O engajamento politico atravessa a história do Festival de Brasília, que chegou a ser interrompido durante a ditadura militar. Há poucos anos, porém, essa característica ficou especialmente realçada não só na seleção dos filmes (curadoria de Eduardo Valente) como, em especial, nos acalorados debates sobre eles. Essa quinquagésima primeira edição não foi marcada pelos embates passionais do ano passado, mas os espectadores presentes ao Cine Brasília se manifestaram todas as noites em relação à prisão de Luiz Inácio Lula da Silva e à candidatura de Jair Bolsonaro.
Alguns filmes trouxeram o contexto político à tona por meio de abordagens do presente ou do passado recente. Bloqueio , de Quentin Delaroche e Victória Álvares, é um registro realizado no calor da hora, em clima de urgência, sobre a recente greve dos caminhoneiros. O documentário é composto por flagrantes de conversas entre os caminhoneiros, entre eles e a equipe de filmagem e outras pessoas presentes à paralisação. Gritos de “Fora Temer” e opiniões favoráveis à intervenção militar ecoam constantemente. Há quem ignore o contexto da ditadura militar afirmando que naquele período “homem de bem não sofria; só vagabundo”; e quem afirme que não quer a ditadura de volta, mas que os militares precisam subir ao poder para botar ordem na situação atual.
América Armada , filme de encerramento do festival, entrelaça as lutas de três militantes no Brasil – Raull Santiago, ativista, que denuncia a violência policial no Complexo da Maré, marcadamente contra jovens negros –, na Colômbia – Teresita Gavíria, à frente da ONG Madres de Candelária, formada por mães que, como a própria Gavíria, tiveram filhos assassinados ou desaparecidos – e no México – Heriberto Paredes, jornalista dedicado à divulgação de grupos de agricultores unidos na autodefesa, muitas vezes liderados por mulheres, num pais tomado pela conivência do Estado com o narcotráfico. “O grande negócio na América Latina é a reprodução da violência”, afirma Heriberto, sintetizando a temática desse contundente documentário.
Domingo , filme exibido na abertura, dirigido por Clara Linhart e Fellipe Barbosa, coloca o público diante de uma família que se reúne numa casa de campo, no interior do Rio Grande do Sul, em 2003. Eles estão isolados, mas a realidade externa irrompe por meio do instante de eleição, marcadamente pela imagem de Luiz Inácio Lula da Silva. Os integrantes da família representam uma aristocracia decadente e as relações estabelecidas entre eles têm sinais evidentes de ruína, impressão, aliás, evidenciada nos ambientes da casa. Domingo remete bastante a filmes como Loucuras de uma Primavera (1990), de Louis Malle, pela articulação entre o ambiente bucólico e o panorama político, e O Pântano (2001), de Lucrecia Martel, pela promiscuidade do vínculo entre os personagens, além de à dramaturgia de Anton Tchekhov. No elenco sobressai Camila Morgado.
O retrato de uma aristocracia fechada em seus próprios interesses também aparece em New Life S.A. , filme de André Carvalheira dividido em diferentes planos: a jornada de um arquiteto oprimido pelo sogro inescrupuloso, que não hesita em baratear a construção de um prédio independentemente do risco; a exploração dos operários e a relação com os moradores da favela vizinha; o jogo de interpretação estabelecido por atores que formam uma imagem tradicional e ultrapassada de família perfeita numa espécie de instalação concebida para ajudar na venda dos imóveis; e a gravação do discurso nada sincero de um político com o intuito de angariar votos. O diretor valoriza a representação – seja por meio dos atores, do político ou de personagens que desempenham papéis sociais – enquanto mentira, fingimento. Por outro lado, representar com verdade, vestir o personagem, não desponta como solução adequada, a julgar pelo ator da estereotipada família-padrão que toma como verdade a situação que encena, rompendo com a distância entre realidade e ficção.
Em Los Silencios , Beatriz Segnier borra as fronteiras entre realidade e imaginação por meio de uma família de refugiados na Ilha da Fantasia, localizada na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Ernesto (Enrique Diaz) e Núria (María Paula Tabarez Peña), marido e filha de Amparo (Marleyda Soto, excelente), desapareceram depois que ele fez denúncia em defesa de cooperativa agrícola. Acompanhada do filho, o pequeno e rebelde Fábio (Adolfo Savinvino), Amparo procura receber uma indenização e descobrir a verdade sobre o destino de Ernesto e Núria. A diretora traz à tona violentos conflitos armados na Colômbia num filme contemplativo, intimista, destituído de sobressaltos, que se revela aos poucos para o espectador, na medida em que náo há clara distinção entre o que de fato acontece e o que se passa na cabeça dos personagens. Em destaque, a impactante fotografia de Sofia Oggioni.
