Especiais


22a MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

19.01.2019
Por Maria Caú
Confiram o Balanço Final da Mostra além da cobertura diária.

Balanço final

Durante a Mostra de Cinema, a impressão que se tem é que todo o cenário da cidade de Tiradentes, mimosa e pequenina, com suas pedras, cavalos e construções históricas, se abre para as intervenções artísticas, não apenas as cinematográficas, mas eventos musicais, peças de teatro e outras manifestações calculadas ou espontâneas. O interessante é que a cidade, como espaço físico, parece estar em milimétrica e calculada dissonância dos filmes que são exibidos, que têm por proposta geral a experimentação. Ainda assim, o interesse do público não parece arrefecer, com sessões, debates e seminários sempre lotados, e uma participação ativa nesses ambientes.

A 22ª edição foi marcada por discursos políticos bastante contundentes por partes dos realizadores e das equipes, criticando o obscurantismo do momento político atual, denunciando o fim do Ministério da Cultura, lamentando a decisão de Jean Wyllys de sair do Brasil e repudiando o crime ambiental de Brumadinho (esses dois últimos eventos ocorridos durante a mostra, o último no próprio estado de Minas Gerais). Apesar disso, e em se tratando de uma seleção com títulos de importância política nesse cenário contemporâneo (como Tremor iê, A rosa azul de Novalis e A rainha Nzinga chegou), o filme premiado na principal mostra competitiva, a Aurora, foi o goiano Vermelha, de Getúlio Ribeiro, que se afasta dessa questão em busca de um exercício de “experimentação” estético-narrativa cuja proposta parece difícil de divisar, e por isso mesmo dividiu opiniões.

Por outro lado, o vencedor da Mostra Olhos Livres, indiscutivelmente o melhor filme da seleção, Parque Oeste, de Fabiana Assis (interessantemente, também goiano), é sem dúvida o filme mais tradicional dentre os seis que compunham essa mostra, supostamente reservada para filmes pouco classificáveis ou mais experimentais. De fato, as decisões da curadoria permanecem um tanto obscuras, sendo difícil entender como Superpina: gostoso é quando a gente faz!, uma absoluta bomba sem qualquer razão de ser, ou mesmo qualquer viés inovador, possa ter sido selecionado.

Já no caso da mostra Aurora, a presença de um filme absolutamente convencional em termos de forma e conservador em termos de conteúdo, Desvio, de Arthur Lins, surpreende tanto quando a de A rainha Nzinga chegou, documentário que, apesar de importante, traz uma estrutura que lembra o simples registro amador.

Nesse contexto, cabe destacar mais uma vez A rosa azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, como um filme que, esse sim, une experimentação narrativa e ousadia estética embasadas por uma proposta imagética e política relevante que expressa bastante bem o espírito do festival.

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25/01

Calypso, de Rodrigo Lima e Lucas Parente (Mostra Olhos Livres)

Com uma fotografia milimetricamente pensada para gozar com a própria beleza, enamorada de recursos técnicos que referenciam cineastas como Maya Deren apesar da completa falta de vitalidade com que são empregados, Calypso apresenta as figuras de um homem e de uma mulher que habitam um universo esvaziado entre as pedras e o mar. Trata-se de um exercício de linguagem estanque que apresenta uma colagem de experimentalismos que poderiam ser interessantes fossem inéditos, mas em realidade se fundam sobre clichês imagéticos, alguns extremamente banais, como o plano em que a mulher exibe o sangue (menstrual?) que escorre por entre suas pernas. Também as poucas frases pseudofilosóficas (“O tempo não poupa ninguém”), ditas em voz empostada, assim como a trilha sonora equivocada de contornos épicos, parecem dolorosamente gratuitas. Assim como o são as inserções de material de arquivo que (mal) pontuam a narrativa fundada numa “poética” que carece de qualquer construção mais detida.

