DVD/Blu-ray


COLEÇÃO NELSON PEREIRA DOS SANTOS

De: NELSON PEREIRA DOS SANTOS
Com: GRANDE OTELO, ODETTE LARA, JECE VALADÃO, ÁTILA IÓRIO, ARDUINO COLASSANTI, ADRIANA PRIETO, MARCIA RODRIGUES
14.09.2017
Por Hamilton Rosa Jr.
Coleção resgata obra de Nelson Pereira em todo seu esplendor

Nelson Pereira dos Santos foi e continua sendo um dos cineastas que mais deram conta de pensar o Brasil em imagens. Com igual envergadura talvez só existam outros dois nomes tão contundentes na cinematografia, Glauber Rocha e Eduardo Coutinho. Cada um num terreno pessoal e passional de pesquisa. Mas a investigação de Nelson Pereira remonta mais de cinquenta anos de experimento. Ele praticamente realizou um filmes influente em cada década, Rio, 40 Graus (em 1955), Vidas Secas (em 1963), Como Era Gostoso o Meu Francês (em 1971), Memórias do Cárcere (em 1984 ), e Casa-Grande e Senzala (em 2000). Faltava, entretanto, uma coleção em DVD reunindo todos esses filmes essenciais de Nelson.

Felizmente a Bretz Films assumiu a tarefa de curadoria e aumentou o escopo. São 4 caixas com a obra em longa metragem quase completa do cineasta (quase, porque faltou o seminal Rio, 40 Graus, que a distribuidora negocia os direitos). A coleção tem tratamento refinado. Além de resgatar os filmes em cópias restauradas, contextualiza cada obra com depoimentos extras de historiadores, pesquisadores e artistas.

O primeiro pack, cobrindo a carreira do diretor de 1956 a 1967, está saindo este mês. As outras caixas estão previstas para serem lançadas bimestralmente, em ritmo de contagem regressiva até 2018, ano em que o cineasta completa 90 anos.

Nelson Pereira sozinho conta a história do cinema brasileiro. Durante grande parte de sua carreira, ele não só manteve uma autoria independente, alcançando uma abordagem inovadora e criativa para explorar a cultura brasileira, mas, amparado por sua experiência como jornalista, colocou em primeiro plano na tela tudo o que era deixado debaixo do tapete. Do cotidiano das comunidades do Rio à brutal violência urbana; dos contrastes sociais às injustiças.

Rio, Zona Norte

Antes da chegada de Nelson, a vida era um carnaval nos filmes da Atlântida e o samba embalava um país ingênuo e festeiro. Raros eram os filmes que brigavam dentro do formato. Com a entrada de Nelson em cena, o próprio modo como o samba era usado, mudou. Claro, desde os primórdios, desde de um Noel Rosa, os sentidos eram elásticos, o teor de lamento, de protesto, de sátira, a expressão, ao mesmo tempo íntima e social do colorido do morro, não se via ou se ouvia nos filmes. Nelson rompeu esse tabu em 1955 com Rio, 40 Graus, seguido no ano seguinte de Rio, Zona Norte.

O primeiro trabalha o realismo com uma crueza documental magnífica, o segundo é mais composto no melodrama, o que rendeu críticas injustas a Nelson Pereira. De certa forma, Rio, Zona Norte é filme de um autor que não quer se repetir. Em cena, contrapõem-se dois universos que francamente pareciam que nunca tinham se encontrado na tela. O do personagem central, 'Espírito da Luz Soares' (Grande Othelo), sambista e morador de uma favela, e o de Moacir (Paulo Goulart), um músico de classe-média da Zona Sul carioca. Moacir sobe o morro para tomar contato com a cultura popular e acaba fascinado com as letras e o batuque de Espírito.

Na caixinha de fósforo, o sambista (inspirado no amigo de Nelson, Zé Kéti) projeta um mundo intenso, autêntico, que Moacir, o cantor branquelo e classe média da zona Sul, não concebe com a mesma riqueza. Por isso, ele circula em volta do genuíno sambista como se fosse um vampiro. Há também o empresário de rádio (Jece Valadão) que compra o samba de Espírito para colocar na voz de outros. Os oportunistas devoram o ingênuo. A apropriação rende a glória para a Zona Sul. A certa altura o diálogo é mordaz: Se não tivermos mais o Espírito pra compor o samba, o que faremos? - Fácil, diz o empresário: suba na comunidade, lá você sempre vai achar 3 ou 4 caras que saberão algum samba que o Espírito criou, mas não gravou.

