Que fiz eu para merecer isto? parece ser um filme de transição dentro da chamada primeira fase de Pedro Almodóvar: nem tão atrevido quanto Pepi, Luci Bom y Otras Chicas del Montón , nem tão contundente quanto A Lei do Desejo . No entanto, esta produção de 1984 não resulta indefinida por causa disto. Ao contrário, mais de um Almodóvar bate ponto na tela grande. Longinqüamente, já anuncia a trilha da maturidade que o cineasta tomaria anos mais tarde, a julgar pela redenção da personagem de Carmen Maura com a vocação materna ao final da projeção.
Não é apenas aí que a preocupação com um certo viéis psicológico transparece. “Ela me odeia porque a faço lembrar de meu pai”, diz, numa breve passagem, uma menina a respeito de sua mãe agressiva. O diretor investe numa justaposição de registros, mesclando o sobrenatural (através desta mesma menina), o nonsense e uma discreta documentação da classe-média baixa de Madrid. Em contraste ao realismo da fachada de prédios populosos, o interior de um apartamento compartimentado e tomado por uma decoração kitsch (cores berrantes, estampas exageradas) que aumenta a sensação de claustrofobia.
É dentro dele que transitam algumas das personagens que transbordam excessos. Quase todas portam algum vício. Na família flagrada no filme, a mãe é viciada em calmantes e a avó, em doces; entre os tipos secundários há cleptomaníacos e alcoólatras. Mas o cineasta nem sempre é derramado como faz supor o divertido título melodramático. Aqui e ali, porém, acerta tanto ao não se conter (a divertida seqüência do dentista pedófilo) quanto em passagens mais discretas (as impagáveis distinções errôneas feitas pela avó entre os autores românticos e realistas).
Não há dúvidas de que o cinema de Pedro Almodóvar passou por transições ao longo dos anos. Seus filmes se tornaram mais sóbrios, reflexivos e comercializáveis. Contudo, mesmo em determinadas produções recentes (em especial, Má Educação ), o Almodóvar dos anos 80 se insinua. Talvez hoje ele pudesse se apropriar de uma fala da personagem da escritora suicida de Que fiz eu para merecer isto? : “o tempo é que nunca mudou comigo”.
# QUE FIZ EU PARA MERECER ISTO? (Qué he hecho yo para merecer esto!!)
Espanha, 1984
Direção e Roteiro: PEDRO ALMODÓVAR
Produção: HERVÉ RACHUEL
Trilha Sonora: HANS FRITZ BECKMANN, WIZNER BOHEME, BERNARDO BONEZZI, JUAN MOSTAZO
Fotografia: ÁNGEL LUIZ FERNÁNDEZ
Elenco: CARMEN MAURA, VERÓNICA FORQUÉ, CHUS LAMPREAVE
Duração: 101 minutos