Especiais


50o. FESTIVAL DE BRASÍLIA

16.09.2017
Por Daniel Schenker
Acompanhe a cobertura crítica do evento, com atualizações diárias.

RESULTADO



Longa-metragem:



Filme: Arábia

Direção: Adirley Queirós ( Era uma vez Brasília )

Ator: Aristides de Sousa ( Arábia )

Atriz: Valdinéia Soriano ( Café com Canela )

Ator Coadjuvante: Alexandre Sena ( O Nó do Diabo )

Atriz Coadjuvante: Jai Baptista ( Vazante )

Roteiro: Ary Rosa ( Café com Canela )

Fotografia: Joana Pimenta ( Era uma vez Brasília )

Direção de Arte: Valdy Lopes JN ( Vazante )

Trilha Sonora: Francisco Cesar e Cristopher Mack ( Arábia )

Som: Guile Martins, Daniel Turini e Fernando Henna ( Era uma vez Brasília )

Montagem: Luiz Pretti e Rodrigo Lima ( Arábia )

Prêmio Especial do Júri: Melhor Ator Social para Emelyn Fischer ( Música para quando as Luzes se Apagam )

Júri Popular: Café com Canela

Prêmio Abraccine: Arábia



Curta-metragem:



Filme: Tentei

Direção: Irmãos Carvalho ( Chico )

Ator: Marcus Curvelo ( Mamata )

Atriz: Patricia Saravy ( Tentei )

Roteiro: Ananda Radhika ( Peripatético )

Fotografia: Renata Corrêa ( Tentei )

Direção de Arte: Pedro Franz e Rafael Coutinho ( Torre )

Trilha Sonora: Marlon Trindade ( Nada )

Som: Gustavo Andrade ( Chico )

Montagem: Amanda Devulsky e Marcus Curvelo ( Mamata )

Prêmio Especial: Peripatético

Júri Popular: Carneiro de Ouro

Prêmio Canal Brasil: Chico

Prêmio Abraccine: Mamata





OITAVA NOITE DE COMPETIÇÃO



Longa-metragem:



ARÁBIA , de Affonso Uchoa e João Dumans



Aparentemente, Affonso Uchoa e João Dumans dão a impressão de que o foco de Arábia recairá sobre as jornadas de dois irmãos, André (Murilo Caliari) e Marcos, que vivem distanciados dos pais, perto de uma fábrica em Ouro Preto, contando apenas com a ajuda de uma tia, Marcia. Ledo engano. Os diretores abordam mesmo a trajetória de Cristiano (Aristides de Sousa), um dos trabalhadores da fábrica. A história dele vem à tona a partir do momento em que André acha um caderno, no qual Cristiano relata seu percurso pelo interior de Minas Gerais até chegar na fábrica em Ouro Preto.

Por meio de Cristiano, os diretores destacam a solidariedade entre os trabalhadores e a relevância da união de classe na reivindicação por melhores condições de subsistência. Lula e o ABC paulista (São Bernardo do Campo) são mencionados. Aos poucos, o espectador tende a estabelecer grande empatia não só com o protagonista como com todos os personagens que atravessam a tela. Há uma fé no humano, uma pureza, presente desde o início da projeção, já na relação entre André e o irmão menor.

O valor cinematográfico, porém, acaba minimizado devido ao modo como os diretores estruturaram o filme. Como o percurso de Cristiano é revelado a partir da leitura de tudo o que escreveu no caderno, as imagens, na maioria das vezes, apenas confirmam, ilustram, a narração (em off, do próprio Cristiano). Nesse sentido, Uchoa e Dumans conferem importância reduzida às imagens, com exceção de um trecho ao final, quando Cristiano subitamente deixa de ouvir os sons da fábrica. É o instante em que, segundo ele, consegue, de fato, observar a fábrica, como se, até então, os sons externos dispersassem a atenção. O espectador também deixa de ouvir o som ambiente e passa a escutar “apenas”a voz de Cristiano.