Cada um dos cinco filmes deste pack vem acompanhado de documentários sobre os bastidores. O disco de Rio, Zona Norte destaca-se pelo depoimento de Nelson esmiuçando sua parceria com Grande Othelo, e com a professora Maria Rosário Fabris falando das influências do neorrealismo italiano nesta primeira fase da carreira do diretor. O neorrealismo não apenas apontava para o cinema brasileiro - e em seguida para o Cinema Novo - como lidar com orçamento mínimo, com a presença de atores amadores, mas propiciava redescobrir uma paisagem natural, não aquela imposta pelos estúdios. Fabris ilustra o contexto e mostra como Nelson vinha aprimorando as lições italianas quatro anos antes. Rascunhos do que ele faria em seus dois primeiros filmes já podia ser vistos em O Saci (Rodolfo Nanni, 1951), Agulha no Palheiro (Alex Vianny, 1953) e Balança Mas Não Cai (Paulo Wanderley, 1953), três filmes em que foi assistente de direção.

Mandacaru Vermelho

Pela ordem cronológica, o filme seguinte no pack é Mandacaru Vermelho. No fundo, o longa é um esboço de Vidas Secas. Nelson foi à Bahia e se instalou na região de Petrolina e Juazeiro para rodar o romance de Graciliano Ramos, mas quando chegou tinha chovido tanto que a caatinga tinha virado jardim. O que fazer? Equipe, elenco, câmera estavam todos no Hotel... Nelson decidiu mudar o projeto, e improvisou um novo roteiro. Um nordestern de enredo trágico, sobre a sanha implacável de Dona Dusinha (Jurema Penna), uma latifundiária, que manda prender e matar quem se rebela contra a lei que ela mesmo inventou para o agreste. No passado mandou matar o irmão e a cunhada num massacre que tingiu a caatinga de sangue. O tal mandacaru, vermelho como fogo, nasceu no local. Anos depois, Clara (Sônia Pereira), sobrinha de Dusinha, foge com um camponês (o próprio Nelson Pereira, estreando como ator) e a perseguição desemboca no mesmo canto da antiga matança, aos pés do Mandacaru.

Nelson nunca teve muito apreço pelo filme. Do pack, aliás, esse é o que possui menos complementos. O cineasta comparece apenas para dar um depoimento sobre o trabalho de câmera de Hélio Silva (que depois faria a espetacular fotografia de A Hora e e Vez de Augusto Matraga, para Roberto Santos).

Sobre esse quesito da improvisação em Mandacaru, vale ressaltar que Nelson é inventivo, ousado, mas não a ponto de trabalhar com texto aberto e câmera livre, como Glauber. Nelson é um homem de texto, seu modus operandi envolve um planejamento que embora nem sempre transpareça, é feito de muita depuração.

Boca de Ouro

Quando ele decide adaptar a peça "Boca de Ouro", de Nelson Rodrigues, nem sentimos a origem teatral do texto. Cada sequência é aqui a ocasião de reinventar a maneira de filmar e montar de modo sempre mais perscrutante, sempre mais emocionante. Os raccords são conflitantes, a fotografia hiper contrastada, a câmera flui dos cenários para a rua de forma febril. Boca de Ouro é quase como um jornal sensacionalista em movimento. A violência é deliberadamente exagerada e as cenas de nudez bastante sugestivas.

Esse gênio expressivo está a serviço de uma pintura do cotidiano suburbano do lendário "Drácula da Madureira", o "Dom Quixote do jogo do bicho", o homem que matava com uma mão e dava esmola com a outra. O roteiro se alinha pelo depoimento de dona Gigi (Odete Lara), a ex-amante, antes de saber da morte do bandido. Em cada flashback ela muda a versão da história do falecido, de acordo com seu humor. Assim o 'Boca de Ouro' aparece como um sujeito mulherengo, escroto e implacável, depois muda para o oportunista que corrompe tudo e todos e finalmente, um bandido amoroso que merece a respeitabilidade social graças às suas obras de caridade. Tudo isso filmado num ritmo pulsante.

Na época, Boca de Ouro foi um grande sucesso, catapultando o nome de Jece Valadão para o estrelato,e firmando o estereótipo de bandido do qual ele raras vezes conseguiu se desvencilhar depois. Consta, porém, que esse êxito foi de público. A crítica, em princípio, torceu o nariz. Havia um preconceito quanto a Nelson Rodrigues. O dramaturgo era de direita e Nelson Pereira era de esquerda. Todo mundo jocosamente se referia a Boca de Ouro como o filme que reunia o Nelson comunista com o Nelson reacionário. O próprio cineasta conta essa história nos extras.

