Especiais


FESTIVAL DO RIO 2018 – RESENHAS

09.11.2018
Por Críticos.com.br
Resenhas de filmes que estão no Festival 2018

VIDAS DUPLAS, de Olivier Assayas

por Marcia Vittari

O diretor francês Olivier Assayas participou de encontro no RioMarket do Festival do Rio junto com o produtor brasileiro Rodrigo Teixeira (de Me Chame pelo seu Nome). Solícito, respondeu perguntas e levantou questões. Apresentou seu filme no Cinema Odeon esbanjando jovialidade e desapego pelas barreiras nacionais começando sua fala em inglês, já que tem consciência de que a língua francesa tem menos repercussão global. Ou seja, um homem antenado com o seu tempo. Este desapego se reflete em sua nova obra Vidas Duplas, onde vemos um editor se questionar sobre a manutenção do impresso num mundo cada vez mais digital.

Como fio condutor temos um escritor que usa sua subjetividade como elemento narrativo e, por conta disso, incomoda muita gente por ser demasiado humano com suas falhas e constante demanda. Seu romance se intitula “Ponto Final”, uma provocação inserida no título de forma astuta, já que ele não pretende parar suas narrativas indiscretas com esta obra, e uma brincadeira com o mundo digital que aboliu o ponto final das sentenças, haja visto ser interpretado como um sinal de interrupção no diálogo por parte de quem o usa.

A linguagem, que no seu uso social está sempre adquirindo novas formas de se fazer reinventar, assim como o filme, apresenta a necessidade de estarmos o tempo todo nos reciclando para não sermos superados pela inércia.

E neste diálogo, o editor parisiense de sucesso, para continuar na crista se acopla a uma jovem editora que lhe dá consultoria de como se adaptar a estas novas ferramentas. E daí em diante, o filme apresenta um enredo de gato e rato onde cada um é o caçador e é caçado. Num embate inteligente que ratifica sua habilidade como roteirista – onde iniciou carreira antes de se tornar diretor -, apresenta seu filme como essencialmente francês: “uma obra sustentada numa autêntica bavarde”, segundo suas próprias palavras na noite de estreia.

Em seu filme anterior, Personal Shopper (2016), o cineasta encarna esta nova modalidade profissional através da atriz Kristen Stewart e se aproxima da atualidade questionando a sociedade de consumo e o culto à aparência: onde ter é mais importante que ser e a ganância tributada ao fazer tudo por dinheiro; a falta de escrúpulos. Seus temas são recorrentes: reflexões entorno do que seja a produção artística, o mundo do trabalho, noções de cumplicidade e fidelidade ao outro, assim como o respeito pela privacidade de cada um. Em Horas de Verão (2008), Juliette Binoche é a filha distante da mãe que mora em Nova York e, como designer, questiona o quanto os objetos estão ou não imbuídos de seu valor afetivo na medida que se afastam de seu dono original. Em Acima das Nuvens (2014), vemos estas suas duas atrizes coringas, que se revezam nos últimos anos, interagindo e trocando de papéis numa relação quase simbiótica. Um jogo no qual o espectador é instigado a perceber o tempo todo onde está o personagem e seu duplo.

Em Vidas Duplas (2018), indicado ao Leão de Ouro no Festival de Veneza e ao People’s Choice Award, no Festival de Toronto, voltamos à atriz Juliette Binoche interpretando o papel da personagem Selena, uma famosa atriz de teatro e esposa de Alain (o editor), invocando a si mesma como indivíduo que necessita preservar seu espaço privado. O faz enquanto atriz na vida real e na ficção. Ilusão e realidade se fundindo. Cultura e instinto interagindo no jogo de esgrima onde todos querem tocar sem serem atingidos, merecendo cada um, a seu modo, o direito de dizer: touché!

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O MAU EXEMPLO DE CAMERON POST, de Desiree Akhavan

por Maria Caú

Desiree Akhavan fez sua estreia como diretora de longas-metragens com Appropriate Behavior, excelente dramédia exibida no Festival do Rio de 2014, que surpreendeu então por sua capacidade de falar sobre bissexualidade de uma maneira honesta e livre de tabus ou fetiches. Em O mau exemplo de Cameron Post, ela adapta o romance homônimo para jovens adultos, narrando a jornada emocional de uma adolescente lésbica que é enviada pelos tutores a um acampamento cristão de conversão sexual. Akhavan levou muitos anos para conseguir realizar o projeto, anos durante os quais esse doloroso tema se tornou ainda mais relevante, dados os retrocessos do governo Trump em relação à comunidade LGBT (e como não pensar também no Brasil de hoje?). Por esse exato motivo, o filme, que se passa em 1993, parece falar da atualidade, em que as figuras bizarras dos fanáticos religiosos da “terapia de reorientação sexual” têm retornado de seus esconderijos.

O bem construído roteiro evita mostrar a protagonista, interpretada por Chloë Grace Moretz, sob as lentes do heroísmo, escolhendo retratar com realismo sua confusão diante da contínua doutrinação desse ambiente fechado e preconceituoso. Afinal, como um jovem pode não se deixar alquebrar quando bombardeado por adultos que tentam inoculá-lo com o veneno do ódio a si mesmo? Essa é uma das perguntas a que o filme tenta responder, e o faz abordando com delicadeza o poder da construção de uma comunidade em torno de uma vivência e um objetivo comuns, além da importância dos pequenos e grandes atos cotidianos de não conformismo. Nesse sentido, o título provisório e estranhamente ambíguo em português não dá conta do que o original propõe, abordar a deseducação da protagonista.