Curta-metragem:



A PASSAGEM DO COMETA , de Juliana Rojas



Também autora do roteiro, Juliana Rojas aborda a breve interação entre quatro mulheres – uma paciente prestes a fazer um aborto, uma amiga, a médica e a secretária – numa clínica clandestina. A relação entre elas é traçada por meio de pinceladas discretas – uma certa secura da secretária, a solidariedade, num dado momento, da médica com a paciente. A diretora destaca o impacto físico e psicológico do aborto (“É estranho. Parece que o corpo não é meu”, diz a paciente logo após o procedimento) e conjuga, de maneira curiosa, as instâncias do real e do sonho (a inclusão da música e das cores fortes no instante em que a paciente adormece com a sedação). Também evidencia habilidade na concentração da “ação” em poucos ambientes fechados e na discreta reconstituição da época, nos anos 80, durante a última passagem do Cometa Halley. Por meio desse fato histórico, Rojas conjuga dois acontecimentos importantes, de exceção – um que diz respeito ao mundo e o outro, tão-somente à vida de uma mulher.





SÉTIMA NOITE DE COMPETIÇÃO



Longa-metragem:



ERA UMA VEZ BRASÍLIA , de Adirley Queirós



Depois de Branco Sai, Preto Fica , Adirley Queirós retoma a ficção científica para abordar o aqui/agora, mas sem perder de vista a perspectiva histórica. O investimento no cinema de gênero em prol de uma análise do real também foi empregado no longa O Nó do Diabo e no curta Chico , filmes presentes na competição do Festival de Brasília. Na fábula apresentada por Adirley (caráter sugerido pelo Era uma Vez do título), o agente intergaláctico WA4 (Wellington Abreu) recebe a missão de vir à Terra para matar o presidente Juscelino Kubitcheck, mas acaba desembarcando num momento histórico diverso. Por meio desse mote, o cineasta destaca instantes emblemáticos da história de Brasília: a sua fundação e o impeachment de Dilma Rousseff (com menção à folclórica votação dos deputados) e a entrada de Michel Temer.

Mais do que o roteiro, algo descosturado, de autoria do próprio Adirley, Era uma vez Brasília chama atenção pela ambientação em espaços da periferia (ou do que se costuma classificar como periferia) – no caso, a cidade-satélite de Ceilândia. Uma atmosfera formada por ruas quase desertas, às vezes não asfaltadas, latidos de cachorros, movimento constante de metrô, grades de ferro, carros abandonados e desmontados – elementos da geografia afetiva de Adirley. Esse universo é reforçado por uma espécie de nave espacial de sucata, proposta da direção de arte (de Denise Vieira) e síntese de um cinema que, diante da escassez de recursos, investe na criatividade. Cabe destacar ainda a interpretação de Andreia Vieira, ótima na cena em que relata a trajetória de sua personagem, em especial no que se refere ao motivo pelo qual foi parar na prisão. Apesar da distância entre a proposta e o resultado, Adirley Queirós se mantém fiel ao seu cinema e não deixa de correr riscos, a exemplo do ritmo exasperante que impõe ao longo da projeção.



Curtas-metragens:



CHICO , de Irmãos Carvalho



Como Era uma Vez Brasília , Eduardo e Marcos Carvalho se valem de uma abordagem futurista (contam uma história ambientada em 2029) para falar sobre os dias de hoje. A ação se passa numa favela e é centrada na jornada de Chico (Fabricio Assis). Como as demais crianças negras e pobres, ele é rastreado por meio de uma tornozeleira. Vive com a mãe agressiva (Jeckie Brown, de Jogo de Cena , de Eduardo Coutinho) e a avó amorosa (Lucia Talabi) num prédio em ruínas. Os diretores constroem uma instigante dramaturgia dos espaços num filme que chama atenção pela montagem (de João Rabello) – cabe destacar o corte abrupto de Chico subindo a favela para a agitação física da mãe –, pelo trabalho de som (a cargo de Gustavo Andrade e Mariana Graciotti) e pelo final impactante. Também há fragilidades, no roteiro (de Tiago Coelho), que opõe mãe e avó de maneira algo esquemática, e na atuação exagerada de Brown. Mas o resultado bate na tela de forma contundente.



CARNEIRO DE OURO , de Dácia Ibiapina



Dedé Rodrigues é apaixonado por cinema desde criança. Munido de disposição invejável, tornou-se cineasta e, no interior do Piauí, passou a realizar filmes repletos de efeitos especiais artesanais. Não por acaso, ficou conhecido como o “Spielberg do sertão”. O público já se deparou, em outros filmes, com os feitos de um diretor como Dedé. De qualquer modo é um prazer conhecê-lo. Dácia Ibiapina apresenta ao público esse ótimo personagem, ilustrando as falas de seu personagem, colhidas em entrevistas, com trechos de suas produções.