A suspensão da realidade atravessa A Sombra do Pai , de Gabriela Amaral Almeida, através da história de uma menina, Dalva (Nina Medeiros), que vive com o pai, Jorge (Julio Machado), mergulhado em luto severo pela morte da esposa. Dalva sonha com a mãe, enquanto se depara com uma realidade cada vez mais árida ao lado do pai, situação suavizada, mas apenas em certa medida, pela tia, Cristina (Luciana Paes). A diretora faz discretas menções ao contexto sócio-econômico, seja por meio do bairro de periferia onde os personagens vivem, seja através do trabalho de Jorge como pedreiro. O filme oscila entre a concretude do real e o afastamento desse registro, simbolizado pelas crescentes alucinações de Jorge e pela adesão de Dalva ao cinema de terror. Assim como sua protagonista, Gabriela Amaral Almeida reforça sua filiação ao terror, ainda que de forma menos explícita que no recente O Animal Cordial (2017). De qualquer modo, o sangue permanece como elemento importante – entre outros fatores, como evidenciador do estabelecimento de vínculos íntimos entre os personagens. A imagem da ferida de Jorge que nunca cicatriza remete longinquamente ao curta-metragem Um Ramo (2007), de Juliana Rojas e Marco Dutra. A Sombra do Pai resulta ainda de uma conexão habilidosa entre o drama psicológico e o melodrama familiar.
A distância em relação ao centro ou a áreas economicamente valorizadas da cidade desponta em Temporada , de André Novais Oliveira, que, como de hábito, ambienta sua história na em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, e reúne no elenco os próprios familiares – a mãe, Maria José Novais Oliveira, recentemente falecida, o pai, Norberto Oliveira, e o irmão, Renato Novais. É para lá que se muda Juliana (Grace Passô), que passa a trabalhar no combate à dengue. Enquanto espera pela chegada do marido, ela estabelece novas – e amistosas – relações. André Novais compara passado e presente, mas a sua avaliação não necessariamente valoriza o primeiro em detrimento do segundo. Em determinado instante, um personagem lembra que já pescou numa lagoa agora reduzida a esgoto a céu aberto, mas, por outro lado, o crescimento do bairro trouxe vantagens – antes era necessário andar muito para comprar pão. E na esfera pessoal coisas boas acontecem, a julgar pela jornada de Juliana, que atravessa período de desestabilização, mas encontra amparo e constrói, aos poucos, uma nova rede de afetos. O diretor conjuga panorama social com história pessoal, planos abertos e fechados, num filme que evolui em velocidade própria, tranquila, valorizado pelo registro espontâneo das atuações – em especial, de Passô e Russo APR.
O retrato sócio-econômico surge estampado em Luna , de Cris Azzi, que aborda o elo entre Luana (Eduarda Fernandes), que adota o codinome Luna nas redes sociais, e Emilia (Ana Clara Ligeiro). Ambas se conhecem na escola e estabelecem proximidade crescente. Luana é pobre e tem uma mãe atenciosa. Emilia é rica e tem um pai leviano. As duas parecem morar em territórios suspensos, em casas localizadas em regiões elevadas da cidade. O real impera, em especial no dramático desdobramento da relação entre Luana e Emilia a partir do instante em que um vídeo íntimo da primeira destinado à segunda vaza na rede, temática abordada em outra produção recente, Ferrugem (2018), de Aly Muritiba, vencedora da última edição do Festival de Gramado. Mas parece haver certo contraste entre o real e a ambientação da casa de Luana, que conta com uma floresta atrás do quintal.
Se o corpo desponta como um elemento de destaque em Luna , ele impera em Bixa Travesty , documentário de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, que, por meio da artista Linn da Quebrada, realça uma questão bastante contemporânea: a sexualidade destituída de rótulos, de padrões pré-definidos, recusa à classificação que transparece em corpos distantes da norma. Se num determinado instante há uma referência ao corpo como casca, como imagem que talvez não revele a interioridade do indivíduo e, nesse sentido, não favoreça ao estabelecimento de relacionamentos afetivos mais sólidos, na maior parte das vezes o corpo desponta como imagem poderosa, que sinaliza o desejo de investigação daqueles que o portam, mesmo nas fases mais dramáticas, como aquela em que Linn enfrentou um câncer. Tanto nos shows quanto nos espaços domésticos, o corpo surge como território aberto à exploração. “Eu acho que sempre fui muito apaixonada pelo meu corpo”, sintetiza Linn. Artista da periferia que se tornou centro das atenções, Linn da Quebrada também teve influência decisiva na missão de jogar luz sobre corpos reprimidos, relegados à clandestinidade, até pouco tempo atrás.
