A distribuidora Versátil armou o duelo de DVDs do mês. De um lado, a caixa Cinema Faroeste Vol 3, com seis filmes que são a quintessência do gênero norte-americano por excelência. Do outro, o box Faroeste Spaghetti, com quatro exemplares da melhor massa "al dente", regada ao sugo mediterrâneo. Entre um e outro a torcida pode balançar pelo naipe dos diretores. O pack norte-americano reúne Raoul Walsh, Nicholas Ray, Budd Boetticher; o italiano, tirando Sergio Sollima, cai num pelotão menos prestigiado, mas que não nega fogo: Giulio Petroni, Tonino Valerii, e Robert Hossein.
Melhor que bandear para um dos lados, ganha o cinéfilo que assume o espetáculo na totalidade, se divertindo com as duas caixas sem preconceitos. São dois métodos de fazer cinema, duas escolas, cheias de particularidades. É interessante notar como em princípio, as características as separam nos anos 60, para depois, aos poucos irem se unindo, até operar uma verdadeira fusão no gênero. Django Livre e Os Oito Odiados estão aí para provar, como um gênero contaminou o outro.
O Spaghetti mudou inclusive as questões de gosto. Olhando o popular IMDB, o ranking dos melhores westerns de todos os tempos, a preferência pelo italiano hoje é inquestionável. O primeiro lugar pertence a Três Homens em Conflito, seguido por Era Uma Vez no Oeste, ambos de Sergio Leone. O terceiro lugar reforça a ironia, recai no norte-americano Django Livre, filme em que Tarantino reverencia os italianos.
Nem sempre as preferências se desenharam assim. Nos anos 60, críticos e cinéfilos davam de ombro para Sergio Leone. Entre os cineastas de Hollywood, a marginalização também era plena. Se havia um consenso entre a velha guarda e os cabeludos que invadiam o sistema, estava no desprezo pelos Spaghettis. As duas gerações podiam se odiar, mas quando se referia a bang bang à italiana, viravam irmãos.
O cânone em western era outro e ninguém discutia. No gênero, os mestres eram John Ford, Howard Hawks e ponto. Com Rastros de Ódio e Onde Começa o Inferno, só para citar dois, Ford e Hawks atingiam uma estatura difícil de suplantar. Perto deles, Leone não passava de um mambembe imitador.
Claro, os italianos traziam algo, mas isso não seria percebido de imediato.
Scorsese conta que ele próprio levou uns 10 anos para reconhecer que havia qualidades por trás do cinema de Leone. Sabe-se que Henry Fonda achava o roteiro de Era Uma vez no Oeste um abacaxi. E, enquanto o diretor Giulio Petroni festejava a presença de Orson Welles em Tepepa, o astro de Cidadão Kane se deprimia. Participar de tal produção era o fundo do poço pra ele.
Tepepa, que figura como destaque na caixa de Faroeste Spaghetti, da Versátil, está longe de ser infame.
Os estereótipos do filme são muitos. O que não se deve negar é a eficácia deles. Prende em Tepepa, a forma como o diretor Petroni constrói o carnaval caótico em meio a revolução mexicana.
O herói libertário chamado Jesus (o cubano Thomas Millian) aproveita o caos das lutas zapatistas para promover a reforma agrária a bala.
O médico idealista (John Steiner) se simpatiza pelos rebeldes, mas prefere o conforto de ver a revolução de longe. Quando seu carro quebra, ele pede para os camponeses empurrarem. Jesus (Millian), por sua vez, à beira do fuzilamento, despreza a benção do padre e faz careta para a cruz. A única ponta de senso comunitária advém dos camponeses. A massa cala as armas, e conduz esse Jesus nada cristão, ao poder.
Petroni orquestra as ações destes homens, do revolucionário, do médico (representando a classe burguesa) e de um general militar (Orson Welles) como se filmasse um formigueiro. A narrativa não tem a maestria da condução de um Leone, mas Petroni tem plena consciência do que quer. Nada escapa a lente, nem mesmo a impunidade ao burguês, que é preso, mas suborna o policial e se safa da cadeia. Não há heroísmo em cena. O próprio protagonista, o líder rebelde, se perde no populismo de conceitos ambíguos.