Os personagens coadjuvantes são bem delineados, com seus diferentes contextos pregressos servindo para lançar luz às diversas formas através das quais a intolerância se coloca como força desagregadora no seio familiar. Os dirigentes do acampamento são apresentados de forma minimamente tridimensional, que não os pinta apenas como monstros, em especial o por vezes frágil Reverendo Rick (John Gallagher Jr.), ele mesmo um “ex-gay”.

Outra boa decisão é não ceder aos clichês do gênero e tentar ancorar a transformação de Cameron em um interesse amoroso, ou sucumbir a soluções inteiramente redentoras poucos compatíveis com a realidade concreta de uma pessoa LGBT rejeitada pelo seu círculo mais íntimo. Para além desses caminhos, a trajetória da adolescente é agridoce, plena de incertezas e avanços/retrocessos. E é essa liberdade amarga e esperançosa que a observamos conquistar.

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Os OLHOS DE ORSON WELLES, de Mark Cousins

por Luiz Fernando Gallego

O documentarista e pesquisador de cinema Mark Cousins enfoca vários aspectos significativos da obra (e da vida) de Orson Welles a partir de desenhos - muitos até então inéditos - do multitalentoso homenageado, um dos maiores nomes do cinema em todos os tempos. Com tal ênfase em mais essa faceta artística de Orson, ele nos faz inserir seu nome ao lado de outros grandes cineastas com especial talento para desenho: Kurosawa, Eisenstein, Fellini, por exemplo. Mas o caminho escolhido por Cousins não é limitado por essa escolha: mais do que um mero pretexto, o que o filme promove no espectador é uma visão do pensamento em imagens de Welles, relacionando os esboços e rabiscos (de diversas fases de sua vida) com sua trajetória no teatro, no cinema e até mesmo no rádio. É como se, em algumas passagens, passássemos também a ver através dos olhos de Orson Welles

Narrado pelo próprio documentarista (também cinegrafista deste filme) em forma de uma longa carta dirigida a Orson, o que bate na tela e o que ouvimos chega a ser profundamente emocionante, sem se prender a uma visão hagiográfica: alguns dos capítulos do filme são intitulados de “cavaleiro”, “peão”, “bobo da corte”, mas também de “rei”, referindo-se à atitude majestática do grande (e enorme) diretor.

Não se trata apenas de um dos melhores documentários já feitos sobre cinema ou cineastas, trata-se de um filme que em si mesmo foi excepcionalmente concebido e belamente realizado. Não hesitaria em dizer que merece, de fato e de direito, o rótulo de obra-prima do cinema, fazendo jus ao personagem que estuda.

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O QUEBRA-CABEÇA, de Marc Turtletaub

por Maria Caú

A atriz escocesa Kelly MacDonald, cuja carreira cinematográfica teve início no brilhante queridinho cult Transpotting, poucas vezes teve papéis de grande destaque no cinema, à exceção do seu excelente trabalho de voz na animação da Disney Valente. Em O quebra-cabeça, ela finalmente encontra na protagonista, Agnes, uma plataforma para exibir suas amplas qualidades dramáticas, e o filme se apoia em sua ótima atuação, que dá à trama bastante simples e talvez pouco ancorada no realismo a que se pretende um senso de densidade capaz de despertar afetos.

O filme narra a vida de uma dona de casa que, a partir de um presente de aniversário, percebe seu talento incomum para montar quebra-cabeças, o que a leva numa jornada de auto-descobrimento que a conecta ao milionário solitário Robert (Irrfan Khané). O roteiro é baseado no filme argentino Rompecabezas, de Natalia Smirnoff, e talvez por isso alguns elementos pareçam um pouco estrangeiros, como o catolicismo arraigado de Agnes e sua recusa em utilizar a tecnologia. Em realidade, a sensação é a de que Agnes é muito mais velha do que os seus 40 e poucos anos e que vive muito mais isolada do que faria sentido para alguém que está a apenas uma pequena viagem de trem de Nova York. No entanto, o talento de MacDonald faz com que esqueçamos essas inconsistências e embarquemos na trajetória de Agnes, com destaque para as muitas sequências de montagem de quebra-cabeças, filmadas com delicadeza ímpar, com esses objetos surgindo como indícios alegóricos da retomada por parte de Agnes das rédeas da própria vida.

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O ANJO, de Luis Ortega

por Maria Caú

O anjo é a cinebiografia da breve e intensa carreira criminal de Carlos Eduardo Robledo Puch, um dos assassinos mais famosos na história da Argentina, que com apenas 20 anos foi preso por ter cometido dez assassinatos, além de uma série enorme de roubos e outros delitos. Ao tentar construir a figura do charmoso psicopata, o filme apela para infindáveis e repetitivos planos que ressaltam a beleza clássica do protagonista, Lorenzo Ferro, com seus cabelos loiros em perfeitos caracóis e boca vermelha, ao mesmo tempo em que não se preocupa em minimamente justificar o arco dramático do personagem. Além disso, a trama acaba caindo numa armadilha da qual ela mesmo assume tentar desviar: a motivação de Carlos para os crimes parece tão obscura e impulsiva, e o homoerotismo da sua relação com o parceiro Ramón (Chico Darín) tão mal trabalhado, que a impressão é que a narrativa une as duas pontas, tomando a sexualidade do personagem central (se seria ele gay ou bissexual não se explica) como um dos fatores que o levaram ao crime, o que é uma inferência bastante leviana.

