Creio que não há pais que não tenham alguma vez desejado, explicitamente ou não, que os amigos dos filhos fossem invisíveis. Na atmosfera de insegurança em que vivemos, é natural o temor de que, por entre amigos encontrados no meio da rua, as crianças acabem levadas para o mau caminho. E os amigos dos filhos, mesmo quando bem escolhidos, podem facilmente atingir muito mais visibilidade do que a desejada. Mas essa é a última razão pela qual as crianças devem assistir ao filme de Maria Letícia, O Amigo Invisível, que acaba de ser lançado. O primeiro e principal motivo é que se trata de um filme altamente inteligente, que coloca o mundo sempre gostado da fantasia (‘o pensamento pode voar’) em nítida contraposição com as duras realidades da existência.
A pequena Tixa, a garotinha que cria um amigo só visível em sua imaginação, tem uma infância completamente privilegiada: o pai é advogado do futuro Presidente Kubitschek, a mãe é doce e arranha seu Chopin ao piano, moram numa bela casa com duas empregadas, motorista, e ainda são generosos bastante para acolher um tio comunista. É através desse tio que a pequena rebelde percebe precocemente que nem tudo é felicidade no mundo e nem mesmo na alta burguesia em que nasceu. É o final da era Vargas e o tio querido é surrado numa manifestação, pela polícia do próprio governo que os comunistas tinham ajudado a eleger. Tixa percebe que ‘gente também morre de fome’, declara-se ostensivamente comunista e, ao mesmo tempo em que cria seu próprio mundo subjetivo com o amigo invisível, toma providências bem realistas, tais como dar suas bonecas para crianças que não têm nenhum brinquedo.
O filme tem uma profunda inserção no tempo político/realista ao mesmo tempo em que legitima o refúgio no imaginário e banha o conflito num clima de poesia. Três temas fundamentais de uma educação realista se dissimulam numa história que é toda finura e delicadeza. A morte é introduzida sucessivamente em âmbito familiar e nacional com a perda do avô e o suicídio de Getúlio. O problema crucial da autoridade e das injustiças é ministrado em doses graciosamente homeopáticas do primeiro ao último fotograma. Pois o pai, democrata comprometido com a eleição de Juscelino, se demonstra bastante tolerância para com o cunhado comunista, com empregadas que choram comoventemente a morte de Getúlio e sobretudo com a própria filhinha rebelde, também não esconde seus preconceitos. Ele diz sobre a esquerdista de sete anos de idade: ‘inteligente como ela só: pena não ser um menino’… Um discreto feminismo então se insinua pois, quando Tixa inventa um garotinho simpaticamente angélico (que topa brincar de tudo, ‘até de boneca’), está substituindo um irmão meio truculento e obviamente favorito do pai. O terceiro tema, a sexualidade, vem completar o quadro com que Maria Letícia introduz o grave através do leve e faz o terra-a-terra alçar vôo. A garotinha privilegiada/comunista não vê problema nenhum em mostrar ‘a diferença’ para o amigo do irmão que não tem irmãzinha e não sabe como é ser uma menina. É repreendida por isso, enquanto o irmão pode fazer essas coisas porque ‘é menino’.
O olhar crítico/benigno de Maria Letícia me faz lembrar a ‘ironia piedosa’ de Anatole France e coloca esse personalíssimo O Amigo Invisível numa posição sui generis pelo bom gosto e pela capacidade de divertir ensinando um pouco de história do Brasil e muito sobre a vida no Brasil. Demonstrando segurança na direção, ela conta com um elenco que vai desde os vários ‘apresentandos’ mais os promissores protagonistas mirins (Fernanda Ghelman e Enzo Ramos) até uma plêiade de nomes ilustres total e eficientemente imbuídos de seus personagens. Temos a complacência de papai e mamãe felizes e de sucesso (Paulo Cesar Grande e Isabela Garcia), o comovente getulismo das empregadas (Neuza Borges e Marcélia Cartaxo, esta última uma hilariante dedo-duro das travessuras de Tixa para a patroa: ‘Dona Noquinha, vem ver uma coisa!’), Ricardo Blat com um instantâneo de Vargas que nos deixa no dilema entre ser contra ou a favor, e Emiliano Queiroz, um avô poético no que diz e no que faz, enquanto Rosamaria Murtinho dá uma aula memorável de céu e inferno. Enrique Diaz está plenamente convincente como o tio subversivo e temos também alguns nomes estelares do cinema brasileiro (tais como Chico Diaz, Zezé Mota, Ida Gomes, Tadeu Melo e Cláudia Mauro) com que Maria Letícia se dá ao luxo de nos brindar em breves aparições.
Para fruir plenamente O Amigo Invisível as crianças devem ser inteligentes (e o são com bem mais freqüência do que nós imaginamos, pois ainda não foram embrutecidas pelo tsunami de futilidade que assola a nossa cultura). Os pais entretanto podem até ser burros e ainda assim sair satisfeitos do cinema. Esses vão pensar que, graças a Deus, levaram os filhos a um filme de crianças sem más companhias. Mas terão, sem saber, feito a eles um favor bem mais abrangente. Para as imaginações em formação, ver O Amigo Invisível é ganhar um presente… que mostra um passado e que voa com o pensamento para múltiplas saídas no futuro.
# O AMIGO INVISÍVEL
Brasil, 2005
Direção, roteiro e produção: MARIA LETÍCIA
Elenco: CHICO DÍAZ, CLÁUDIA MAURO, EMANUELLE MORITZ, FERNANDA GHELMAN, IDA GOMES, ILYA SÃO PAULO, ISABELA GARCIA, MARCELIA CARTAXO
Duração: 74 minutos