A personagem Florence Green, interpretada por Emily Mortimer, está viúva há 16 anos. Jovial e apaixonada por livros, decide abrir uma livraria numa pequena cidadezinha inglesa no final dos anos 1950. Um imóvel fechado há sete anos e que todos chamam de “Old House” é escolhido por Florence. Mesmo depois de ficar entregue às baratas por sete anos só depois dela dar partida aos procedimentos para alugar a “velha casa”, é que uma rica mandachuva local, Violet Gamart (Patricia Clarkson), resolve que seria melhor instalar um “centro de artes” no espaço escolhido pela nova livreira. Por que? Não ficam absolutamente claras as motivações de Violet. Só pra chatear? Vontade de aparecer? Marcar território? Nenhuma dica é ofertada. Assim como não fica tão clara qual seria a “oposição” entre uma livraria e um “centro de artes”...
Instalada a livraria, Florence contrata uma menina em idade escolar como ajudante, mas lá para as tantas a pequena Christine (Honor Kneafsey) é retirada da sala de aula por um homem que se apresenta à professora como inspetor de crianças que também trabalham. O espectador entende que é mais uma sabotagem ao negócio de Florence, estando a maldosa e influente Violet por trás desta ocorrência. Entretanto, para surpresa de Florence e do espectador, surge a informação de que Christine está trabalhando em outra livraria, aberta em outro ponto da cidadezinha. A seletividade de interdição da menina para trabalhar apenas na Old House Bookshop também não é explicada e fica um tanto esquisita. Pois, por mais que Violet seja influente e mesquinha, ela procura agir dentro da lei, mesmo que para isto tenha que influenciar a criação de novas leis no Parlamento londrino onde tem um sobrinho que se coloca a seu serviço. E, retroativamente, o uso da Old House ficará ameaçado por não estar dentro das exigências de uma nova legislação para uso de imóveis antigos.
Antes disto, um personagem bastante antipático, Milos North (James Lance), é visto saindo da casa de Violet com um exemplar de “Lolita”, na época um romance recente de Vladimir Nabokov. Ele sugere que Florence encomende o livro para sua loja ter no estoque. O espectador informado depreende que o fato do romance ter sido escandaloso e proibido em vários países nos anos 1950 vá jogar a população contra Florence por ter à venda um livro “indecente” em sua livraria. Mas o máximo que acontece é um excesso de gente à frente da vitrine que expõe o exemplar, coisa que Violet reclama por atrapalhar a passagem na calçada e na rua (?) e esta jogada não resulta em nada significativo contra Florence...
Em uma de suas “quatro grandes tragédias”, Shakespeare criou um dos mais odiosos vilões da literatura, o “honesto Iago” - que de honesto nada tinha, mas assim parecia aos olhos do crédulo mouro Othello em relação às calúnias que o outro inventava sobre Cássio (que havia sido nomeado pelo mouro para um cargo que Iago almejava) envolvendo a inocente mulher de Othello como adúltera. Além do ressentimento de ter sido preterido para "um empreguinho público” (como ironizava Bárbara Heliodora), a destrutividade de Iago nunca é claramente explicada no texto de Shakespeare, dando margem a interpretações mais ou menos convincentes e que podem chegar a sugerir uma mágoa ligada à rejeição por parte de Othello - só que bem mais por uma atração homossexual não explicitada do que por qualquer outra motivação oculta ou evidente, tal como o cargo de alferes que foi entregue a outra pessoa. Mas o enredo de A Livraria não tem nada da densidade shakespereana, parecendo bem mais que apenas precisou-se de um conflito visando criar a ação da história através de vilões maus, muito maus e mesquinhos, para perturbar as melhores intenções – acima de tudo ligadas à cultura literária - de uma personagem central simpática e sofredora. Para tal, independente de seu talento, Emily Mortimer já tem aquele rostinho que pode dar a impressão de que vai chorar a qualquer momento, ainda que a personalidade de Florence seja destemida e corajosa - o que é repetido algumas vezes em falas de outros personagens.
Chega a ser chocante a carreira de prêmios dados ao filme e a este roteiro tão indigente, dirigido com artesanato rotineiro e sem brilho por Isabel Coixet. Em alguns de seus filmes anteriores ela parece interessada em louvar personagens femininas também destemidas, corajosas e fora dos hábitos de seus ambientes e épocas. Foi assim no seu longa anterior, Ninguém deseja a noite, que teve ótima colaboração no elenco de Juliette Binoche e da atriz japonesa Rinko Kikuchi. O filme não teve a mesma repercussão deste The Bookshop (título original), mas era tão melhor que, em comparação, chega a parecer uma obra-prima perto da indigência geral do novo filme de Coixet. As atrizes Emily Mortimer e Patricia Clarkson repetem o que se espera delas com a competência de hábito, sem, entretanto, conseguir dimensionar personagens absurdamente unidimensionais. James Lance cria apenas um estereótipo mal-resolvido de um personagem que deveria ser ambíguo. Talvez apenas o veterano Bill Nighy consiga alguma humanidade mais verossímil para outro personagem - ainda que também tenha sido desenhado como outro estereótipo: o idoso recluso que ama ler (com algumas idiossincrasias bizarras) e que irá se apaixonar pelo primeiro livro que Florence lhe vende. Como não poderia deixar de ser, o livro-símbolo do amor pela leitura é "Farenheit 451", de Ray Bradbury, que é mesmo uma declaração de amor à literatura, mas que surge apenas como outro clichê repetido demais.
O pior desse tipo de filme é jogar com a ideia de que defende “cultura”, leitura, literatura, quando não passa de um amontoado de clichês mal alinhavados - como raras vezes se vê numa produção pretensiosa, sendo péssima a criação do enredo (retirado de um livro que o filme dá vontade de evitar), assim como a elaboração do roteiro e a realização cinematográfica de feitio comercial sem nenhuma originalidade na repetição exaustiva de diálogos em plano-e-contraplano, para ficar num exemplo bem raso. A premiação só depõe contra o “Oscar espanhol” que é o prêmio batizado de “Goya”. O grande pintor deve se remexer na tumba por ver seu nome associado a tamanha indigência. Aliás, em termos de imagens, o fotógrafo Jean-Claude Larrieu também não reedita os resultados de outros trabalhos seus (“Julieta”, de Almodóvar ou o já citado “Ninguém quer a noite”), havendo um plano constrangedor de Emily Mortimer e Bill Nighy conversando numa praia com um oceano digital absolutamente plácido e que mais parece saído de antigas luminárias de quartos infantis. No mais, é aquela fotografia de cores e roupas dos anos 50, nada além de bonitinhas - assim como a melosa música dos créditos finais e de outros momentos que nem muito piegas conseguem ser.