A despeito de sequências divertidas, do bom uso da trilha musical e de um trabalho de figurinos interessante, a narrativa episódica não mantém a mínima coesão, o que cansa progressivamente o espectador. O arco dramático de Carlos e suas escolhas e decisões parecem disparatados e o público se afasta mais e mais do protagonista à medida que a narração em primeira pessoa que abre o filme e tem (essa sim) seu charme não é mais trazida à tona como recurso de identificação – o que possivelmente cairia muito bem nesse contexto.

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LA QUIETUD, de Palo Trapero

por Luiz Fernando Gallego

Em La Quietud, Pablo Trapero narra uma história em que procura mesclar traços deixados pelos desmandos ocorridos durante a ditadura argentina com suas repercussões até o presente. Para isto, como fez em “O Clã”, foca numa família: desta vez, em vez de ser um grupo que se mantém na criminalidade com métodos semelhantes ao que se fazia durante os horrores ditatoriais, as pessoas se comportam quase como sendo uma das famílias disfuncionais das peças do brasileiro Nelson Rodrigues. O resultado soa mal resolvido, apesar da câmera elegante e dos virtuosísticos planos-sequência de tirar o fôlego - como numa cena passada em uma capela: dentro, fora, mudando o foco de um personagem para outro e para outro, no que deve ter sido uma complexa dança de marcações entre os diversos atores e a câmera durante a filmagem.

A mistura insatisfatória fica por conta de um enredo melodramático, quase que de novela latino-americana, apresentado em uma encenação que parece querer evitar o tom novelesco ao tentar um certo distanciamento do próprio melodrama - que invariavelmente se desenvolve através dos comportamentos ambíguos, especialmente das personagens femininas.

A mãe, vivida com menor pudor novelesco pela veterana atriz Graciela Borges, adora uma filha (interpretada por Bérénice Bejo) e menospreza a outra (Martina Gusmán, mulher do diretor, quase sempre escalada em seus filmes). Esta, ‘Mia’ adora o pai, em relação ao qual a irmã ‘Eugene’ é um tanto indiferente. Embora Eugene more em Paris, quando reencontra a irmã, logo na segunda cena do filme, recorda arroubos sexuais do tempo de adolescente e retomam práticas masturbatórias. E a coisa não fica por aí.

Não há interação satisfatória do tema “político”, mais ligado à geração dos pais, com as condutas um tanto promíscuas das filhas. Assim como não funciona bem o uso de certas canções na trilha musical, o que parece ter sido uma tentativa de aludir ao melodrama, mas, ao mesmo tempo, inserir um certo grau de distanciamento, o que resulta em interferências melódicas mais bizarras do que funcionais.

Desde Nascido e Criado (2006), Trapero não lançava um projeto tão frustrado, especialmente se comparado aos subsequentes e sempre interessantes Leonera (2008), Abutres (2010), Elefante Branco (2012) e O Clã (2015).

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BELMONTE , de Federico Veiroj

Por Daniel Schenker

Federico Veiroj aborda um personagem em fase de desestabilização: o pintor Javier Belmonte (Gonzalo Delgado), que sofre diante do reduzido contato com a filha, Celeste (Olivia Molinaro Eijo), após a separação da esposa, Jeanne (Jeannette Sauksteliskis), com quem mantém vínculo amigável. Pouco paciente para a interação social, Belmonte se mostra constantemente irritadiço em seu trânsito por ambientes eruditos (museus, concertos). Celeste, por sua vez, revela insegurança em relação à gravidez da mãe.

Ao longo da projeção, Veiroj salpica elementos interessantes: Belmonte observando determinadas pessoas em espaços públicos, o questionamento de Celeste a respeito do pai normalmente pintar homens nus, a sensação que ele externa de estar sendo visto através das próprias obras. São provocações que permanecem intencionalmente no ar, indefinição, porém, que pode gerar certa frustração na plateia – não por esses dados ficarem em aberto, e sim por não fornecerem mais material para o espectador interpretar. A trilha sonora é inserida de modo a promover algum efeito de estranhamento.

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INFILTRADO NA KLAN, de Spike Lee

por Maria Caú

O diretor Spike Lee resgata a história impressionante de Ron Stallworth, o detetive negro que, com a ajuda de um colega, conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan nos anos 1970 e desmantelar alguns dos planos da organização. O filme é uma pérola narrativa, cuja linguagem em alguns pontos chega a lembrar os melhores momentos de Tarantino (um dos desafetos de Lee), relevando uma direção segura e fluida, e um uso muito empolgante das canções e da cultura pops. Os planos inclinados e alguns movimentos pouco usuais refletem a desestabilização constante provocada pelo conflito entre os diferentes universos pelos quais a narrativa transita. Além disso, a fotografia mostra como a iluminação específica para a pele negra é frequentemente negligenciada no cinema comercial. Os personagens negros empolgam por sua força, beleza e potência e o elenco inteiro está consistentemente bem, mostrando um grande trabalho de direção de atores (destaque para o protagonista, John David Washington, e para Adam Driver, de Paterson, que interpreta seu parceiro).

