Críticas


AS BOAS MANEIRAS

De: MARCO DUTRA e JULIANA ROJAS
Com: MARJORIE ESTIANO, ISABEL ZUAÁ
07.06.2018
Por Hamilton Rosa Jr.
Um documento preciso dos bizarros contrassensos que comandam o Brasil do presente.

O que devemos fazer - ou deixar de fazer - para nos enquadrarmos no Brasil de hoje? As Boas Maneiras não aborda tal questão diretamente, pois os cineastas, em vez disto, cultivam o tom despreocupado e sonhador de uma fábula, mas a questão sustenta as decisões de seus personagens de maneira muito séria. Conformar-se aos costumes sociais não é uma opção fácil para as duas protagonistas, e assim elas se encontram à deriva no deserto urbano de São Paulo. A questão da etiqueta surge uma vez numa breve cena: uma delas demonstra o exercício de postura de colocar um livro no topo da cabeça e andar equilibrando-se delicadamente. Ela rapidamente falha, ri, o tema é abandonado, mas a ausência de suporte persegue o filme como uma maldição. Esta ausência, aliás, cobre um amplo leque de significados.

Grávida e afastada de sua família rica, Ana (Marjorie Estiano) busca uma babá confiável e discreta. E a enfermeira Clara (Isabél Zuaa) acaba entrando em cena por acaso. Clara é a moça da periferia, negra, batalhadora, e a última coisa que deseja é ter que tolerar uma patroa branca, mimada e fora da realidade. Acontece que ela não vive num mundo repleto de escolhas e possibilidades, e, como precisa de dinheiro, concorda em trabalhar para a dondoca até a criança nascer. O contraste socioeconômico entre as duas mulheres torna o diálogo cada vez mais cifrado, mas há algo por trás da impertinência e petulância de Ana que Clara não consegue nomear, e que acaba ganhando contornos cada vez mais sedutores.

A primeira metade do filme explora este jogo de atração e repulsa. Então, Ana dá à luz - e ocorre um ruptura. Uma mudança de tom que se cristaliza como um convite, muito bem-vindo, a uma nova percepção de mundo. Na verdade, a maioria das decisões que os diretores Marco Dutra e Juliana Rojas tomam como cineastas são experimentais. Desde a interação de personagens sutis que vão surgindo no caminho até a estrutura do filme, os diretores subvertem e vão reajustando as expectativas. A dupla de atrizes é excepcional: Estiano está bem longe do que conhecemos nas novelas; sua personagem consegue, ao mesmo tempo, ser uma beldade caipira, mimada e teimosa, e ainda misteriosa, sedutora e ameaçadora. Já Zuaa transmite incertezas, vulnerabilidade e uma humanidade comovedoras.

Quem espera um filme de tensão ou mistério propulsor pode se decepcionar. Em vez disto, o que atrai em As Boas Maneiras é um sinuoso mergulho num mundo íntimo e fronteiriço onde tanto a realidade como a fantasia são complexas e fecundas. Os cineastas criaram uma bela e assombrosa versão de São Paulo, povoada de personalidades vívidas, estranhas, divertidas, e quando não, inesperadas. Um exemplo: a forma como os cineastas inserem canções na trama. Em princípio, parece uma decisão contraditória e questionável a canção de ninar entoada durante o filme, mas conforme a canção se repete, a invocação da fantasia musical proporciona uma justaposição fascinante.

As discrepâncias entre os mundos de Ana e Clara, em seu absurdo, invoca inúmeros contos dos irmãos Grimm. Ana mora em uma casa de bonecas pastel num condomínio com vista para uma paisagem urbana irreal. Ela tem uma lareira digital e uma geladeira cheia de sacos de carne. Tudo isso parece estranho, mas nunca forçado ou artificial. Claro, quem está acostumado com as formulações codificadas do cinema tradicional vai se indignar com os flertes estridentes dos cineastas. As Boas Maneiras caminha contra o evidente: quando você espera o susto, vem uma gag; quando imagina o drama, entra um número musical. Mais curioso é como em suas rupturas patéticas, o filme se revela um documento preciso dos bizarros contrassensos que comandam o Brasil do presente.

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