É um filme extravagante, cheio de excessos, imperfeito, decerto, mas, para bem ou para mal; cada plano responde única e exclusivamente ao impulso e à mais pura vontade de criação.
Uma criação, que seja subentendida, embasada não numa originalidade, mas em refazer as pegadas de Ford e tantos outros diretores americanos. Diante da proposta, é claro, que até mesmo um artista aberto como Welles, ficava reticente. Era difícil perceber que a reverência se apresentava mais do que mera tentativa de plágio.
Operava-se, contudo, não a imitação, mas uma derivação. A reescrita de um universo parecido na paisagem, mas completamente diferente nos detalhes. Na postura dos personagens, na pontuação da cena, na estranha combinação da violência com o humor, na trilha sonora marcada por acordes rascantes de guitarra e coral e coroada pela presença de símbolos bíblicos.
O bang bang italiano profanava as certezas sagradas do western americano. Não foi forte o suficiente para derrubar o gênero, mas com certeza contribuiu para sua transformação. Verdade que, independente deste "inimigo estrangeiro", havia uma onda desmistificadora em voga, que levava os veteranos de Hollywood a repensar o gênero. Dá pra sentir esse movimento de revisão em três filmes do pack de faroestes americanos. O de Raoul Walsh (Nas Garras da Ambição), de Nicholas Ray (Quem Matou Jesse James?) e de Budd Boeticher (Fibra de Heróis) já batiam contra a convalida Hollywood, 10 anos antes de aparecer o primeiro bang bang à italiana. As intrigas nos três casos avançam sobre as inquietações dos protagonistas. Os pistoleiros antes não viviam impasses, agora a vida já configura questões complexas. Um jornalista investiga a história de Jesse James. Cada um revela uma versão diferente do bandido. Nicholas Ray fragmenta a narrativa, o protagonista se quebra como um mosaico. Os filmes de Walsh e Boeticher também expandem o horizonte narrativo dos personagens, ainda que em nenhum dos casos se traduza num filme redondo. Mas são três respeitáveis cineastas, do tipo que consegue ser grandes mesmo quando o filme é pequeno.
Falando em descobertas, nesta caixa de Walsh e Ray, dois filmes roubam a atenção dos medalhões: Um Homem Difícil de Matar e Fúria Abrasadora. O primeiro é um faroeste outonal dirigido por William Fraker. O segundo, uma engenhosa mistura de western com film noir, do húngaro André de Toth. O crítico francês Jean Douchet reabilita De Toth em seu Dicionário de Cineastas Americanos, alegando que o realizador só não foi maior, porque nunca teve a sorte de ter a máquina da produção "A" a seu serviço. A paixão para De Toth era filmar, nem que fosse no quintal da Monogram.
Seu Fúria Abrasadora pode até ter sido rodado em canteiros, mas sugere bem mais que isso. O filme é 1947, o auge do cinema noir e também dos westerns, o que talvez explique a simbiose. Veronika Lake é a mulher indomável e controladora. Assume uma fazenda, manipula seus capatazes como marionetes e quer a cidade na palma da sua mão. Sua ânsia pelo poder será sua tragédia. Pelo caminho perderá todos os seus amores. De Toth segue a trajetória da mulher com uma lógica implacável. Constrói o castelo e depois o destrói sem um pingo de piedade.
Um Homem Difícil de Matar foi feito em 1970. Vinte e três anos o separam de Fúria Abrasadora. Interessante aqui é notar como as leis do gênero sofreram tantas transformações. Já é possível inclusive sentir a influência dos faroestes italianos na forma como o diretor Fraker recria a ambientação. O espírito de mudança e desilusão lembra Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone. Lee Marvin é o velho Monte Walsh, o cowboy que retorna das pradarias para encontrar um mundo ao qual ele não se reconhece. Sua falta de encaixe, leva-o desesperadamente ao bordel da velha prostituta (Jeanne Moreau). A mulher o acolhe como um animal desprotegido. Bonito seria terminar o filme assim. Mas os anos 70 não aceitavam mais esse tipo de happy end. A inocência de outrora se foi.