O corpo também norteou Susanna Lira em Torre das Donzelas , documentário que reúne mulheres torturadas durante a ditadura militar – entre elas, Dilma Rousseff. A diretora registra as mulheres em closes do rosto e de outros fragmentos do corpo, distanciando-se um pouco nas passagens em que recorre a encenações inseridas para evocar as personagens durante o período da juventude em que passaram na prisão. A maior parte das mulheres foi convidada a entrar numa instalação concebida por Glauce Queiroz para reproduzir o ambiente do Presídio Tiradentes, em São Paulo. Além de revelarem todo o sofrimento – físico e psicológico – que vivenciaram na prisão, elas trazem à tona a resistência pela alegria, pela determinação em permanecerem vivas, materializada na integração afetiva e no exercício de atividades diversas dentro das celas. Pela proximidade temática e pela conjugação entre depoimentos e encenações, Torre das Donzelas remete ao contundente Que Bom te ver Viva (1989), de Lucia Murat, ainda que o tom dos dois documentários seja diferente.
O atravessamento pessoal é a espinha dorsal de Ilha , filme em que Ary Rosa e Glenda Nicácio defendem, de forma explícita, a realização de um cinema autoral, de resistência, não oprimido pelas leis de mercado, como o que fazem no Recôncavo da Bahia. Essa defesa se dá por meio do vínculo passional entre Emerson (Renan Motta), um jovem da periferia (como Rosa e Nicácio, que não se curvam ao eixo Rio-São Paulo), e Henrique (Aldri Anunciação), um cineasta prestigiado, a partir do momento em que o primeiro sequestra o segundo. Emerson quer que Henrique faça um filme sobre a sua vida e, ao mesmo tempo, deseja reconectá-lo com um cinema mais visceral, inquieto, distante da acomodação que teria afetado seu trabalho. Há um jogo de espelhamento entre Rosa/Nicácio e os personagens. Os diretores insinuam que o reconhecimento do artista pode torná-lo burocrático, mas eles vêm sendo elogiados, pelo menos no circuito de festivais, desde o ano passado, quando apresentaram o espirituoso Café com Canela (2017). Como no filme anterior, seguem apostando em instigantes experimentações com a câmera – dessa vez, ao posicioná-la, nos primeiros minutos, no lugar de Emerson, aquele que não mede esforços para reconciliar Henrique com um cinema verdadeiro, autêntico, localizado por Rosa e Nicácio na visceralidade do Cinema Novo ou na informalidade da Boca do Lixo. Seja através de um personagem como Emerson, que externa necessidade de resolver a própria história por meio do cinema, seja através da afirmação da ideologia que os norteia, Rosa e Nicácio propõem uma simbiose entre arte e vida.
Resultado:
Longa-metragem
Filme: Temporada
Direção: Beatriz Seigner ( Los Silencios )
Ator: Aldri Anunciação ( Ilha )
Atriz: Grace Passô ( Temporada )
Ator coadjuvante: Russão ( Temporada )
Atriz coadjuvante: Luciana Paes ( A Sombra do Pai )
Roteiro: Ilha , Ary Rosa e Glenda Nicácio
Fotografia: Temporada , Wilsa Esser
Direção de Arte: Temporada , Diogo Hayashi
Trilha Sonora: Bixa Travesty
Som: A Sombra do Pai , Gabriela Cunha
Montagem: A Sombra do Pai , Karen Akerman
Júri Popular: Bixa Travesty
Prêmio Especial do Júri: Torre das Donzelas
Menção honrosa do Júri: Bixa Travesty , pelo posicionamento e impactante apresentação da dupla Linn da Quebrada e Jup do Bairro
Prêmio Abraccine: Los Silencios
Prêmio Zozimo Bulbul: Ilha
Prêmio Técnico DOT Cine: Temporada
Prêmio Saruê: Linn da Quebrada e Jup do Bairro, por Bixa Travesty
Prêmio Técnico Canal Curta: Bixa Travesty
Filme Mostra Brasília: New Life S.A.
Ator Mostra Brasília: Murilo Grossi ( New Life S.A. )