Lee acerta no alvo ao traçar – algumas vezes de forma sutil, em outros pontos de modo bem mais explícito – semelhanças entre os Estados Unidos da era Trump e o clima de preconceito racial intenso dos anos 1970. Difícil não pensar no Brasil e na forma como grande parte desse discurso intolerante e racista emergiu também aqui, em especial neste último ano. Outro aspecto digno de nota é a problematização que o diretor faz com relação à função do cinema na perpetuação do preconceito, através de uma montagem paralela, técnica bastante utilizada no filme para ressaltar disparidades. De um lado, temos o discurso de um ativista negro, que explica o efeito devastador do filme O nascimento de uma nação, de Griffith, que funcionou como um barril de pólvora para os violentos ataques racistas no país após seu sucesso comercial. De outro, vemos os membros da KKK entusiasticamente assistindo ao filme cerca de 60 anos depois. E, indo mais além, acabamos por ver o hoje ali também presente, com um fantasma que Lee apresenta primeiro como menção jocosa e depois claramente como alerta, na impactante sequência que fecha o filme.

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3 DOCUMENTÁRIOS SOBRE MULHERES ARTISTAS no Festival do Rio 2018

MARIA CALLAS – EM SUAS PRÓPRIAS PALAVRAS, de Tom Volf

MARCIA HAYDÉE, de Daniela Kallmann

FERRANTE FEVER, de Giacomo Durzi

por Luiz Fernando Gallego

A primeira das três mulheres, artistas famosas que apareceram em documentários neste festival do Rio 2018 (pois a cineasta comentada na resenha mais abaixo de Be Natural não ficou famosa, leiam a matéria de Maria Caú), brilhou principalmente na década de 1950: seu nome virou uma lenda nas casas de ópera de todo o mundo. Mesmo quem não curtia o gênero mas tinha um mínimo de informação sobre o que se passava nos meios culturais já tinha ouvido falar em Maria Callas como uma cantora lírica excepcional. Já na década seguinte, quando havia algumas críticas à sua competência vocal e ao seu comportamento instável, escândalos mundanos faziam de sua persona pública notícia frequente, especialmente pela ligação com o milionário Aristóteles Onassis. E, mais ainda, quando ele se casou com Jacqueline Kennedy sem que sua namorada de oito ou nove anos soubesse, tendo sido informada pelos jornais.

Não sei que repercussão seu nome pode ter ainda hoje em dia, e se um documentário baseado em entrevistas dadas por ela e em cartas escritas para amigos poderá atrair um público diferente dos fãs de ópera. Mas o filme de Tom Volf tem qualidades intrínsecas: quando não ouvimos a própria Callas, a atriz Fanny Ardant (que já fez o papel da cantora num filme de ficção dirigido por Franco Zefirelli) lê trechos de correspondência íntima de Maria (mais do que de “La Callas”) para pessoas amigas, às vezes tão famosas como ela (como Grace Kelly, princesa de Mõnaco). Não há outra forma de narração além destas, salvo nos letreiros finais que informam sua morte aos 53 anos. Por um breve momento, numa entrevista gravada, ela dá voz ao cineasta Pier Paolo Pasoloni que a dirigiu em sua única interpretação no cinema, como atriz apenas em Medea, de 1969. Se ela era também admirada como uma cantora que sabia atuar, e se já havia encarnado a personagem mitológica nos palcos em uma ópera de Cherubini, a recente traição de Onassis no ano anterior não pode ser descartada como motivação para Callas aceitar arriscar-se como "apenas" atriz num filme, sem cantar. Afinal, Medéia também é uma mulher cujo esposo, Jasão, a troca por outra.

Há trechos em que vemos ou ouvimos interpretações completas de trechos operísticos mais conhecidos, como “Casta Diva”, “O Mio Babbino Caro” e a “Habanera” da “Carmen”, o que pode agradar mais - ou menos - o espectador, conforme seu interesse musical. Talvez alguns sejam até mesmo conquistados pelo magnetismo de suas interpretações. Mas o que mais chama a atenção é a tristeza de sua vida: obrigada pela mãe a entrar para um Conservatório de Música aos 13 anos de idade, Maria diz, mais de uma vez, que preferiria ter formado uma família. Entretanto, uma questão feminista impensável na época, ou se dedicava à sua arte, ou seria mãe, jamais conseguiria fazer as duas coisas. E “destino é destino” (sic). Seria mesmo "destino"? Ainda é assim?

Parece ter sido infeliz também com o marido - que abandonou por Onassis. Este lhe proporcionava a possibilidade de não ter que cantar, o que parece deixá-la mais tranquila e até mesmo alegre, já que estar nos palcos teria se tornado um desafio enorme, a ponto de interromper espetáculos entre um ato e outro, alegando, às vezes, “pânico”, e causando mais escândalo e ofensas da imprensa. O assédio dos jornalistas é cruel e lhe é evidentemente penoso.

A relação com Onassis terminou mal, ainda que tenha havido um reatamento, novamente escandaloso. Seu riso, muitas vezes parece forçado e seu semblante muda de um período para outro: às vezes parece bonita, outras vezes, no entanto, apenas tensa, assustada, acuada ou mesmo belicosa. Uma ficção forçosamente cairia no melodrama, o clichê da artista infeliz na privacidade, mas o que se vê na tela é uma dramática - ou mesmo trágica - realidade reconstituída com ótimo material de arquivo bem editado.

