava Lang, havia reprovações. François Truffaut, em 1954 (então apenas críticos de cinema), denunciou como “sofismas” escritos por outro crítico, Louis Chauvet: “ 'Os Corruptos' não é ruim e nem é muito bom. Fritz Lang não é mais Fritz Lang. Já sabíamos disto há alguns anos: não há mais traços de simbolismo nas obras que fabrica hoje o realizador de Metrópolis. E de expressionismo, menos ainda ”.
Truffaut defende o que Lang quis (sic) que permanecesse de germânico em seus filmes americanos: “cenários, algumas iluminações, o gosto pelos perspectivas, os ângulos vivos, e [neste filnme ]a máscara de Gloria Grahame , etc” E prosseguia: “Uma outra lenda quer que o diretor americano seja um ‘astucioso artesão’ que ‘salva como pode’ os temas ‘desconcertantes’ que lhe são ‘impostos’’. Neste caso não é estranho que todos os filmes americanos de Lang, apesar de assinados por diferentes roteiristas e rodados sob encomenda das mais diversas produtoras e estúdios, contem, muito sensivelmente, as mesmas histórias? Pois se seus temas, suas histórias, tomam emprestado a aparência banal de um thriller em série, de um filme de guerra ou de um western, talvez não seja preciso ver aí o sinal da grande probidade de um cinema que não sofre a necessidade de se revestir de etiquetas atraentes?”
Se, ao nosso ver, nem sempre seus filmes contam “as mesmas [ou as mesmíssimas] histórias”, muitos temas se repetem conforme a oportunidade: é ainda Truffaut que observa os filmes em que “um homem se engaja em um combate: por dever, se for tira, soldado ou especialista; ou mesmo por ociosidade. Mas chega um momento em que ele se cansa de lutar, em que a causa mostra sua falência e ele está a ponto de abandoná-la quando uma circunstância o fará retomar o duelo, elevar-se até o sacrifício de si próprio. Essa circunstância é quase sempre a morte de uma pessoa alheia a isso tudo, uma mulher, às vezes uma mulher amada. É aí que o conflito se torna estritamente individual, que as razões pessoais substituem as razões sociais ou políticas e que a preocupação única da vingança substitui, enfim, aquela inicial do dever. O personagem vivido por Glenn Ford vai se demitir da polícia para assegurar sua vingança”
Aqui, encontramos uma semelhança com outro filme comentado recentemente nesta seção de DVDs: Confissões de um comissário de polícia a um procurador da República, realizado quase vinte anos depois: os dois personagens centrais de cada filme agem à margem da lei para obter a justiça devida e à qual que os meandros legais não permitem acesso, especialmente se invadidos pela corrupção de mafiosos e suas ligações políticas.
Mas Truffaut considera que “tudo acontece e se tece no coração de um universo altamente moral no qual a moral convencional não tem papel algum e as forças enquanto tais (polícia, exército, resistência) são quase sempre mostradas como baixas, defectíveis e covardes. Frequentemente a sociedade utiliza tais forças como sua salvaguarda; os heróis de Lang estão, na realidade, à parte da sociedade. É por isso que a espionagem tem um papel tão marcante em filmes de Lang: nada de melodramático, nenhuma reivindicação em defesa dos fracos e oprimidos, pois o herói é justiceiro apenas de si próprio. Solitário, o ser de exceção preocupa Lang: exceção que por pudor soube revestir a aparência de espião, tira ou cowboy grosseiro”.
A discussão sobre a conduta "fora da lei" do personagem de Glenn Ford (e como ele atua sobre as decisões de Gloria Grahame) são bem pertinentes sob o prima ético e moral; e sob este aspecto isso é mencionado na apresentação que Scorsese faz do filme nesta edição em DVD. Scorsese diz que Ford se transforma em um monstro de ódio como aqueles que ele odeia. O herói solitário e individualista também é um clichê do cinema americano tradicional, mas aqui ganha outra dimensão no microcosmo tomado pela corrupção recriado por Lang - e que vai ganhar sua metáfora no rosto dividido de Gloria Grahame.
O cinéfilo também deve atentar para a maestria da câmera e sua movimentação: há uma cena em que a tomada começa no espelho ao lado do qual Gloria e Lee Marvin estão contracenando com um terceiro personagem, um capanga mais jovem de Marvin, que por sua vez é capanga de mafioso que mantém a polícia sob seu domínio. Marvin se afasta e Gloria dialoga com o rapaz, mas quando o mafioso chega, a câmera se volta para a direita para mostrar o hall de entrada e a sala de estar da cobertura onde essas cenas se desenrolam. Os planos-sequências não são tão longos, nem buscam o virtuosismo masturbatório e vazio do recente Birdman, mas servem à tensão narrativa, mantendo o espectador imerso no desenrolar da cena, sem chance de se distanciar pelos cortes de campo e contracampo, usados com parcimônia.
Na cena em que Ford está fazendo uma mudança, a tomada da casa quase vazia é em plano geral, formando quase um díptico a partir das portas dos cômodos, lado a lado na imagem. O clima emocional da tomada é dado pelo plano, mas novamente a câmera vai se movimentar para se aproximar da porta de entrada e dar passagem a um colega do personagem, e a cena vai se desenvolver fluentemente. Como no filme todo.
Perto do final, a última cena na cobertura perde um pouco a força pelo cacoete da época de forçar um diálogo do (anti?)herói com uma pessoa ferida, mas isso não compromete o filme. Caberia mencionar muitos outros momentos em que a direção se mostra exemplar, mas ficamos com o – digamos - humor (perverso) da última cena na delegacia, quando a última coisa dita no filme, já se sobrepondo ao “The End” escrito na tela, é de quem sai da delegacia pedindo para que seja mantido quente o café. Vendo o que acontece antes no filme, entenderão o porquê da ironia dessa frase.
OBS.: As citações de Truffaut foram resumidas da tradução de Alice Furtado para o texto "Amar Fritz Lang" no catálogo da mostra CCBB "Fritz Lang - o horror está no horizonte". O original foi publicado em Cahiers du Cinéma nº31, de janeiro de 1954.