SEXTA NOITE DE COMPETIÇÃO



Longa-metragem:



POR TRÁS DA LINHA DE ESCUDOS , de Marcelo Pedroso



Em mais de uma cena desse seu novo filme, Marcelo Pedroso pergunta a integrantes do Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco se eles, ao se colocarem munidos de escudos diante da população, têm uma opinião pessoal sobre o conflito. “Trabalhamos com a norma. Não cabe ao policial refletir sobre ela”, respondem. Talvez por isso o cineasta busque um comprometimento com o universo que aborda ao se incluir diretamente no filme, aparecendo não apenas nas entrevistas como participando de treinamentos – em especial, no que se refere aos testes com gás lacrimogêneo. No entanto, Pedroso se posiciona de modo a buscar um ponto de equilíbrio entre os dois lados do conflito – o dos manifestantes que reivindicam e o dos policiais encarregados de restabelecer a ordem.

Em determinado momento, o diretor faz um exercício de empatia ao afirmar que manifestantes e policiais não reconhecem a humanidade uns dos outros. Sua intenção parece ser a de fugir ao lugar-comum de reafirmação da truculência policial e problematizar os antagonismos tão marcantes no contexto de hoje. É como se procurasse mostrar que o mundo não se reduz às imagens contrastantes que expõe, com certa perplexidade, em duas televisões dispostas lado a lado – a de um manifestante sangrando e a de outros de verde e amarelo tirando fotos ao lado dos policiais. Nesse documentário, Pedroso assume uma abordagem polêmica. Compensa, em parte, alguns problemas de realização, como a sensação de artificialidade em sua postura diplomática e a dificuldade para encerrar o filme, que se alonga um pouco mais que o necessário.



Curtas-metragens:



TORRE , de Nádia Mangolini



Em Torre , Nádia Mangolini propõe combinações que podem soar como inusitadas, a começar pela conjugação entre animação e documentário para evocar as jornadas dos quatro filhos de Virgilio Gomes da Silva, o primeiro desaparecido político da ditadura militar, no exílio. Há um interessante contraste entre a crueza do contexto político que os filhos, em depoimentos em off, trazem à tona e o caráter lúdico do desenho, que, ao longo da projeção avança, ganha cores mais vibrantes. Além disso, a abordagem intimista dos anos de chumbo (no que se refere à interrupção do elo entre o pai e os filhos e à carga de não-dito no vínculo com a mãe, que também foi presa, com os filhos) é emoldurada por sons ambientes.



BAUNILHA , de Leo Tabosa



Leo Tabosa aborda o sexo sadomasoquista ao mergulhar no universo do BDSM por meio da entrevista com um praticante, Breno Furrier, que concordou em participar do filme com a condição de não mostrar o rosto. Também a cargo de Tabosa, o roteiro evidencia pertinente, mas excessiva, preocupação em afirmar que o BDSM não envolve necessariamente promiscuidade. Frisa que não se deve estigmatizar aqueles que se filiam a essa vertente do sexo. A preocupação é justa, mas torna o resultado algo reiterativo.





QUINTA NOITE DE COMPETIÇÃO:



Longa-metragem:



O NÓ DO DIABO , de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé, Jhésus Tribuzi



Filme dividido em cinco partes assinadas por diretores diferentes (apenas Ramon Porto Mota realizou mais de uma), O Nó do Diabo conjuga o contexto político, econômico e social – a perpetuação da exploração imposta pela elite sobre o trabalhador – com o cinema de gênero – no caso, o terror.

Há um movimento perceptível na articulação entre as partes que integram esse longa. Os diretores intitulam as histórias com anos, numa cronologia decrescente (começando no século XXI e terminando no XIX, cobrindo 200 anos de história). Mostram, dessa maneira, a continuidade de uma dinâmica escravocrata na relação com o empregado. A primeira parte se passa numa fazenda estagnada, simbolizada tão-somente por meio de uma casa vazia e pelas presenças do capataz e do patrão. A segunda revela a casa grande, ainda que mal conservada, a partir da chegada de dois trabalhadores que logo são assimilados e comandados por uma elite autoritária (destaque para a atuação de Alexandre Sena nesse segmento). Na terceira, os demais membros da família aristocrática aparecem, formando o pano de fundo para uma trama centrada nas perversões às quais duas irmãs são submetidas. Na quarta, o filme se distancia do ambiente da fazenda (um homem vaga desnorteado, com um bebê morto, por uma paisagem rochosa), mas sem perder de vista o sadismo com que os empregados – agora, escravos – são tratados. Na última, também distante da propriedade dos patrões, os escravos se refugiam na tentativa de escaparem dos algozes.