MARCIA HAYDÉE, em suas palavras, era chamada de “Maria Callas do balé”. Ao contrário de sua colega de palcos em outra área, parece apaziguada aos 80 anos de uma vida artística espetacular e vida afetiva variada: talvez quatro maridos, um deles, seu mais famoso partner, Richard Cragun, com que continuou a dançar mesmo depois do casamento ter acabado.

Natural de Niterói, Márcia teve um empurrãozinho inicial de Bibi Ferreira e dos diretores de cinema Michael Powell e Emeric Pressburger (do clássico filme de dança Os Sapatinhos Vermelhos, 1948), mas ela vai realmente “estourar” depois de passar por Londres e Paris: em Stuttgart sob a direção de John Cranko - que poderia ter dito sobre Márcia o que Ingmar Bergman disse que encontrou em Liv Ullmann, “seu Stradivarius”.

Márcia não foi só uma “realização de Cranko”: após a morte dele, ela assumiu a direção do Balé de Stuttgart, continuou a dançar e começou a conceber coreografias. O filme tem bom material que dá alguma ideia da excelência de Márcia como intérprete, assim como de sua parceria assombrosa com Cragun. Se sua vida é muito menos dramática do que a de Callas, melhor para ela, um nome do qual o Brasil tem do que se orgulhar. Seus depoimentos parecem sinceros, simples, e ás vezes até mesmo naïves. Ela também menciona não ter tido filhos, diz que numa outra vida, teria uma família. Mas se emenda: seria bailarina mesmo de novo.

O filme se alonga um pouco embora não ultrapasse os 80 minutos. Talvez seja mesmo mais indicado para fãs de balé e dessa bailarina excepcional.

ELENA FERRANTE é apenas um pseudônimo e o documentário sobre a escritora italiana (se não for um escritor, embora muita coisa indique que é mesmo uma mulher) trata mais de sua obra e de seu anonimato, embora os depoimentos tentem não privilegiar este segundo aspecto, afinal de contas, mais de interesse mundano do que literário. Neste sentido, é interessante ouvir o que o badalado escritor norteamericano Jonathan Franzen tem a dizer, até mesmo emocionado, sobre as obras da italiana. Na ausência da própria Ferrante, sua tradutora para o inglês é entrevistada quase como se fosse um avatar da outra, mas, recusando este papel, a simpática senhora Ann Goldstein, com modéstia, tem alguma coisa a dizer sobre os quatro livros da chamada “Série Napolitana” que transformaram Ferrante em best-seller mundial.

O filme informa que dois livros anteriores da autora já foram levados às telas em seu país natal, Um Amor Incômodo e Dias de Abandono, proporcionando que vejamos alguns trechos dos filmes.

Não estranhem por haver tanta ênfase em depoimentos de norteamericanos, pois o doc informa que a “febre Ferrante” começou em NY mesmo. Mas muitos italianos também dão seus depoimentos.

Numa atividade bem menos exposta, como é o caso da escrita, Ferrante seria uma “celebridade” como Callas e Marcia Haydée se se revelasse como quem de fato é. Sabiamente, evita a exposição, fazendo de sua obra o foco de interesse único. Com apenas 74 minutos, o filme certamente agradará especialmente aos que já leram os livros da autora. Alguma ingenuidade nas imagens de uma mulher encapuzada andando pela rua não estragam o que o doc traz de interessante.

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VERMELHO SOL, de Benjamín Naishtat

por Maria Caú

Numa pequena província argentina em meados dos anos 1970, um advogado se envolve em uma acalorada discussão com um estranho num restaurante, fato que vai impulsionar uma série de pequenos acontecimentos desestabilizadores. Essa é a trama básica de Vermelho sol, que se apoia na excelente atuação de Darío Grandinetti como o protagonista e na segura fotografia do brasileiro Pedro Sotero, que, juntamente com a direção de arte, faz o vermelho do título (em espanhol, o filme se chama apenas Rojo) surgir pontualmente num ambiente cinzento como um sinistro prenúncio.

Apesar dessas qualidades, o roteiro se perde depois da absolutamente genial sequência de abertura, que poderia ela mesma ser desmembrada para a realização de um curta-metragem de excelência. A partir daí, há diversos bons momentos em meio a subtramas desinteressantes, em especial aquela que envolve a filha do personagem central, que precisa ser uma bailarina talvez para trazer uma suposta “leveza tipicamente feminina” à trama, mas acaba como um personagem clichê, tedioso e inteiramente deslocado. Em realidade, todas as mulheres são intensamente mal escritas, funcionando mais como veículos para uma narrativa conduzida apenas por homens e que, vacilante, jamais recupera a maestria dos seus primeiros 20 ou 30 minutos.

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BE NATURAL: A história não contada da primeira cineasta do mundo, de Pamela B. Green

por Maria Caú

A trajetória de Alice Guy-Blaché, cineasta francesa que realizou aquele que é considerado um dos primeiros filmes narrativos, dirigiu centenas de outras obras repletas de inovações de linguagem e chegou a comandar um estúdio, impressiona tanto quanto o seu completo e reiterado apagamento da história do cinema. Pois o documentário de Pamela B. Green é tanto sobre os feitos geniais de Guy quanto sobre o processo que a legou ao completo esquecimento.

