Esse texto começa com uma mea culpa: nunca dei bola suficientemente para o diretor grego Yorgos Lanthimos a ponto de ter visto seus filmes. Cheguei a tentar assistir a “O Lagosta” na TV a cabo, mas me desinteressei e mudei de canal antes de chegar ao fim. Perdi ali a curiosidade por sua obra, sobre a qual já tinha lido comentários de amor e ódio.
“A Favorita” muda tudo. Se não tivesse saído de férias logo após ver o filme pela segunda vez, já teria assistido a “Dentes caninos”, “Alpes”, “O sacrifício do cervo sagrado” e dado uma nova chance a “O Lagosta”. Como não foi possível, escrevo sobre “A Favorita” sem conhecer a obra do diretor, o que considero uma lacuna grave. Mas não tenho como adiar mais os comentários sobre o melhor filme que vi em 2019 até agora.
O fato é que, enquanto assistia a essa caprichada produção de época ambientada na corte inglesa do século XVIII, fiquei imaginando o tempo todo como Stanley Kubrick teria orgulho de assiná-la, como uma espécie de reatualização de sua obra-prima “Barry Lyndon”. Em 1975, quando adaptou o romance de William Thackeray, Kubrick estava mais interessado no personagem principal do que no contexto histórico. Ele percebeu que podia ir a fundo na recriação daquele universo sem detalhar as sucessivas guerras e episódios políticos como fazia o livro. Bastava centrar sua atenção no fascinante personagem movido pela ambição, que contava com a ajuda do acaso para ascender socialmente num mundo de aparências.
Há muito de Raymond Barry no cinismo e no jogo de interesses e manipulação que movem as personagens de Emma Stone e Rachel Weisz em “A Favorita”. A rainha Anne vivida por Olivia Colman completa com perfeição o triângulo que nos apresenta os bastidores de um poder caótico, assombrado pelo sofrimento da rainha com as dores da gota e da perda dos 17 filhos (“substituídos” por 17 coelhos), sem a menor ideia de que decisões tomar em meio a uma guerra contra a França. A insistência no uso de lentes grandes angulares me pareceu menos um cacoete estilístico do diretor do que uma maneira de nos apresentar uma visão de mundo distorcida, tal qual Kubrick fazia em “Laranja Mecânica” pelos olhos do narrador/protagonista Alex.
As referências a “Barry Lyndon” estão explícitas no uso da iluminação natural à luz de velas pelo diretor de fotografia Robbie Ryan, no mesmo caminho da que deu o Oscar a John Alcott pelo filme de Kubrick, só que aqui realçando não apenas a beleza dos corredores palacianos como dando, ao lado dos ruídos minimalistas da trilha sonora, um toque sombrio à atmosfera tragicômica da trama. O roteiro original de Deborah Davis e Tony McNamara nos brinda com diálogos deliciosamente mordazes, ao mesmo tempo em que a direção de Lanthimos compreende a importância de se destacar os aspectos surreais que enfatizam o colapso físico e mental de uma rainha completamente desconectada da realidade de seu reinado. Sarah (Weisz) e Abigail (Stone) também são personagens complexos que nos remetem aos grandes duelos femininos que o cinema hollywoodiano apresentou desde “A Malvada”. E, para isso, é preciso contar com atrizes magníficas como o trio que faz valer cada minuto de “A Favorita”.