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A rosa azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro (Mostra Aurora)

O mais vivo e pulsante (e a escolha dessa palavra é um cálculo de precisão) longa-metragem da principal mostra competitiva do festival, A rosa azul de Novalis é, de fato, a jornada de um ânus (sejamos mais diretos, refletindo a contundência do filme: um cu) e do homem que o anima, Marcelo Diorio, realíssimo em seu processo de autoficcionalização. Com uma personalidade de contornos esfuziantes, Marcelo interpela os diretores e a equipe de produção num monólogo em que aborda suas memórias, incluindo passagens desconcertantes ou potencialmente traumáticas, assim como sua relação com a literatura, o cinema e um misticismo difuso que mistura astrologia, quiromancia, vidas passadas. Em realidade, o protagonista é tão brilhante na construção de uma personalidade decadentista, um Oscar Wilde tropical com deficiência de vitamina D, que é difícil acreditar que se trata de seu primeiríssimo trabalho como ator, um desempenho que toca em temas necessários e de grande potência política no momento atual, como a sorofobia e a interdição social em relação ao prazer anal. A atuação prismática expressa vulnerabilidade sem perder o completo domínio da mise-en-scène, de forma que Marcelo, desnudado de muitas formas, jamais se conforma ao papel de objeto do olhar, sendo aquele que de alguma forma o direciona. O que se estabelece é uma complexa rede de provocações e olhares entre realizadores, protagonista e público, num jogo consensual, apesar de arriscado em sua ousadia. “Tenho uma relação mórbida com essa coisa de me expor”, declara ele, ao mesmo tempo em que reivindica o livre exercício dessa morbidez.

Nesse cenário, surgem diferentes alegorias visuais que experimentam com artifícios linguísticos variados (um chroma key facial, uma sequência precisa de sexo explícito, a materialização da rosa etérea que dá título à obra), retomando e aprofundando conceitos que já estavam presentes do ponto de vista do discurso. Numa das melhores passagens, que se liga ao cinema cybercarnal de David Cronenberg, Marcelo arranca os cabos (as entranhas) de um carro que é em si a encarnação mecânica da sua muito dúbia relação com os homens da família: o pai e o irmão heterossexual. Os belos planos que abrem e fecham o filme, ambos quadros em que o cu de Marcelo é o centro de convergência do olhar, são quase um manifesto contra a hipocrisia da sociedade brasileira, esse conservadorismo farsante que retornou de seu esconderijo com força e violência nos últimos anos.

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Um filme de verão, de Jo Serfaty (Mostra Aurora)

O fechamento da Mostra Aurora se deu com Um filme de verão, uma ficção inteiramente baseada nos cotidianos de seus jovens protagonistas, que também assinam o roteiro desse trabalho em conjunto. O longa mostra flashes entrecortados e justapostos das vivências e sonhos de quatro jovens periféricos durante a estação mais famosa do Rio de Janeiro. Estranhamente, o verão (à exceção de breves e ótimos momentos, como o plano lento em que Karol abre uma geladeira para se refrescar) não parece exatamente se construir como um personagem do filme, que opta por apostar numa fotografia cinzenta talvez disposta a retratar o apartamento desses adolescentes dos espaços públicos centrais ou dos grandes cartões postais. Incomoda o excesso de tempos mortos povoados de diálogos que soam falsos e improvisados a um só tempo e uma montagem que une sequências que não parecem conversar bem entre si (no confronto ou na consonância). É um tanto desconcertante que as referências culturais dos personagens migrem tão frequentemente para o ambiente dos anos 1990 e o filme poderia trabalhar um pouco melhor essa espécie de nostalgia. Dito isso, os momentos mais altos se dão quando a narrativa consegue abrir uma janela para o imaginário dos personagens, em sequências geralmente relacionadas à música e à linguagem do videoclipe (ela mesma, uma linguagem que parece ter atingido seu apogeu também na década de 1990).