Outro depoimento saboroso é o de Daniel Filho. E aqui temos um diretor falando do outro. Daniel revela que ficou impressionado com a forma como Nelson inseria os atores no meio da multidão, sem interferir na realidade. "Ele colocava a câmera no meio do povo e deixava ela lá, até a multidão se acostumar. Só depois, quando achava que a câmera já fazia parte da realidade, Nelson começava a filmar".

Outro ponto curioso do depoimento se refere a deterioração dos negativos. Realmente o filme quase se perdeu. Os negativos originais não estavam catalogados no arquivo e estavam mofando no laboratório da Líder. Quando descobriram do que se tratava, procuraram Daniel na Rede Globo, perguntando se ele gostaria de comprar.

Dentro do disco há ainda o curta Um moço de 74 anos, de Leon Hirzsman, um incrível documentário sobre o aniversário do jornal mais antigo do Brasil, o JB.

Vidas Secas

Fato é que o caso de amor de Nelson com as letras nunca esfriou. Ele escreveu praticamente todos os roteiros de seus filmes, cuja grande maioria foi extraída de obras literárias. De Graciliano Ramos a Guimarães Rosa; de Jorge Amado, passando por Sergio Buarque de Holanda a Gilberto Freire. Suas adaptações de romances tornaram-se tão essenciais quanto os livros. O maior caso deles é Vidas Secas. De certa forma, a versão de Nelson complementa as qualidades do romance: porque, cinematograficamente, ele conseguiu dar vida à atmosfera particular da região do sertão com uma pungência que não se encontrava no livro.

Filmado em configurações naturais em modo quase documentário, o espaço aberto em Vidas Secas, seu tempo lento, os silêncios, o som monótono dos carros de boi e o drama humano, são narrados de maneira decantadas. Dá até sede ao assistir.

Na seção de depoimentos e extras que acompanham o disco, vale ressaltar o ótimo Como se Morre no Cinema, um curta satírico que mostra o escândalo causado pela exibição de Vidas Secas no Festival de Cannes. Aqui cabe a explicação: os franceses acharam tão realista a morte da cadela Baleia no filme, que uma indagação ganhou as manchetes dos jornais:será que teriam sacrificado o animal para fazer o filme?

Luís Carlos Barreto teve que levar a cadela a Cannes para mostrar que a produção não tinha cometido nenhum tipo de mal trato com o animal.

El Justicero

Desta primeira safra, o que fica evidente é como em cada ambiente, Nelson Pereira alcançou um grau de observação único. El Justicero é muitas vezes confundido com um filme fútil. A mancha na carreira de um cineasta admirado. A revisão, porém, salienta uma outra coisa. O filme, na verdade, faz o maior deboche da futilidade burguesa da Zona Sul. Nada escapa às lentes de Nelson Pereira. Nem os militares e muito menos os militantes de grife, a falsa esquerda de botequim. O roteiro de João Bettencourt é inteligentíssimo. O personagem de Arduino Colasanti, 'Jorge das Neves', é o surfista grã-fino, filho de general, que quer comer todas as meninas. Ele se acha o máximo, imita os trejeitos dos heróis estrangeiros, se envolve em tramoias criminais como se fosse um James Bond. Constrói um imaginário fuleiro em que até a menina militante e engajada embarca. As mulheres sobem em sua prancha, mas quem disse que ela suporta? Um dia, quando Ana Maria (Adriana Prieto), a jovem burguesa põe um chifre no herói, ele não se conforma. Ao descobrir que ela está grávida o surfista fica careta e quer casar. Entram os pais no acerto, o empresário milionário de um lado, o general do outro. Tudo parece encaminhado, mas quem disse que Ana Maria quer obedecer à ordem natural burguesa? Jorge das Neves fica na fossa, e procura a amiga engajada. Ela pergunta quando ele vai acordar pro mundo real. A cena do alienado Jorge enchendo a cara e gritando pra todo mundo acordar é de uma ironia incrível. Levou meses para a ditadura perceber como as instituições eram ridicularizadas, ao mesmo tempo que o protagonista pedia pro povo despertar da alienação.

Quando a censura se tocou, o filme foi retirado de cartaz e seus negativos foram destruídos.

Há um material extra contextualizando aqueles tempos, e uma entrevista bem interessante da pesquisadora Leonor Souza Pinto contando detalhes sobre o despreparo da censura entre 1965 e 1967. Na verdade, os censores não entendiam nada das cartilhas da esquerda e foram obrigados a estudar. Leonor conta que de 68 em diante,tornou-se mais complicado driblar o grupo.

Além dessas histórias enriquecedoras, há muitas outras oferecidas pela Coleção de Nelson Pereira dos Santos. E essa é apenas uma parte. Vamos aguardar que surpresas e possibilidades de releituras nos trarão as próximas caixas.

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