Os Amantes Constantes nos atira de chofre na Paris de 1968. Sem prólogos nem rodeios, precisamos achar nosso caminho num lugar/tempo em que a juventude era o oposto da atual. Em vez do culto à celebridade, almejava-se a vida no anonimato (“um pintor de paredes é o verdadeiro pintor”). A revolução era um sonho a ser alcançado mediante algumas pedradas e coquetéis molotov nas ruas, desde que os rapazes conseguissem escapar à convocação para o serviço militar. O amor, o ópio e a poesia eram ingredientes fundamentais para a travessia a um mundo fervorosamente idealizado.
Philippe Garrel era um enfant terrible de 20 anos em 1968. Filmava um curta, Le Révélateur, constante dos anais da vanguarda francesa da época. Julgava-se um poeta de imagens, análogo ao poeta François, vivido aqui por seu filho Louis Garrel. Para realçar o sentido autobiográfico, ele criou uma cena em que Louis conversa com o avô, Maurice Garrel, e a mãe, Brigitte Sy.
Não satisfeito em integrar a vida à obra, o cineasta arrasta também o cinema consigo. A Nouvelle Vague, principalmente, faz-se lembrar pela decupagem precipitada e a pontuação musical de Godard, ou pelo romantismo dolorido de Truffaut. Em certos momentos, parece que Antoine Doinel vai sair de alguma porta e caminhar célere pela calçada com um jornal do dia na mão. Há também elementos evocativos de Jacques Rivette (A Bela Intrigante), Robert Bresson e explícitas piscadelas para Bertolucci, como a menção a Antes da Revolução e os paralelos com Os Sonhadores, protagonizado pelo mesmo Louis Garrel.
Os Amantes Constantes (melhor direção em Veneza 2005 e César de melhor fotografia e melhor ator-promessa) foi eleito por parte da crítica como uma antítese mais bem-sucedida de Os Sonhadores. A Cahiers du Cinéma não encontrou em Garrel o desejo de épater le bourgeois que apontara em Bertolucci. De fato, Garrel é casto a mais não poder na encenação das festas e amores de seus revolucionários. O romance entre François e Lilie (Clotilde Hesme) é um exemplo de respeito, sinceridade e ocultação do sexo. A paixão mais eloqüente que se vê na tela é a da câmera por Clotilde, maravilhosa atriz que justifica cada minuto de closes intensos.
Mas é injusto opor experiências tão distintas, apesar do cenário histórico e existencial comum. Bertolucci pretendia abrir uma janela para realidade simultânea à revolta das ruas, onde jovens “alienados” confinavam-se no culto ao hedonismo e ao cinema. Era o outro lado do chavão do militante das barricadas. Garrel segue outro caminho, menos realista. Quando a luta pega fogo, ele não a reconstitui, mas a teatraliza. O mês de maio é condensado numa única noite, aparentemente filmada em estúdio, em longos planos fixos acrescidos dos sons de tiros, sirenes, gritos, motores de carros etc. Uma dimensão onírica se apresenta com atores vestidos à moda da Revolução Francesa, como a evocar um “sonho de revolução”.
Depois que a lei e a ordem voltam a se impor, e os meninos voltam para casa cheios de histórias para contar aos familiares, aí então restam o amor, a droga e a arte como novas fronteiras de uma revolução agora íntima. Mas o que acontece de verdade é apenas um deslizamento no vazio, uma derrota sublimada. Roubar livros e bijuterias vira um sucedâneo barato do ato revolucionário. Como o “dross” vagabundo que sobra no cachimbo depois que se fuma o ópio, a borra de ilusão dos personagens é consumida sem maior entusiasmo.
No terceiro ato, mesmo esses signos da revolução pessoal acabam por fracassar. As saídas se afunilam até não haver mais saída. É tempo de exílio, loucura, separação e morte. Garrel é um trágico que só vê salvação no plano do sonho. Será mais revolucionário que Bertolucci? Tenho cá minhas dúvidas.
De outras coisas, porém, não restam dúvidas. Os Amantes Constantes é um filme de exceção de um cineasta de exceção. Este é o primeiro dos vinte e poucos filmes de Garrel a ser lançado no Brasil. Boa oportunidade para conhecer um doce radical, que sabe combinar o intimismo mais envolvente com o artificialismo mais desconcertante. O filme revela um minucioso diretor de atores e um estilista dedicado ao lirismo das imagens. Boa parte do encanto vem da fotografia de William Lubtchansky, em preto-e-branco altamente contrastado, que lembra mais os filmes do leste europeu dos anos 1960 do que propriamente a Nouvelle Vague.
Mas nem a poética de Garrel, nem a luz de Lubtchansky, nem mesmo o carisma dos atores justifica três horas de duração. Por mais que se baseie no tempo psicológico, o filme ganharia em beleza se perdesse algumas reiterações e alongamentos um tanto narcísicos. Para o espectador brasileiro não familiarizado com o idioma francês, a experiência ganha uma circunstância agravante nas péssimas legendas brancas sobre fundo branco. OK, se em 1968 era assim, a distribuidora Imovision acaba de lançar as nossas primeiras “legendas de época”.
Leia aqui carta do crítico Marcos Ribas de Faria.
OS AMANTES CONSTANTES (LES AMANTS RÉGULIERS)
França, 2005
Direção e roteiro: PHILIPPE GARREL
Fotografia: WILLIAM LUBTCHANSKY
Montagem: FRANÇOISE COLLIN, PHILIPPE GARREL
Música: JEAN-CLAUDE VANNIER, NICO, PHILIPPE QUILICHINI
Desenho de produção: NIKOS MELETOPOULOS, MATHIEU MENUT
Elenco: LOUIS GARREL, CLOTILDE HESME, JULIEN LUCAS, ERIC RULLIAT, NICOLAS BRIDET, MATHIEU GENET
Duração: 182 minutos