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24/01

Parque Oeste, de Fabiana Assis (Mostra Olhos Livres)

Mais contundente filme até agora na seleção da Mostra Olhos Livres, o documentário Parque oeste segue o cotidiano de militância de Eronilde Nascimento, ex-moradora da comunidade de Goiânia que dá nome ao filme, desocupada através de uma ação policial criminosa e extremamente violenta que resultou em pelo menos dois mortos, deixando cicatrizes profundas nas vidas dos desalojados. De fato, os moradores da localidade acabaram se tornando, como a realizadora denuncia, peões nas mãos dos interesses políticos, com suas construções sendo incentivadas em prol de interesses eleitoreiros apenas para serem posteriores derrubadas sob rajadas de balas, gás lacrimogêneo e tratores.

A escolha de centrar a narrativa na figura de Eronilde é mais que bem-sucedida, já que ela é capaz de elaborar de forma eloquente e emocionante todas as injustiças pelas quais passou, sublinhando a injustiça do processo de reiterada criminalização dos movimentos sociais por um Estado disposto a assassinar na defesa dos interesses de grandes empresários. Além disso, as conexões mais profundas da líder comunitária com a luta a que ela dá voz vão se revelando paulatinamente e de forma bastante tocante, numa estrutura que (acertadamente) decide conceder fala quase que apenas às mulheres, em especial à entrevistada e sua filha, mostrando a força das articulações femininas em busca do direito à moradia digna nesse cenário de resistência contra as muitas opressões do poder institucionalizado.

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Desvio, de Arthur Lins (Mostra Aurora)

Após passar anos preso, Pedro (Daniel Porpino) recebe um indulto de Natal e decide visitar a família no interior. Lá, ele reencontra a mãe, a avó, a pequena cidade que deixou (Patos) e seus fantasmas, a cena underground de rock contestador da qual fazia parte com sua banda e, especialmente, a prima Pâmela, hoje uma mulher recém-saída da adolescência que encarna algumas das mesmas inquietações que ele deixara para trás. A decisão do diretor-roteirista de não explicar o crime que levou o protagonista à reclusão, somada a uma atuação contida que resvala na robotização e às expressões canhestras de uma raiva “masculina” mal reprimida e prestes a entrar em ebulição (a saber, gritos e malabarismos automobilísticos) acabam por comprometer uma construção de personagem minimamente tridimensional. A relação de Pedro com a música, esboçada numa breve cena em que, sozinho num estúdio improvisado vazio, ele pega novamente a guitarra e testa alguns acordes, assim como suas interações com a prima, não são suficientes para humanizar o personagem ou dar escopo às suas intenções. No entanto, é justamente no universo desse rock sujo e não conformista (e dos jovens que o produzem e consomem) que se dão os melhores momentos do filme, ainda que a narrativa acabe em certa medida por associar esse ambiente à criminalidade, ao mostrar as inclinações contraventoras de Pâmela, seu pouquíssimo interesse em qualquer outra atividade, e um certo fascínio pelo primo que não parece se justificar completamente, mal ancorado exatamente numa relação embaralhada e confusa entre esse cenário musical de contestação social um tanto agressiva e a violência (não simbólica, mas real) da criminalidade. A fotografia pouco inspirada também não delineia bem as fronteiras entre esses universos, ampliando os problemas do roteiro.

ATENÇÃO: Nesse segundo parágrafo, spoilers.