A narrativa, dinâmica e cheia de entrevistas com cineastas, atores e pesquisadores, é narrada por Jodie Foster e apresenta o resultado de um longuíssimo trabalho de pesquisa, com o resgate de uma enorme gama de documentos, imagens e entrevistas raras com a própria cineasta, que revelam sua personalidade bastante magnética e diversas curiosidades. Be natural, por exemplo, era um aviso gigantesco que Guy mandara pintar no seu estúdio para orientar o elenco. De fato, Green constrói uma verdadeira arqueologia desses anos, questionando a cada passo as razões que empurraram essa brilhante mulher para fora dos livros sobre o primeiro cinema. Por esse motivo, trata-se de um filme necessário para professores e pesquisadores, que serviria muito bem para corrigir erros tão comuns dentro das salas de aula de História do Cinema.

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GUERRA FRIA, de Pawel Pawlikowski

por Luiz Fernando Gallego

Ainda que inspirado na vida dos pais do diretor Pawel Pawlikowski (do premiado “Ida”, de 2013), o roteiro de Guerra Fria passou por acréscimos ficcionais no que diz respeito à vida íntima e às personalidades do casal interpretado por Joanna Kulig e Tomasz Kot - que além de ótimos atores também têm os talentos musicais que os personagens demandam.

O diretor usa de novo expressiva fotografia em preto-e-branco de um dos seus cinegrafistas de “Ida”, Lukasz Zal, assim como repete o mesmo editor, Jaroslaw Kaminski, trocando os colaboradores do roteiro. E a despeito das qualidades que o filme apresenta, o enredo não tem a mesma integração conseguida no filme anterior entre os destinos individuais e a situação política da época. Em “Ida”, nazismo, antissemitismo, comunismo e igreja católica moldavam fortemente a conduta da noviça, de sua tia e do rapaz músico. Aqui, por mais que a "guerra fria" no título atrapalhe enormemente a vida do casal Zula e Wiktor, muito dos percalços que eles sofrem são originados dos destemperos emocionais deles mesmos.

No início até parece que a instituição religiosa que tanto marcava o destino da noviça estaria sendo trocada pela “religião” comunista - ou melhor, por sua institucionalização dentro do stalinismo. Mas a fixação de Wiktor em Zula, e até mesmo o abuso de álcool por parte dela muitas vezes atrapalham a vida dos dois, independentemente de estarem do lado de lá da “cortina de ferro” da então URSS ou de estarem em Paris. Neste sentido, o título do filme acaba soando pretensioso e pode colaborar com um certo grau de frustração. Sem esta expectativa, é interessante, enxuto (menos de 90 minutos), apesar de algumas elipses perto do desfecho deixarem o espectador desejando saber um pouco mais do que teria acontecido aos personagens entre uma passagem de tempo e outra.

Um destaque na estrutura da narrativa é o uso das músicas, muitas vezes em estilos bem diferentes, assim como a filmagem e edição das cenas de danças folclóricas na parte inicial.

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RAFIKI , de Wanuri Kahiu

Por Daniel Schenker

A abordagem do romance entre duas mulheres, Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva), filhas de políticos rivais, pode remeter longinquamente a Romeu e Julieta , tragédia de William Shakespeare. Escorado no conto Jambula Tree , de Monica Arac de Nyeko, Wanuri Kahiu destaca a ambientação da história num prédio populoso do Quênia, geografia marcada pela homofobia e pela intromissão na vida alheia. Não por acaso, a violência irrompe quando elas não conseguem mais manter o vínculo em esfera privada.

O obscurantismo que atravessa boa parte dos personagens coadjuvantes contrasta com a luminosidade das cores imperante nos espaços, nas roupas e na pintura dos rostos numa determinada cena. Kahiu frisa o desejo das jovens de se afastarem do modelo social dos pais, principalmente no que se refere à rotina doméstica. Mas, na hora em que a intolerância explode, Kena e Ziki não reagem da mesma forma. Nem sempre quem aparenta ter mais coragem concretiza um movimento de libertação, insinua Kahiu.

Há também certo realce em relação aos pais de ambas, com notada preocupação em diferenciá-los. Kena tem um pai compreensivo e uma mãe rancorosa, enquanto Ziki convive com pai agressivo e mãe algo abnegada. Rafiki joga luzes sobre o preconceito num filme oportuno, ainda que não propriamente original.

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TORRE DAS DONZELAS, de Susanna Lira

por Maria Caú

A documentarista Susanna Lira não tem medo de lidar com temas extremamente espinhosos, e por isso mesmo urgentes, em títulos como Legítima defesa e Intolerância.doc. Em Torre das donzelas, ela traça um retrato bastante forte e nuançado da ala do presídio Tiradentes em que ficavam confinadas algumas das mulheres guerrilheiras presas pela ditadura militar, a torre que dá nome ao filme. Através de entrevistas bastante marcantes com essas mulheres incríveis, entre elas a ex-presidente Dilma Rousseff, e pontuais encenações muito mais poéticas que propriamente narrativas, Lira recria aquele universo de resistência e sororidade.

O grande trunfo do filme é utilizar uma reconstrução em estúdio da torre, recriada a partir dos relatos e de esboços desenhados por suas antigas ocupantes, como conduíte para as memórias que vão progressivamente vindo à tona sob o olhar do espectador, à medida que essas personagens adentram o espaço. Nesse processo, Lira consegue romper aqueles que são identificados pelas entrevistadas como os grandes artifícios da repressão violenta: o domínio do espaço e do tempo e a imposição do silêncio. O documentário, que ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Brasília, é um filme necessário em tempos em que a memória parece não ser suficiente para conter o retorno da barbárie.

