As grandes obras de arte geralmente permitem mais de uma leitura e várias abordagens. Propiciam diferentes interpretações e algumas podem ser até mesmo um tanto contraditórias - e, apesar disto, pertinentes dentro do referencial que o leitor adotou ou mesmo construiu. Silêncio, acalentado projeto de Martin Scorsese que demorou 30 anos para finalmente ser realizado, não deixará, em princípio, muitas dúvidas quanto às intenções do diretor, ligadas à sua formação católica que quase o levou ao seminário em vez de se transformar em cineasta: ele dedica seu filme aos cristãos japoneses depois de mostrar a perseguição sofrida pelos que queriam, no “distante” oriente, adotar a fé ocidental ao longo do século XVII. Fé católica levada até lá especialmente por missionários jesuítas, três dos quais são os personagens ficcionais do romance de Shusaku Endo, de 1966, “Chimonku” (no Brasil, “O Silêncio” em tradução da versão em inglês lançado pela Planeta).
Ficcionais, ainda que mais ou menos inspirados em fatos acontecidos. Aquele em que o filme mais se detém é chamado Sebastião Rodrigues, interpretado de modo visceral por Andrew Garfield (que deveria ter sido indicado ao Oscar por este desempenho e não pelo de outro filme da temporada; não só indicado: mereceria ter vencido).
Se Scorsese discute com alguma simpatia a modalidade de fé cristã, ele não omite suas adversidades: o “silêncio” do título é o mesmo abordado por Ingmar Bergman em tantos de seus filmes: o de “Deus”.
O cerne deste angustiado conflito é encarnado através da espinhosa e trágica trajetória – não só física, mas também, e quase principalmente, mental e moral - do padre Rodrigues. O cineasta, há tempos em plena posse de sua maestria na linguagem visual, também não deixa de debater através de imagens bastante sugestivas a identificação deste padre com seu ideal em Cristo, vendo-se, frequentemente, como uma possível e sublime “imitação de Cristo”, com direito mesmo a um possível “Judas” na figura do “cristão novo” que volta e meia vai trair sua fé (e voltar a cortejá-la), um japonês que lhe serviu de guia, Kishijiro (vivido por Yosuke Kubozuka).
E é quando o filme agudiza a crença católica de Rodrigues que o olhar do espectador pode se descolar de intenções de Scorsese, permitindo outras reflexões, até mesmo alheias às do projeto concebido pelo artista: como não aproximar a tolerância dos cristãos mais radicais de então para com o sacrifício que pode ser imposto pela aderência à sua fé - mais do que tolerância, uma ânsia mesmo: um intenso desejo de sofrer os suplícios bárbaros que teria sofrido o Cristo-modelar - com o fanatismo dos futuros kamikazes do mesmo Japão na II Guerra e dos homens-bomba islâmicos dos dias de hoje? São outras e bem diferentes modalidades religiosas, porém com a mesma possibilidade de sobrepujar o instinto de autopreservação. Em alguns casos, causando, com a própria morte, mortes alheias.
Pois é esta questão - a da adesão à fé a qualquer preço, ainda que o preço seja o de vidas alheias - que o padre Rodrigues terá que lidar. Em Lisboa, longe da realidade que vai vivenciar no Oriente, tudo lhe parece cristalino: não há nenhuma justificativa para abrir mão da sua fé, nenhuma desculpa para renegá-la, em qualquer circunstância. O que o bem-intencionado padre não esperava era encontrar, na realidade fora da teoria/teologia, adversários japoneses ao cristianismo com uma capacidade empática tão acurada para compreenderem a moral do amor ao próximo pelo amor de Deus: os “inquisidores” japoneses percebem que o modo mais efetivo de vencer a doutrina estrangeira não é ameaçar, torturar ou matar os seguidores dos padres, nem induzir/forçar a apostasia dos discípulos... mas conseguir a apostasia de seus “líderes”, os missionários, desmoralizando a ideia de que vale a pena morrer pela fé cristã.
Então: manter a fidelidade primária e devida a “Deus”, mesmo que isto implique numa chantagem que levará à morte dezenas, centenas de adeptos? Ou renegar a fé, com todas as possíveis consequências morais/espirituais, para preservar as vidas do rebanho?
O kamikaze e o homem-bomba não querem exatamente preservar vidas de “adversários”, e, para destruí-los, não levam em conta sua autodestruição. O cristão exemplar seria aquele que morre pelo amor a Cristo e à sua palavra, jamais “O” renegaria, pois nesta adesão absoluta à sua fé que estaria a própria salvação da alma, a vida eterna depois “desta vida”. O homem-bomba também teria seu acesso imediato aos Céus etc... Como as antíteses aparentes podem interpenetrar-se em tantos aspectos fundamentais...
Scorsese pode jamais ter levado em conta a possibilidade de que seu filme possa servir à discussão sobre as “fés cegas/facas amoladas”, mas depois que a obra de arte é parida por seu autor, deixa de ser apenas dele e passa a estar aberta - quanto mais rica for em complexidade - a diferentes, e até mesmo divergentes, interpretações. Esta é apenas uma. Muito possivelmente o filme permitirá outras...