O desfecho do filme, com Pedro tomando parte num assalto a banco em grupo, com explosões e muitos tiros para o alto, numa sequência que parece exprimir o gozo da violência, dá ao filme tintas bastante problemáticas, ainda mais quando pensamos no cenário político atual, em que os ex-detentos não são de forma alguma ressocializados e o pensamento social mais corrente dita que “bandido bom é bandido morto” porque “uma vez criminoso, sempre criminoso”. Ao privar o espectador das motivações do personagem central, ao mesmo tempo em que constrói para ele um núcleo familiar razoavelmente bem estruturado (certamente muito mais acolhedor do que aquele que a maioria dos ex-presidiários encontra quando retorna para casa), a trama acaba por ressaltar a possível futilidade dessa decisão. Em realidade, Pedro não apenas não sofre preconceito direto de ninguém (mesmo uma pequena cena com o tio parece muito mais uma discussão familiar que qualquer expressão dessa natureza), salvo breves comentários de um grupo de primos jovens, como é recebido com entusiasmo e genuíno carinho por quase toda a família (há até propostas de empregos futuros) e pelos antigos amigos, incluindo aquele que evidentemente se encontra numa posição social mais privilegiada. Num outro caminho, o longa também não investiga o problema da ressocialização ou a desatenção do Estado com os prisioneiros em regime semiaberto. Recusando esses dois caminhos para optar por um final “misterioso” e pelo alarde de uma sequência de ação, Desvio parece fazer ecoar a visão extremamente preconceituosa (e de colorações fascistas), infelizmente muito em voga no Brasil atual, de que um infrator vai sempre reincidir no crime, abrindo mão de abordar um tema premente de forma mais aprofundada, conscienciosa e narrativamente interessante.

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Vermelha, de Getúlio Ribeiro (Mostra Aurora)

Numa casa de Goiânia, Gaúcho tenta consertar seu telhado enquanto um vizinho vem repetidamente ao portão cobrar uma dívida: esta é a bastante tênue linha narrativa de Vermelha, longa que parece assumir a aleatoriedade como proposta estética e possibilidade fabular - e cabe aqui problematizar a legitimidade de tal decisão. O resultado pouco difere de um exercício gratuito e vazio, que traveste extensos problemas formais como invenções de linguagem. Assim pretende-se justificar a mise-en-scène pobre (e em alguns momentos mesmo canhestra), a fotografia bastante esquizofrênica, entre o registro observacional e planos ambiciosos com movimentos de câmera injustificáveis, a montagem mal planejada, em que entrevistas para a câmera surgem com a mesma futilidade de um insert de sexo absolutamente absurdo, a edição de som mal trabalhada, a construção de personagens capenga.

Se o diretor Getúlio Ribeiro filmou Vermelha ao longo de um ano, tendo como personagens os membros de sua própria família, os melhores momentos são aqueles proporcionados pela espontaneidade do seu pai, personagem central, que dá voz a algumas tiradas bastante engraçadas ou curiosas. Como (tentativa de) ficção, o longa é um exercício tedioso e francamente esquecível.

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23/01

Currais, de David Aguiar e Sabina Colares (Mostra Olhos Livres)

Durante a seca de 1932, o governo do Ceará criou verdadeiros campos de concentração para confinar os flagelados de forma que eles não interferissem no cotidiano da alta sociedade, espaços em que eram obrigados a realizar trabalhos pesados em troca de rações que mal alimentavam suas famílias. A partir do importantíssimo resgate desse fato histórico pouco conhecido, os realizadores criam uma narrativa que caminha numa estrutura híbrida, unindo encenações com atores, entrevistas reais mais ou menos ensaiadas, impressionante material de arquivo de caráter informativo e performances e alegorias visuais. Essa escolha de abarcar tantas frentes acaba por amainar a densidade do tema, que se revela pontualmente, em passagens como a longa entrevista com um sertanejo que conta vivamente a história da localidade para logo afirmar: “O tempo do cangaço está voltando”.

Outro ponto forte é a fotografia, assinada por Petrus Cariry, composta de planos meticulosamente pensados, explorando a profundidade de campo, com as ruínas se colocando sempre em relação com o vasto sertão que as rodeia, com sua beleza árida. É nessa composição bem pensada, assim como em alguns inspirados trechos de entrevista, que a memória escondida naquela terra, cristalizada nas pedras e construções, se revela em todo o seu peso. Dessa forma, o filme poderia passar sem boa parte dos recursos alegóricos e ficcionais que ele edifica, já que sua força está no quadro e nos corpos e vozes que o preenchem sem grande alarde, mas com muita força.