A realidade ainda vem à tona por meio de situações marcantes tanto no passado – a substituição da mão de obra pela máquina – quanto no presente – a ordem para que se evite a todo custo, mesmo através da violência, que moradores da comunidade vizinha tentem entrar na fazenda abandonada. Esse jogo temporal remete, longinquamente, a O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho. De qualquer modo, o real é tensionado com o fantástico. Muitos personagens têm pesadelos e mergulham numa espiral de delírios e alucinações à medida que perdem o controle sobre seus atos. O corpo é um elemento importante que representa tanto o real (os diversos ferimentos) quanto a suspensão desse registro (em situações fantásticas, como a do cachorro que sai andando com as tripas para fora ou a do machucado no dedo que não só nunca cura como se espalha misteriosamente pelo braço).

Apesar de certa irregularidade quase inevitável entre as partes, O Nó do Diabo desponta como uma experiência instigante, valorizada pelo trabalho de som, que potencializa a atmosfera sinistra.



Curta-metragem:



TENTEI , de Lais Melo



A interpretação de Patricia Saravy se impõe com grande destaque em Tentei . Sem praticamente falar ao longo desse filme de Lais Melo, a atriz transmite o estado de uma personagem, Glória, que sai de casa decidida a denunciar as agressões do marido. Devido, em especial, à sua atuação, as simples ações cotidianas – se maquiar, tomar café – ficam interessantes, assim como a contracena, praticamente silenciosa, com o escrivão. Ao final, a câmera se mostra mais presente ao expressar, por meio de instabilidade, o quadro emocional de Glória ao voltar para casa.





QUARTA NOITE DE COMPETIÇÃO:



Longa-metragem:



CONSTRUINDO PONTES , de Heloisa Passos



Não há um grande arco dramático no documentário Construindo Pontes . Ao trazer à tona a relação conturbada com o pai, Álvaro, Heloisa Passos não mostra propriamente um processo de conciliação, mas talvez a impossibilidade de uma aproximação mais direta. A cineasta evoca um grande conflito com o pai, há quase 30 anos, que a flagrou com uma namorada. Ela saiu de casa e mudou de cidade – de Curitiba para São Paulo.

Ambos também assumiram posicionamentos políticos antagônicos. Os contrastes fazem com que Heloisa e Álvaro despontem na tela como personagens algo previsíveis, pouco contraditórios. Heloisa indaga sobre a atuação profissional do pai, engenheiro, durante a ditadura. Álvaro conserva opiniões reacionárias: defende a existência de um importante projeto de país durante os anos de chumbo, chama o golpe militar de 1964 de revolução, afirma que os militares “tinham limites para a corrupção” e minimiza a tortura durante o período. Na atualidade, Álvaro se opõe ao governo do PT, enquanto Heloisa revela simpatia pela ex-presidenta Dilma Rousseff e desconfia dos objetivos da Lava Jato. A articulação entre passado e presente pode dar a impressão de que os lados da história defendidos por ambos nos dias de hoje são uma continuidade natural dos posicionamentos político-ideológicos que tomaram décadas atrás, mas não necessariamente.

Heloisa reage de maneira catártica à visão de mundo do pai. Na primeira discussão, não suporta e decide desligar a câmera. No embate seguinte, resiste, mas não consegue deixar de se irritar. Possivelmente na tentativa de aprender a suportar a convivência com o pai, propõe uma viagem, de Curitiba até Guaíra. Nesse deslocamento, planeja o lugar aonde deveriam chegar para encerrar o filme. Repete a sequência três vezes. Álvaro, porém, sugere outro final, que acaba prevalecendo. É o momento em que Heloisa abre mão do controle e se depara com uma circunstância inesperada. Pode ser o passo inicial para uma mudança.