Até mesmo o estilo de filmar mudou. Cabe notar como o faroeste americano dos anos 40 para os anos 70, gradualmente vai se fechando, enquanto o spaghetti estilisticamente busca um campo de expansão. O filme de Fraker traduz essa incorporação, essa investigação do interior. O diretor evita os grandes espaços. Prevalece a composição de planos médios, planos fechados e closes. O registro psicológico e íntimo domina. Não cabe generalizar, mas é curioso que Robert Aldrich e Robert Altman também seguirão essa introspecção em seus faroestes (A Vingança de Ulzana, Quando os Homens São Homens). Os italianos farão exatamente o contrário, abrindo a grande angular descaradamente para as planícies da Itália, da Espanha, nas Taberna Desert de Almeria, mesmo que elas tenham pouco a ver com o relevo americano. Que importa se não é autêntico? O importante é o faz de conta, que deve ser maravilhosamente escancarado, usando planos panorâmicos e a elegia musical, de preferência, com Ennio Morricone.
Os primeiros spaghettis podiam até ser precários na técnica, mas a ambição era tremenda. De certa forma, Leone, Corbucci, Sollima e tantos outros realizadores usaram o menosprezo a favor deles. Parecia uma diversão alienante? E daí? O profundo descaso levou parte do grupo ao aprimoramento.
Por isso, é impressionante a depuração que Sollima entrega num filme como O Dia da Desforra. Sem dúvida é a obra-prima da caixa dos spaghetti. A simples caçada a um bandido se desdobra em implicações articuladas com inteligência pelo diretor. O caçador de recompensas (Lee Van Cleef) nem percebe que está sendo manipulado por um senador para apagar o rastro de sujeiras políticas. Ao contrário do barroquismo de Petroni em Tepepa, Sollima prima pela leveza. Ter uma produção mais modesta na mão não intimida Sollima. Seu poder de encenação tira o máximo do mínimo. Se os duelos são magistrais, isso se deve a forma como o diretor trabalha a percepção de movimento e detalhes. Sollima é cirúrgico como o atirador de facas vivido por Thomas Millian no filme. Nas mãos dele, a faca é mais rápida e precisa que o revólver.
Tarantino, não sem razão, coloca O Dia da Desforra como um dos melhores westerns de todos os tempos. De fato, é de uma inspiração tremenda. Permite compreender como duas escolas que passaram 20 anos sendo vistas com água e óleo de repente se fundiram. Não são apenas os westerns de Quentin Tarantino que comprovam o reacerto. Os de Clint Eastwood ajudaram a contaminar o DNA do gênero norte-americano por excelência.
Os filmes que fecham o pacote dos faroestes spaghetti são Dias de Ira e Cemitério Sem Cruzes. O primeiro transformou Giuliano Gemma em astro, o segundo é um western menor, mas é curiosa a forma como depura a ação com longas cenas de silêncio. É um dos bons filmes do artesão Robert Hossein, e tem como ponto alto, a ótima sequência do jantar da quadrilha, dirigida como cortesia pelo amigo Sergio Leone. São quase cinco minutos construídos de troca de olhares, gestos e uma tensão crescente sem diálogos.
Isso permite uma quantidade assustadora de interpretações e caminhos.
Caixa Faroeste Spaghetti
Disco 1
O Dia da Desforra, de Sérgio Sollima
Dias de Ira, de Tonino Valério
Disco 2
Tepepa, de Guido Petroni
Cemitério Sem Cruzes, de Robert Hossein
Caixa Cinema Faroeste Vol. 3
Disco 1
Nas Garras da Ambição, de Raoul Walsh
Entre Dois Juramentos, de Robert Wise
Disco 2
Quem Foi Jesse James?, de Nicholas Ray
Fibra de Heróis, de Bud Boeticher
Disco 3
Um Homem Difícil de Matar, de William Fraker
Fúria Abrasadora, de André de Toth