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A rainha Nzinga chegou, de Junia Torres e Isabel Casimira Gasparino (Mostra Aurora)

Filmado ao longo de dezesseis anos, o documentário aborda a Guarda de Moçambique 13 de Maio, grupo de congado, tradição cultural e religiosa que traz no seu bojo elementos de religiões de matrizes africana e cristã, assim como dança, teatro e celebrações de fé. O filme segue a descendente da rainha da Guarda em sua trajetória de resgate das origens mais próximas (familiares) e mais longínquas (numa visita ao Congo) dessa tradição. Apesar da importância do tema e de seu claro papel de valorização das heranças culturais afro-brasileiras, o filme não consegue alçar o voo que o levaria do simples registro (de caráter muitas vezes bastante amador, com fotografia, enquadramentos e movimentos de câmera mal executados) à narrativa documental plena. Os saltos temporais, salvo o primeiro, bastante interessante, também resultam mal pensados, numa montagem que acaba por desnortear ou desinteressar o espectador, que se desengaja progressivamente de uma experiência fílmica que poderia ser muito mais potente e reveladora.

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22/01

Bimi, Shu Ikaya, de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube (Mostra Corpos Adiante)

Bimi, da tribo indígena Huni Kuin, do Acre, é a primeira mulher da região a sustentar a posição de pajé, até então exclusivamente masculina. Nesse documentário em média-metragem, um de seus netos se une a dois outros realizadores indígenas para registrar o cotidiano de sua avó em seu trabalho de líder da comunidade. Assim, observamos essa mulher bastante assertiva organizando o cotidiano da tribo, desde a feitura de redes e a organização das refeições até o ritual de cura e contato com a ancestralidade realizado com a ingestão do chá de um cipó alucinógeno. Os momentos mais interessantes do filme são aqueles em que observamos os próprios realizadores indígenas em seu processo de discussão do cinema que se propuseram a construir: suas inquietações, sua relação com a câmera, suas aspirações no sentido da edificação de um movimento coletivo e político que use a linguagem cinematográfica para amplificar os ecos de sua cultura a partir de dentro. Assim, subverte-se a lógica tradicional do cinema etnográfico, de colocar os índios apenas como objetos e jamais como sujeitos das narrativas. Infelizmente, tais momentos são breves e esparsos num documentário sem maiores atrativos e que explora pouco sua genial protagonista.

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Trágicas, de Aída Marques (Mostra Olhos Livres)

Categorizado como experimental na programação, em realidade o filme não se encaixa nessa categoria, tendo um formato bastante tradicional de documentário baseado em depoimentos pontuado por trechos de ficção interpretados por uma única atriz. A parte ficcional é composta de sequências de teatro filmado a partir de trechos de textos clássicos da Tragédia Grega, a saber, Antígona, Electra e Medeia. As entrevistas tratam de diferentes sofrimentos experimentados por mulheres, a partir dos quais a diretora pretende fazer ecoar a tragédia clássica talvez como destino (no sentido mesmo do teatro grego, do irremediavelmente inescapável) da mulher. Se essa junção se dá de forma bastante satisfatória na primeira parte, com a jornada de Antígona para reaver e enterrar o corpo do irmão se ligando bastante bem à história de duas mulheres que viram seus irmãos desaparecerem na ditadura, entre elas Hildegard Angel, as duas outras partes parecem muito menos orgânicas. Electra, por exemplo, é talvez menos uma peça sobre justiça do que sobre vingança e a confusão entre esses dois conceitos justaposta ao sofrimento de mulheres negras que perderam seus filhos nas mãos do Estado racista é um problema. Também são problemáticos os muitos movimentos de zoom in durante as entrevistas, que direcionam demais os sentimentos do espectador quando os depoimentos já são inquestionavelmente emocionantes, assim como as cartelas e as intrusões de voz-over, que acabam por poluir demais o conjunto.

