Ao contrário de franquias como “Star Wars”, que sobrevivem com novos filmes moldados calculadamente para satisfazer a legião de fãs de diferentes gerações, “Blade Runner 2049” não faz muitas concessões aos cultuadores do filme de 35 anos atrás. As aparições de Harrison Ford e Sean Young não são mero fetiche nostálgico, mas enriquecem a trama em momentos cruciais. Como se trata de uma continuação ambientada na mesma Los Angeles pós-apocalíptica, só que 30 anos depois (o outro se passava em 2019), o que vemos é um prolongamento de certas questões colocadas pelo primeiro (vale lembrar que o co-roteirista Hampton Fancher é o mesmo do original).
Há referencias explícitas que permitem novas associações: a solidão do mundo contemporâneo suprida pela companhia amorosa de um sistema operacional em “Ela”, de Spike Jonze, é reatualizada com uma substituta à altura da voz de Scarlet Johansson: o sistema operacional Joi, encarnado na forma de holograma pela belíssima e sensual atriz cubana Ana de Armas. Sua relação com o solitário K (vivido por Ryan Gosling com a melancolia habitual) é tão comovente como a retratada no filme de Jonze, com direito até a uma repetição da cena em que a mulher-sistema operacional recorre a um corpo de verdade, emprestado, para fazer sexo com seu “dono” – e a coisa finalmente dá certo.
O personagem de Gosling, batizado como (Joe) K e envolto em um pesadelo kafkiano, é outra alusão clara, dessa vez a Josef K, o protagonista de “O Processo”, de Kafka. O agente K de “Blade Runner 2049”, embora esteja a serviço da lei, também é um prisioneiro num mundo distópico e rigidamente controlado, como antecipou outro cult movie, a obra-prima visionária de George Lucas “THX 1138” (1971). As cenas de interrogatório, em que ele fica repetindo as palavras, lembram muito o que se sucede com Robert Duvall na branquidão asséptica do filme de Lucas.
A melhor coisa é que o filme não faz concessões comerciais para agradar às jovens plateias cada vez mais mal acostumadas pelos blockbuster de filmes de super-heróis, onde o ritmo vertiginoso da ação incessante deixa pouco espaço para pausas e reflexões. “Blade Runner 2049” é um filme sobretudo para adultos, e a direção de Dennis Villeneuve compreende isso. Os diálogos não são redundantes nem explicativos demais (embora o vilão vivido por Jared Leto seja um tanto caricatural) e as cenas de ação quase sempre desembocam na discussão filosófica-existencial que vem desde o primeiro filme. Outro benefício trazido é o de poder adentrar, com a devida calma, esse universo que ganha contornos fascinantes com a fotografia magistral de Roger Deakins, que capta todas as nuances do desenho de produção de Dennis Gassner e da direção de arte de David Doran, Bence Ederlyi e Lydia Fry.
Só ficou mesmo faltando a trilha sonora de Vangelis, um dos motivos para que o “Blade Runner” original tenha sobrevivido tanto tempo no imaginário coletivo. Não que Hans Zimmer e Benjamin Wallfisch tenham feito um mau trabalho, longe disso. Fica claro como eles respeitam e tentam reproduzir a atmosfera do score original, até com uma breve citação perto do fim. Mas a ausência da música de Vangelis é um golpe mortal na memória afetiva de muita gente. Se o produtor Ridley Scott e o diretor Dennis Villeneuve forem espertos, eles lançam uma versão alternativa de "Blade Runner 2049" com a trilha sonora do filme de 1982 substituindo a desse em todas as cenas. Ou então a utilizam no próximo filme, pois já ficou claro que o final em aberto foi para sinalizar que teremos um novo episódio em breve.