Experiente diretora de fotografia, Heloisa alcança aqui resutado expressivo nesse terreno, a julgar pela projeção de imagens familiares na parede durante a movimentação de um elevador de carga e pela sequência da viagem de carro, na qual aparecem frequentemente o rosto de Álvaro e apenas o braço de Heloisa.



Curta-metragem:



MAMATA , de Marcus Curvelo



Durante parte considerável do tempo, Mamata é um solo com atuação do próprio diretor, Marcus Curvelo, que interpreta um personagem, Jóder, que há muito tempo deixou de acreditar no Brasil – seu último ímpeto nacionalista, afirma, foi no momento da morte de Ayrton Senna. Ele se vê diante de problemas financeiros e sonha morar ao lado da namorada, Sabrina, no exterior. Mas o registro aqui passa longe do dramático. Joder não é exatamente uma vítima do sistema. A própria namorada lembra que ele costuma dormir 12 horas por dia e ele revela que viajou até Brasília para fazer uma prova, que, porém, acabou perdendo. Um indivíduo catártico (“Fora, Temer”, gritam enquanto dirige), mas acomodad, numa jornada repleta de distorções (como a imagem do rosto cortado de Jóder diante do espelho e o modo como Vanusa canta o Hino Nacional).





TERCEIRA NOITE DE COMPETIÇÃO



Longa-metragem:



CAFÉ COM CANELA , de Ary Rosa e Glenda Nicácio



Café com Canela representa um cinema do cotidiano. Os personagens trazem à tona alegrias e tragédias do dia a dia, os atores seguem um registro naturalista e a direção de arte (de Glenda Nicácio, uma das diretoras do filme) reconstitui com fidelidade a atmosfera de casas humildes, mais solares ou entristecidas. Essas características, porém, não dizem tudo sobre esse primeiro longa-metragem de Ary Rosa e Nicácio. Em algumas cenas ambientadas na casa de Margarida (Valdinéia Soriano), mulher que se isolou após a morte do filho, há uma suspensão do realismo. São passagens delirantes, como aquela em que sangue escorre pela paredes, e marcadas por um tom de desvario. Os atores criam personagens reconhecíveis, mas há diferenças: a maioria adere a atuações em que as construções estão menos visíveis, enquanto outros – caso de Babu Santana, que interpreta Ivan, que subitamente perde o marido, Adolfo (Antonio Fábio) – realçam composições.

Os personagens atravessam momentos de luto. Além dos mencionados há Violeta (Aline Brunne), que superou a perda dos pais e renasceu de modo contagiante, atenta ao sofrimento dos amigos. À medida que a projeção avança, o roteiro, assinado por Rosa, valoriza cada vez mais a relação entre Violeta e Madalena, no que se refere ao esforço da primeira para tirar a segunda de um quadro depressivo. Determinadas irregularidades são compensadas pelos desempenhos dos atores, pela empatia suscitada pelos personagens – acompanhados sempre de perto pela câmera – e por propostas de linguagem surpreendentes, a exemplo do instante em que Violeta, logo após perguntar “será que, da mesma forma que a gente consegue ver os artistas na tela, eles também conseguem ver a gente?”, olha para a câmera e, consequentemente, para o espectador.



Curta-metragem:



AS MELHORES NOITES DE VERONI , de Ulisses Arthur



Em sintonia com o longa-metragem exibido na mesma noite, esse curta alagoano de Ulisses Arthur estampa na tela o cotidiano – no caso, da Veroni do título (Lais Lira), que mora num conjunto habitacional ao lado do marido caminhoneiro (Jorge Adriani), com quem tem conflitos abafados, se dedica às tarefas domésticas e cuida da filha. O canto surge como uma via de escape para o dia a dia pouco estimulante.





SEGUNDA NOITE DE COMPETIÇÃO



Longa-metragem:



PENDULAR , de Julia Murat



Logo no início de Pendular , filme de Lucia Murat, o casal protagonista intrepretado por Raquel Karro e Rodrigo Bolzan divide ao meio com uma fita o amplo galpão onde mora. Cada um trabalha num desses espaços delimitados – ela, bailarina, ensaiando suas coreografias e ele, artista plástico, criando esculturas de grande porte.