Gisela de Castro, no entanto, está fascinante na pele das três grandes personagens trágicas, e dribla as dificuldades intrínsecas do teatro filmado. A opção por mostrá-la ao fim caminhando pela cidade, como que carregando as personagens ao libertar-se delas, é outro ponto interessante.

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Tremor iê, de Elena Meirelles e Lívia de Paiva (Mostra Aurora)

Num futuro distópico que espelha o Brasil da Era Bolsonaro, um grupo de mulheres jovens tenta elaborar formas de resistência. Essa é a trama base de Tremor iê, que fala sobre repressão policial, violência contra as mulheres, racismo e apagamento da cultura negra, todos temas indispensáveis no cenário político atual. Porém, o roteiro fraco, que recorre a longos diálogos (ou monólogos) para explicar em detalhes um contexto que passaria melhor sendo mais obscuro e misterioso em seus óbvios matizes fascistas, assim como as evidentes fragilidades da proposta estética confusa, com uma fotografia e uma captação de som com problemas técnicos evidentes, e a duração esticada desnecessariamente comprometem o impacto. Impacto este que está presente nos ótimos momentos musicais, em especial na bela sequência em que uma das protagonistas passeia de moto no breu noturno, acompanhada pelo som de um rap militante apenas para encontrar um estranho “soldado do bem” (nome dos policiais nesse novo Estado), numa composição que se liga a filmes como Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós.

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21/01

Superpina: gostoso é quando a gente faz!, de Jean Santos (Mostra Olhos Livres)

Expansão do curta-metragem homônimo, exibido na Mostra de Tiradentes do ano passado, o longa pernambucano trata de um estranho fenômeno “sobrenatural”, centrado nas proximidades do supermercado que dá nome ao filme, e que faz com que as pessoas se entreguem ao chamado “Amor Primo”. Esse evento fantástico nada mais parece ser, no entanto, que uma completa desinibição sexual, que faz com que quase todos se entreguem a orgias ali mesmo nos corredores do estabelecimento, ou pelas ruas do bairro, em cenas de sexo tão constrangedoras quanto enfadonhas e pretensamente ousadas. Numa delas, a iluminação videoclíptica tenta esconder uma coreografia capenga, em que as pessoas parecem mais estar se dedicando a alguma espécie de performance mal elaborada de expressão corporal do que participando de uma experiência de natureza sexual.

O filme segue no que o espectador sente como longuíssimos 99 minutos com sequências desconexas, tempos mortos que parecem servir apenas para esticar a narrativa ao formato longo, piadas e diálogos de uma vulgaridade absoluta, apelo injustificado à repetida nudez de um dos protagonistas, situações cômicas que poderiam estar presentes num programa dominical noturno de tevê aberta, pontuados vez ou outra por algum efeito fotográfico absurdo que pretende justificar o mal ancorado caráter fantástico da trama. Pior: a obra acaba fazendo um desserviço à ideia de amor livre, retratando seus defensores (em especial uma das personagens centrais) como loucos desvairados viciados em sexo.

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Seus ossos e seus olhos, de Caetano Gotardo (Mostra Aurora)

A segunda-feira foi marcada pela abertura da Mostra Aurora, a principal mostra competitiva de Tiradentes, cuja seleção tem por foco diretoras e diretores com carreiras ainda iniciantes no formato de longa-metragem e cujos filmes expressam marcas de construção autoral. O filme, selecionado para o Festival de Roterdã deste ano, é também roteirizado, montado e protagonizado pelo diretor, no papel de Antônio, um cineasta que caminha pela cidade de São Paulo numa série de encontros planejados ou fortuitos. O formato, centrado em longos diálogos, ou melhor, monólogos em que determinado personagem expõe para um outro ou um pequeno grupo suas reminiscências amorosas, memórias de seu ambiente familiar ou da infância, além de alguns pensamentos soltos, é extremamente cansativo e teatral, apesar de render alguns momentos genuinamente bonitos.