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RAIVA , de Sérgio Tréfaut

por Daniel Schenker

Com exceção do prólogo, marcado por sequência de ação referente ao ápice do confronto entre o camponês Antonio Palma e o fazendeiro Elias Sobral, Raiva bate na tela como um filme de ritmo lento, apesar da constante tensão que atravessa a projeção, e imagens austeras.

De maneira intimista, Sérgio Tréfaut, escorado no romance Seara do Vento, de Manuel da Fonseca, traça um desolador panorama social do Sul de Portugal em 1950. Nessa região, onde Palma mora com a esposa, a sogra e os dois filhos – o menor com problema mental –, os trabalhadores não encontram emprego e a saída parece ser recorrer ao contrabando. O cineasta realça esse quadro não só por meio da situação de Palma como a dos filhos – a de Palma, que, a partir de determinado momento, toma a frente nas reivindicações, e o de Sobral, menos extremista que o pai. Personagens circunstanciais também reforçam o contexto econômico, a exemplo da passagem em que uma mulher surge na casa do protagonista e afirma estar em busca do marido que há dois meses vaga à procura de trabalho. Cabe destacar a fotografia em preto e branco de Acácio de Almeida. No elenco sobressai Leonor Silveira, atriz frequente em filmes de Manoel de Oliveira.

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CULPA, de Gustav Möller

por Maria Caú

Vencedor do prêmio do público do Festival de Sundance de 2018, o dinamarquês Culpa se passa nas últimas horas de trabalho de Asger, um operador de chamadas de uma central de emergências da polícia de Copenhagen. Entre diversas ligações, ele recebe a chamada de uma mulher que, com cuidado para que o homem a seu lado não perceba com quem fala, avisa que está sendo sequestrada. Com poucos indícios do paradeiro da moça e da van que a transporta, Asger vai usar de todos os artifícios possíveis para burlar um sistema bastante falho e tentar salvá-la.

O grande trunfo da narrativa é a escolha radical de se manter inteiramente no espaço da central de emergências, à máxima proximidade do protagonista, deixando que o mundo externo surja apenas através dos pontos de escuta de Asger, num desenho de som não menos que fenomenal. A atuação de Jakob Cedergren é grandiosa justamente porque mantém a solidez diante de uma câmera que está o tempo todo perscrutando suas mínimas reações. O roteiro, muito bem construindo, faz com que a vida pessoal do atendente emerja organicamente e dê aos poucos novas nuances às suas decisões. Além disso, a trama se constrói com uma virada bastante surpreendente e mantém o espectador num grau alto de tensão pelos seus quase 90 minutos.

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A QUEDA DO IMPÉRIO AMERICANO, de Denys Arcand

por Luiz Fernando Gallego

Não confundir com O Declínio do Império Americano (de 1986), do mesmo Denys Arcand. O Declínio... teve uma continuação de sucesso, As Invasões Bárbaras (2003) seguida de dois fracassos do mesmo diretor. O título deste novo filme ia ser “O Triunfo do Dinheiro”, mais adequado ao enredo, mas acabou sendo chamado de A Queda do Império Americano, talvez para confundir mesmo - e o público achar que seria mais uma sequência com os mesmos personagens das Invasões. Não é. Mas é o melhor resultado de Arcand desde então. As inverossimilhanças do enredo assumem o tom de farsa, e quase que de fábula, servindo ao propósito de mostrar, com sarcasmo, um retrato pessimista da sociedade em geral, dos privilégios e das falcatruas com dinheiro - desde que seja muito dinheiro.

No prólogo, um fracassado professor de filosofia que ganha mais como motorista de um furgão que transporta valores, comenta com a namorada como grandes artistas e filósofos podem ser tolos em sua vida pessoal. Logo, ele parece seguir o mesmo caminho, preso a frases feitas de grandes filósofos, mas sem quase nenhuma praticidade na vida terra-a-terra. O ator Alexandre Landry lembra a expressão mais ingênua de um Jerry Lewis cujos traços pudessem ser mais de galã do que de cômico. Ao seu lado, a belíssima Maripier Morin não faz feio, e nem poderia, de tão bonita que é, lembrando Brooke Shields no auge. Mas são os atores mais velhos dos citados sucessos anteriores de Arcand que mais se destacam: Rémy Girard e Pierre Curzi.

O filme se alonga um pouco perto do final e Arcand chega ser proselitista e óbvio em seu recado - o que talvez colabore mais ainda para a boa receptividade junto ao público. Foi aplaudido ao final da sessão em que estivemos.

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AS VIÚVAS, de Steve McQueen

por Luiz Fernando Gallego

Baseado numa minissérie britânica de 1985, o quarto longa-metragem do também britânico Steve McQueen teve seu enredo transplantado para os EUA com amplos cuidados de produção e elenco, confirmando o talento do realizador de Hunger e Shame - que não lançava um longa desde o premiado 12 Anos de Escravidão (2013).