Ao longo da projeção, porém, essa separação rígida de espaços é tensionada e renegociada. Em determinado instante, ele afirma que precisa de mais espaço. A questão pode ser estendida para o âmbito da intimidade. Há uma cena em que ambos trocam as posições sexuais e passam a experimentar o lugar do outro. Talvez os personagens de Pendular desejem vivenciar os dois espaços – ou, quem sabe, todos os espaços. Esse acúmulo diz respeito ainda ao personagem de Marcio Vito, crítico de arte e, ao mesmo tempo, amigo do casal.

Exibido no Festival de Berlim, Pendular desponta como uma proposta artística próxima de Em Três Atos , dirigido recentemente pela mãe de Julia, Lucia Murat. Os dois filmes são estruturados em atos – o de Lucia, como o título anuncia, em três ( Corpo , Morte , Despedida ) e o de Julia,em quatro ( A Chegada de Alice , O Ímpeto , A Ação e A Contração ). Em Três Atos era ambientado, em boa parte, num espaço fechado (uma sala de ensaio) e contava com as presenças de bailarinas – Angel Vianna e Maria Alice Poppe, que dançavam uma coreografia de João Saldanha, Qualquer Coisa a Gente Muda . Em Pendular , há as sequências de dança com Raquel Karro e a inclusão de um trecho de filme de Jonathan Demme, com a coreógrafa Trisha Brown.

O destaque ao corpo é mais uma característica propiciadora de articulações entre as duas produções. Enquanto Lucia frisava as mudanças físicas decorrentes da passagem do tempo, Julia potencializa extremos de dor (feridas, traumas) e prazer (a intensidade sexual do casal). Em Pendular , a importância do corpo também vem à tona em momentos mais cotidianos, como as partidas de futebol realizadas com os amigos e a preparação de um peixe.

Para completar, há uma discussão sobre o processo artístico que integra os dois filmes. Lucia Murat refletiu sobre a finitude a partir de textos de Simone de Beauvoir. Julia Murat, além de mostrar as criações concomitantes de seus personagens centrais, realça a existência de um cabo de aço que atravessa o espaço do galpão sem utilidade definida. Um elemento que pode remeter à inutilidade da obra de arte (no sentido prático/pragmático), que, nem por isso, deixa de ser transformadora e revolucionária.



Curta-metragem:



INOCENTES , de Douglas Soares



O olhar está no centro da concepção de Inocentes , filme que traz à tona o trabalho artístico de Alair Gomes, que se dedicou especialmente a fotografar corpos masculinos esculturais. Douglas Soares coloca o espectador na posição de Alair: a de alguém que, da janela de um apartamento em frente à praia, no Rio de Janeiro, assiste aos corpos de jovens banhistas. Num dado momento, um dos rapazes olha para quem o observa.

No decorrer do filme, o diretor propõe outras operações. Numa passagem, Alair parece estar sendo golpeado. O público não tem acesso à imagem do agressor. Há, portanto, uma ruptura entre o que o personagem (Alair) e o que o espectador veem. Mais adiante, rapazes surgem no apartamento de Alair. Os objetos de desejo não estão mais distanciados, abordáveis apenas pelas lentes da máquina fotográfica.

A distância, contudo, não é totalmente suprimida. As sombras das mãos de Alair – que permanece como uma presença invisível, simbolizada pela voz em off do ator Marcos Caruso – passeiam pelos corpos dos rapazes, mas não tocam de fato. Mesmo quando as imagens se tornam mais explícitas, contrastadas com a música Suave é a Noite , o contato físico entre Alair e os rapazes não é concretizado. Valorizado pela fotografia em preto e branco de Guilherme Tostes, Inocentes joga luzes sobre Alair Gomes, profissional recentemente destacado na montagem Alair , texto de Gustavo Pinheiro encenado por Cesar Augusto.





PRIMEIRA NOITE DE COMPETIÇÃO



Longas-metragens:



VAZANTE , de Daniela Thomas



Novo filme de Daniela Thomas exibido no Festival de Berlim, Vazante mostra as trágicas consequências decorrentes da subversão de estruturas de poder fortemente instauradas por meio de uma história ambientada na Minas Gerais de 1821 – a de Beatriz (Luana Nastas), menina de 12 anos levada a se casar com o tropeiro português Antonio (Adriano Carvalho), de 45 anos, que perdeu a esposa em trabalho de parto. A submissão dos negros em relação aos brancos, das mulheres em relação aos homens e até dos homens em relação a outros homens mais abastados é evidente. Não por acaso, os negros andam olhando para o chão e as mulheres são vistas ocasionalmente nas laterais do espaço ou em planos inferiores. Essa hierarquia rígida, imutável, não é obedecida por Beatriz, que se aproxima dos escravos da fazenda – em especial, do jovem Virgilio (Vinicius dos Anjos).