A fixidez dos longos planos em que esses monólogos se dão, somada à teatralidade do texto, parece pouco coerente com a proposta narrativa de uma mise en abyme de grande pretensão, que incorpora elementos do filme que Antônio está elaborando, borrando as barreiras entre diferentes linhas fabulatórias de forma um tanto abrupta a partir da segunda metade do filme. Também a ideia de trabalhar os diferentes enredamentos de um corpo em permanente desconforto, seja no ambiente da cidade ou no contato com outros corpos, apesar de interessar a princípio, acaba perdida numa sequência de repetições maneiristas. Essas duas contorções (a da narrativa e a do corpo) dão a impressão de decisões puramente formais e acabam esvaziadas pela encenação que usa essas referências até atingir seu completo esgotamento.

Outro problema é que a trama se concentra na atuação do diretor-protagonista, que não consegue sustentar seu papel de personagem-guia. No caminho inverso, Malu Galli, que interpreta Irene, dá voz ao mesmo monólogo por duas vezes, cada uma delas num registro levemente diferente, que abre em leque as qualidades do texto.

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20/01

Tragam-me a cabeça de Carmen M., de Felipe Bragança e Catarina Wallenstein (Mostra Olhos Livres)

O filme de abertura da Mostra Olhos Livres, de feição experimental, gira em torno de uma atriz portuguesa que, no cenário do Rio de Janeiro de hoje, tenta encontrar a personagem de Carmen Miranda, que interpretará num filme. Apesar de extremamente instigante, o tema da preparação do ator para o mergulho profundo num papel de grande ressonância, esse deixar-se morrer para renascer num outro, acaba sendo abordado de forma um tanto superficial, escondido em alguns experimentalismos estéticos que pouco se justificam. Assim, os diretores perdem a excelente oportunidade de lidar com os ecos da figura de Carmen Miranda nos imaginários brasileiro e português, mesmo que o conjunto tenha diversos momentos interessantes, principalmente no que diz respeito à atuação da diretora-protagonista (que se destaca nas sequências de jogo com as canções de Carmen) e à fotografia centrada no trabalho de corpo da atriz.

No fim, a proposta permanece confusa, se assemelhando ao painel de colagens sobre o Brasil que a personagem central cria numa das paredes de sua casa em Santa Teresa, e ao qual o filme retorna, ora em cores, ora em preto e branco. Meio desamarradas surgem também todas as referências ao momento político do Brasil, colocadas da boca de uma mulher que acaba soando pouquíssimo inserida no contexto que pretende comentar de dentro. As imagens do incêndio no Museu Nacional, apesar de impressionantes, seguem esse caminho. Helena Ignez, no papel afetivo de uma diretora de cinema jamais satisfeita com a atuação da moça, é pouco explorada. E os gestuais de Carmen, seus movimentos de mãos tão característicos, que aparecem a princípio como signos bastante intensos desse processo de carnalização, acabam presos num ciclo de repetição que dilui qualquer intensidade inicial.

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Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes (Mostra Corpos Adiante)

Deusimar é dona do 'Inferninho', um bar de música ao vivo repleto de tipos estranhos, entre clientes e funcionários. Numa noite, um marinheiro fugido adentra o estabelecimento e muda as relações de poder ali existentes. Essa é a trama bastante clássica de um filme que na verdade aposta no pitoresco e no kitsch, com referências que passeiam por David Lynch, Lewis Carroll e Cinema Marginal, apoiado numa direção de arte e em figurinos muito bem elaborados. Esse universo estranhamente acolhedor suscita o afeto do espectador, mas aos poucos a fórmula cansa, principalmente porque a invenção estética é acompanhada por uma estrutura narrativa tão tradicional que se torna de certa forma ingênua e pouco consonante com a proposta plástica do filme. Quando as situações curiosas se tornam banais, e aquele mundo se ancora, o filme vacila um tanto até chegar a um desfecho satisfatório.

No papel do Coelho, um dos atendentes do bar, Rafael Martins tem a mais nuançada atuação, fundada num viés não naturalista que reflete o jogo cênico, com um ritmo de fala leporino, em pequenos saltos apressados, sendo seu monólogo final para a patroa o momento mais emocionante do filme.