Apesar das qualidades artesanais, o enredo um tanto rocambolesco, pontuado de algumas surpresinhas e sub-enredos menos desenvolvidos ou pouco verossímeis, deixa a desejar para quem esperava algo mais de acordo com os filmes anteriores de McQueen. Ele repete tanto o mesmo diretor de fotografia de seus outros filmes, o ótimo Sean Bobbitt, que faz mais um ótimo trabalho de cores e luzes, como o montador Joe Walker, competente na edição das cenas que intercalam ações paralelas e flashbacks eventuais.

Mais do que a história das três viúvas do título, mulheres de bandidos que se veem forçadas a cumprir com “obrigações” deixadas por seus parceiros, o que pode interessar mais é o pano de fundo em que se passa a trama central sobre as moças: na Chicago de hoje, políticos, bandidos e líder religioso não passam de corruptos da mesma laia, mudando – apenas um pouco – seus métodos de ação. Nada que, por outro lado, não conheçamos na nossa atualidade abaixo do Equador.

O elenco é outro destaque, embora da maior parte dos intérpretes não seja exigida muito além das habilidades já amplamente conhecidas. Viola Davis, por exemplo, nem tem muito o que fazer, quase que aprisionada num tipo de “durona”. E embora alguns aspectos do passado familiar da personagem sejam mostrados em flashback, a informação de que era líder sindical (sindicato de professores) não é explorada nem relacionada ao seu estranho casamento com um assaltante muito dedicado ao crime. Já a personagem de Elizabeth Debicki traz um pouco mais de oportunidades que a atriz aproveita bem, ainda que seja através dela que surjam concessões de um certo humor - um tanto deslocado do clima criminal que domina o filme. O aspecto paralelo de um caso seu com um homem interpretado por Lukas Haas surge como coincidência demasiadamente favorável para a trama, sendo em seguida deixdo de lado. Michelle Rodriguez não tem muito o que fazer num tipo mais apagado. Três etnias foram contempladas, uma afro-americana, uma latina e uma branquela descendente de poloneses. Bastante complicado este empoderamento feminino em atividades criminosas.

No elenco masculino, Robert Duvall é o grande ator de sempre numa pequena participação e Colin Farrell está adequado ao seu papel. Por outro lado, os negros Daniel Kaluuya (que esteve excelente em Corra!) assim como Brian Tyree Henry ficam limitados pelos personagens estereotipados.

No final das contas, o filme se deixa assistir embora desperte mais interesse nas premissas iniciais, ficando pouco além do aproveitamento de um diretor habilidoso para uma história de desenvolvimento rotineiro e que busca escapar da rotina com as já mencionadas reviravoltas e surpresas muito pouco convincentes dentro da pegada realista pretendida.

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LOS SILENCIOS, de Beatriz Seigner

por Luiz Fernando Gallego

Los Silencios é menos bem sucedido como ficção e roteiro do que em sua ótima parte semi-documental que mostra a vida duríssima de uma família colombiana fugida das FARCS e que vai para uma ilha no rio Amazonas, uma terra de ninguém entre Brasil, Colômbia e Peru. A ilha tem um “presidente” que não quer mais oferecer trabalho para gente como a mulher que chega lá com um filho e uma filha - sendo que esta que se mantém sempre em silêncio.

Um grupo de empresários quer “comprar” as casas por preço irrisório, visando construir um cassino na ilha, já que aquela terra não seria pertencente a nenhum dos países fronteiriços. Por sua vez, a recém-chegada recebe uma oferta de teor assemelhado, originada de um advogado: para receber uma indenização pela provável morte de seu marido, um ex-líder comunitário, teria que ter um dinheiro que ela não possui no momento para os custos de busca e identificação de cadáver; o advogado lhe propõe receber de imediato uma quantia (vinte vezes menor do que ela provavelmente receberia se se mantivesse à frente da demanda), abrindo mão do valor final a receber - que ficaria para o escritório de advocacia.

No rádio ou na TV surgem as notícias do acordo de paz entre o governo da Colômbia e as FARCs. Enquanto a situação social dos moradores da região se desenrola num viés realista, o personagem do marido sumido reaparece: como lembrança para a mulher ou – talvez – como um fantasma para a filha silenciosa.

Mas o roteiro parece estar sendo desenvolvido para duas cenas próximas ao final nas quais se revelam algumas pretensas surpresas do enredo, meio que “segredos de Polichinelos” – que, entretanto, sofreram alguns despistes para o espectador, despistes pouco leais para com a plateia.

ATENÇÃO: SPOILERS

Uma companheira da menina silenciosa, já próximo ao final, lhe fala de uma reunião de fantasmas que vão discutir a situação daquela comunidade. Nesta cena, o roteiro deixa explícita sua mensagem social com depoimentos verbais em um clima absolutamente natural entre vivos e mortos sobre o que lhes aconteceu e o que esperam de melhor. Mais do que em imagens, as palavras ditas se transformam no recurso principal para o que o filme já vinha expondo de melhor maneira do ponto de vista cinematográfico.

A menina silenciosa vai se revelar como tendo morrido juntamente com seu pai, e suas roupas, que aos poucos já vinham adquirindo cores fluorescentes, vão ter este aspecto acentuado, tanto para ela como para o pai. A mãe recebe os restos mortais dos dois e uma bela cerimônia fúnebre dá o toque final com amplo uso de tintas fluorescentes servindo como pintura de aspecto indígena nos rostos de todos, vivos e mortos. A despeito da emoção que estas cenas podem despertar, o filme, como documento, funciona melhor do que como ficção.

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