Responsável pelo roteiro ao lado de Beto Amaral, Thomas procura injetar nuances. Destaca Jeremias (Fabricio Bolivera), personagem negro, mas alforriado, que age com violenta autoridade com os outros negros da fazenda. E Antonio, apesar de despontar como uma figura opressora, não se impõe como um vilão tradicional. A abordagem da cineasta causou muita polêmica no Festival de Brasília. O debate sobre o filme na manhã seguinte à exibição foi explosivo. Discordâncias à parte, o resultado artístico é admirável. As decisões de quase não utilizar música, de preservar, ao longo de duas horas, um ritmo contemplativo e de separar sequências através de blackouts soam corajosas. As cenas revelam construções minuciosas. A fotografia em preto e branco de Inti Briones é excelente. E os atores brilham integralmente. Alguns já tinham trabalhado com Thomas, como Sandra Corveloni, em Linha de Passe , assinado em parceria com Walter Salles, e Juliana Carneiro da Cunha, na montagem de Felipe Hirsch para A Morte do Caixeiro Viajante , de Arthur Miller, comprovando aqui a habilidade para atuar praticamente sem o auxílio de texto, como em Lavoura Arcaica , de Luiz Fernando Carvalho. Roberto Audio, como o subserviente Bartholomeu, e Jai Baptista, como a sofrida Feliciana, também merecem elogios em elenco que conta com a presença do artista griot Toumany Kouyate. Mas a grande potência do filme é a interpretação de Adriano Carvalho, magnetizante do início ao fim da projeção.



MÚSICA PARA QUANDO AS LUZES SE APAGAM , de Ismael Caneppele



Primeiro longa-metragem de Ismael Caneppele, Música para quando as Luzes se Apagam conta com imagens imprecisas – decorretes de uma câmera instável, do intencional acabamento de vídeo doméstico –, difíceis de serem retidas. Talvez caiba relacioná-las ao pantanoso terreno da sexualidade realçado no filme por meio de Emelyn Fischer, que se aproxima cada vez mais de uma identidade transexual. No entanto, mesmo com eventuais paralelos, o excesso de intervenções visuais dispersa a abordagem da questão de Emelyn e torna o resultado algo estéril.

Em todo caso, o diretor, que assina o roteiro (inspirado em seu livro) em parceria com Germano de Oliveira, destaca a interferência sobre a própria imagem não apenas através de Emelyn, que planeja se rebatizar de Bernardo, como da escritora interpretada pela atriz Julia Lemmertz, que clareou o cabelo e colocou lentes de contato azuis. Mas são interferências diferentes: enquanto Emelyn busca uma conexão entre corpo e alma, esse descompasso não parece afetar diretamente Julia, apesar de seu engajamento na jornada de transição vivenciada por Emelyn. Os registros de atuação se aproximam, na medida em que transmitem uma impressão de não representação, de presenças desarmadas, ainda que enfrentem circunstâncias também diversas, uma vez que Emelyn está comprometida com o universo descortinado na tela e Julia surge mais protegida pela capa ficcional.



Curtas-metragens:



O PEIXE , de Jonathas de Andrade



Em O Peixe , Jonathas de Andrade apresenta a repetição do mesmo procedimento: pescadores acariciam peixes após fisgá-los. A postura pode ter sentido afetivo, mas na tela bate como sadismo – ainda mais quando a câmera se aproxima e registra os peixes agonizando lentamente. Como realização artística, o filme suscita alguma curiosidade devido à própria estrutura de repetição, à ausência de falas e à valorização dos sons da natureza. Mas é questionável sob o ponto de vista ético.