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19/01

O segundo dia da Mostra de Tiradentes teve uma agenda bastante centrada na presença de sua homenageada, Grace Passô, que participou de duas mesas pela manhã, uma explorando a amplitude de seu trabalho no teatro e no cinema e outra, dedicada a debater seu primeiro trabalho como realizadora, "Vaga carne", exibido na noite de abertura. Nesta última, a intervenção de uma mulher de 66 anos presente na plateia foi talvez o momento mais emocionante. Professora e escritora, Maria do Carmo contou da sua comoção ao perceber que o festival homenagearia uma mulher negra como ela, e exaltou o trabalho de Passô. “Eu tinha que estar aqui”, declarou, frase logo repetida e destacada pela homenageada.

À noite, a Mostra Homenagem exibiu "Temporada", longa de André Novais Oliveira que venceu o Festival de Brasília de 2018, no qual Passô também foi agraciada com o Candango de melhor atriz. O longa trata das transformações na vida de Juliana, que acaba de se mudar do interior de Minas Gerais para Contagem, a fim de trabalhar no departamento de controle de endemias na região. Os muitos encontros experimentados pela personagem, que tenta navegar a nova cidade e se ajustar à rotina enquanto aguarda o marido, que prometeu se juntar a ela em breve, surgem como pequenos eventos que projetam grandes rotas de transformação pessoal. O filme mineiro foi bastante bem recebido pelo público local, que respondeu bem ao fino equilíbrio entre humor e drama, reagindo aos diálogos inusitados e engraçados com sonoras gargalhadas.

Para concluir um dia de intensas atividades, Grace Passô apresentou no Sesc Cine-Lounge a performance Grão da Imagem, em que leu descrições sucintas e algo inesperadas de filmes famosos, acompanhadas por efeitos produzidos pelo músico e artista sonoro Barulhista, num texto que parecia ter sido composto justamente para o ambiente da mostra, que ele fez ressoar de forma interessante.

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18/01 – Noite de abertura

A 22ª Mostra de Tiradentes teve início com homenagem à atriz, dramaturga e diretora de teatro Grace Passô, culminando na apresentação de seu primeiro trabalho como realizadora de cinema, o média-metragem Vaga carne, que dirigiu ao lado de Ricardo Alves Jr. e se baseia na premiada peça homônima de sua autoria. A obra, que trata da jornada de uma voz descarnada que ocupa o corpo de uma mulher, tem caráter experimental e se liga à temática da mostra deste ano, intitulada Corpos Adiante, abordando a relação entre o corpo humano e os objetos do mundo, em especial o lugar dos corpos femininos e negros nesse contexto.

O filme, no entanto, tem dificuldades em alçar seu ousado voo, apesar do trabalho extraordinário de Passô como atriz principal, calcado em modulações de voz altamente complexas e num domínio imenso dos menores movimentos. A questão está na parca exploração dos elementos propriamente cinematográficos que colocariam a obra para além de uma experiência, mesmo que interessante, de teatro filmado, cujo efeito principal é deixar o espectador intrigado para assistir à montagem e consciente de que provavelmente ali sim sentirá melhor o impacto do texto.

Do ponto de vista do som, já que se trata de um enredo sobre uma voz que percorre o mundo e se apropria de corpos que cruzam seu caminho, essa lacuna se faz ainda maior, uma vez que o texto parece naturalmente se encaminhar para um desenho de som um pouco mais inovador, o que não acontece aqui, à exceção de alguns muito breves momentos.

Além disso, a noite contou com performances e reiterados discursos sobre a importância do evento e das políticas de apoio à cultura e, principalmente, ao setor do audiovisual, que parecem em risco nos últimos tempos. Nesse cenário, a participação vivaz do público se revela, logo num primeiro momento, o tom da mostra, que dá à cidade um colorido bastante acolhedor.

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