Na primeira sequência de Pendular, segundo longa-metragem de Julia Murat, o casal de protagonistas se une num ato simples: dividir ao meio o grande galpão que abrigará seus espaços contíguos de criação. Demarcando a fronteira de seus universos íntimos com fita colante vermelha ao chão, o escultor e a bailarina estabelecem de forma precisa os limites iniciais de um campo de batalha, limites que serão permanentemente tensionados ao longo da narrativa. As linhas divisórias dessas territorialidades são esgarçadas por um roteiro que tematiza o relacionamento amoroso entre artistas, esses indivíduos que vivem na corda-bamba, movidos pelo desejo de isolamento criativo, de um mergulho em si, e pela necessidade de buscar o outro como fonte de inspiração e possibilidade de diálogo, alteridade necessária para a construção da obra.
Numa investigação corajosa da relação corpo/espaços (físicos e psicológicos), o filme, premiado na mostra Panorama do Festival de Berlim, debate as forças de poder que cismam em emergir nas relações românticas heterossexuais, em que muitas vezes atua a influência da suposta naturalidade do domínio masculino sobre o corpo e os territórios femininos, a custo subvertida. Nesse contexto, as coreografias e as esculturas vão mapeando o ambiente e seus embates explícitos ou apenas latentes, num trabalho que une uma direção de fotografia primorosa (assinada por Soledad Rodríguez) à rica atuação dos personagens centrais, em especial o belíssimo trabalho de corpo da atriz e bailarina Raquel Karro, capaz de expressar através da dança todos os enfrentamentos experimentados por uma mulher livre na ocupação do espaço doméstico.
Com direção precisa, que é capaz de transformar grandes espaços abertos em ambientes claustrofóbicos, com o fora como constante ameaça de violenta ruptura, os personagens de Pendular criam suas obras artísticas em intercâmbio com a vivência dos conflitos inerentes ao isolamento de um relacionamento em que os papéis e as expectativas precisam ser repensados. O embate de universos fechados contra forças estrangeiras a eles, invasão incômoda mas que traz em si a amplitude dos novos olhares – dinâmica já abordada pela diretora em Histórias que só existem quando lembradas (2011) – reflete-se na percepção do outro também como zona desconhecida e fora de acesso.
A tensão entre interior e exterior surge ainda na relação dos protagonistas com a crítica, corporificada na figura de um homem que convive com o casal e assume para si dois papéis que podem ou não ser incompatíveis: amigo íntimo, que testemunha o processo de criação, e crítico de arte bastante criterioso, capaz de ressaltar as fraquezas da obra e trazer à tona a insegurança e o desvario de seu criador.
Oscilando entre os polos da intimidade e da fuga, Pendular cria uma interessante e multifacetada cartografia das dificuldades do convívio íntimo entre artistas. O longa, roteirizado por Murat e por seu marido, o também cineasta Matias Mariani, demonstrando grande conhecimento de causa, triunfa ao explorar os estiramentos da relação a dois: ora com delicadeza, ora de forma bastante visceral, sem se preocupar em traçar rotas absolutas ou irrevogáveis. Essa sensação ambígua, de familiaridade e estranhamento, dá densidade ao filme e delineia os marcos de uma expedição exploratória na vastidão dos territórios construídos na experiência conjugal.
Maria Caú é autora do livro "Olhar o mar: Woody Allen e Philip Roth - a exigência da morte" e faz parte do coletivo de mulheres críticas de cinema Elviras.
Leia também a crítica de Daniel Schenker na seção de CRÍTICAS deste site.