NADA , de Gabriel Martins



Beatriz (Clara Lima), a protagonista de Nada , filme de Gabriel Martins, resiste diante da obrigação de se enquadrar no sistema. Ao ser questionada, devido à proximidade do Enem, sobre o que pretende fazer, afirma categoricamente: nada. Enfrenta a cobrança da escola e dos próprios pais, que depositam sobre ela o peso de representar a primeira geração da família que conseguiu chegar à faculdade. Mas Beatriz, apesar de sintonizada com o rap, reivindica o direito de não saber qual caminho seguir. No elenco, destaque para Karine Teles, ótima como a coordenadora do colegio que se expressa através de um microfone que produz irritantes interferências sonoras.



PERIPATÉTICO , de Jéssica Queiroz



Jéssica Queiroz aborda as jornadas de três amigos moradores da periferia de São Paulo, violentamente afetadas pelos diversos ataques que paralisaram a cidade em 2006. No roteiro de Ananda Radhika há questões importantes, como a pouca oportunidade de jovens negros no mercado de trabalho. A diretora investe em procedimentos de distanciamento – como o emprego de narração, chegando a incluir um comentário externo sobre um dos personagens (“A vida aqui não respeita o desenvolvimento do personagem”), e a exposição, ao final, de uma cenografia que aproxima o filme da encenação – e investe em sequências de animação que geram interessante dinâmica. O resultado, porém, esbarra em fragilidades no campo da dramaturgia.





FILME DE ABERTURA



NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO!, de Felipe Bragança

É possível perceber em Não Devore meu Coração! algumas características presentes em filmes anteriores de Felipe Bragança, como A Fuga da Mulher Gorila e A Alegria, apesar das diferenças marcantes entre os projetos. Nesse novo trabalho, o diretor, que se inspirou em Curva de Rio Sujo, livro de contos de Joca Reiners Terron, volta a destacar uma juventude destemida, passional, catártica, por meio de dois irmãos, Fernando (Cauã Reymond), que integra uma gangue de motoqueiros, e Joca (Eduardo Macedo), apaixonado pela índia Basano (Adeli Benitez).

Bragança também comprova a escolha de espaços habitualmente considerados como periféricos, ainda que bem diversos dos que mostrou em seus outros filmes. Se uma parte de A Alegria se passava em Queimados, na Baixada Fluminense, a história de Não Devore meu Coração! acontece no Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai. Há uma certa ruína em espaços como as oficinas mecânicas e uma quadra onde poucos dançam sob a luz de neon (expressiva direção de arte de Dina Salem Levy). O cineasta busca a contramão da assepsia.

A região da fronteira serve não só como ambientação. Surge como personagem determinante do filme. Brasil e Paraguai são separados pelas águas do Rio Apa. Lá, corpos vêm sendo encontrados. Brancos e índios, brasileiros e paraguaios, vivem em permanente desacordo, o que não significa que não se misturem. Além da tenacidade de Joca para conquistar Basano, que o repele asperamente, a proximidade se manifesta por meio da revelação da origem do líder dos motoqueiros, Telecatch (Marco Lóris), da presença de uma índia, Lucia (Zahy Guajajara), entre eles e dos eventuais momentos em que os personagens falam a língua do adversário.

Mas os conflitos imperam e não dizem respeito apenas aos dias de hoje. Logo nos letreiros iniciais, Não Devore meu Coração traz à tona uma perspectiva histórica ao evocar a Guerra do Paraguai, na segunda metade do século XIX, e realçar a perpetuação da lógica da exclusão tendo em vista a violenta repressão dos fazendeiros – simbolizados por Cesar (Leopoldo Pacheco), pai de Fernando e Joca – em relação aos guaranis. Paradoxalmente às referências a uma realidade cruel, Bragança investe na fantasia, seja em cenas como a de Joca e Basano no rio em meio aos vagalumes, seja pelas menções aos superheróis, como Bruce Wayne e Clark Kent, ou ao ator Brad Pitt. O diretor chama atenção para o mascaramento de personagens nebulosos como Fernando, às vezes traduzido de forma literal através do capacete da motocicleta. E contrasta o real com o cinema de gênero ao flertar com o romance, a ação e o suspense, mesmo frustrando intencionalmente as expectativas ao deixar pontas soltas pelo meio do caminho. Não há uma preocupação em fechar de maneira evidente todas as situações apresentadas.

Irregular – o plano dos motoqueiros resulta melhor que o da conexão entre Joca e Bosano –, Não Devore meu Coração!, porém, bate na tela como um filme instigante.



O crítico viajou a convite da organização do festival.

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