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RESISTÊNCIA EM PARIS

03.05.2019
Por João de Oliveira
Festival de Cinema Brasileiro apresentou filmes sobre a ditadura

O Festival de Cinema Brasileiro de Paris de 2019 apresentou cinco filmes sobre a ditadura. Apesar de cada um possuir um ponto de vista diferente, todos se baseavam no dever de memória negado pelo Estado brasileiro. Seguem as análises críticas:



Codinome Clemente

Codinome Clemente, de Isa Albuquerque, conta a história a partir do ponto de vista de um resistente. Trata-se do guerrilheiro Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, o terceiro comandante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) após o assassinato de Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo.

A pedido de Marighella, Clemente alistou-se no Exército e pediu para servir no Forte de Copacabana, no qual havia um treinamento intensivo de combate às guerrilhas. Soldado aplicado, saiu do Exército direto para o Grupo Tático Armado (GTA) da ALN, com o qual participou de dezenas de ações armadas. Além de brilhante comandante, Clemente, que assumiu o posto aos 21 anos, jamais foi capturado pela ditadura. Ele conseguiu fugir ao cerco inexorável dos militares e se exilar na Europa. O filme não explica como ele conseguiu tal proeza.

Clemente, que foi um dos últimos brasileiros a ser anistiado, possui uma postura muito interessante de enfrentamento, de assumir, sem subterfúgios e sem arrependimentos, tudo o que fez durante o período em que comandou a ALN. Sua intenção, com essa forma de agir e pensar, é tentar fazer com que os militares ajam da mesma forma, assumindo tudo o que fizeram, incluindo o assassinato dos que estão até hoje desaparecidos e indicando, se possível, o paradeiro de seus corpos. Essa seria a única maneira de permitir às famílias desses desaparecidos realizarem seus lutos e, talvez, enterrarem definitivamente o passado. O luto é um traumatismo que precisa ser vivenciado para ser superado. Sem essa etapa, o traumatismo sobre-existe, para muitos, em estado de eterna latência.

O filme de Isa de Albuquerque parece encarnar esse desejo de sinceridade total, sem mea-culpa, de seu personagem. Clemente aparece como um comandante frio e pragmático, disposto a tudo para combater a ditadura e manter a integridade de sua organização. Para melhor sublinhar a brutalidade de algumas ações de Clemente e dos membros da ditadura, a diretora usa e abusa de uma estética de mangá (as violentas histórias em quadrinhos japonesas) que acaba transformando as ações de Clemente em verdadeiros atos de violência, dando-lhes uma falsa impressão de gratuidade.

Para melhor personalizar os fatos representados, o contexto político da época aparece quase que em segundo plano (aprendemos mais sobre seus atos do que sobre a sua história pessoal e a perseguição sofrida pelo regime), o que impede um espectador ignorante da história daquele período de ver Clemente como um valente combatente de um dos lados de uma guerra sangrenta, brutal e desigual. Para esses espectadores, é difícil perceber Clemente como um membro dos que lutavam pelo retorno da democracia e contra a violência dos que impuseram a ditadura, como alguém que usou a violência não como ação, mas como reação a uma violência ainda maior da parte do Estado.

Os últimos planos do filme, que ficariam muito bem nos extras de um DVD, reforçam essa possibilidade de um relato na primeira pessoa. O que poderia servir para humanizar o personagem acaba criando uma separação, uma espécie de incompatibilidade, entre os fatos narrados e a instância narrativa, entre Clemente e a produção do filme. É como se a produção se desresponsabilizasse do que é contado pelo filme.



Torre das Donzelas

Seguramente o melhor filme do festival (não consegui ver Marighella, cujos ingressos se esgotaram no primeiro dia de venda), Torre das Donzelas tem um outro ponto de vista. De forma nada personalista, o filme conta a história de presas políticas que foram torturadas durante o período em que estiveram detidas no presídio Tiradentes, numa ala conhecida como Torre das Donzelas. Embora elas não gostem do termo, o ponto de vista aqui é o das vítimas de tortura do regime.

Contrariamente ao filme sobre Clemente, o de Susanna Lira parte dos depoimentos individuais para reconstituir a história coletiva do grupo e do Brasil. Nesse sentido, os primeiros planos do filme parecem uma ilustração de uma aula de Maurice Halbwachs ou de Paul Ricoeur sobre a história, a memória e o esquecimento. Cada uma das encantadoras depoentes tenta se lembrar, da maneira que pode, de como era o cotidiano naquele espaço no qual conviveram e sofreram juntas. O que importa é a experiência vivida por cada uma para reconstituir uma certa memória que o Estado brasileiro tem relegado voluntariamente ao esquecimento. Trata-se do que Ricoeur considerava como um esquecimento ideológico, na medida em que os homens do poder manipulam a memória com finalidade politica.

A diretora não busca uma reconstrução objetiva do passado, mas procura apresentá-lo a partir do ponto de vista das depoentes. E isso fica claro nas tentativas pouco sucedidas de tentar desenhar a tal torre e no esboço de escada criada pela produção. As lembranças não são precisas nem convergentes, mas isso não tem a menor importância. O que conta é a experiência compartilhada por um grupo como um primeiro passo para uma memória coletiva.

A fim de reforçar a importância da história coletiva, a diretora omite os nomes das depoentes e dos grupos aos quais elas pertenciam. O que importa é a memória delas enquanto indivíduos que faziam parte de um todo e, mais que tudo, as lembranças dos momentos em que viveram juntas. Elas falam pouco sobre a tortura e suas vidas pessoais. Nem elas nem a diretora parecem muito interessadas por uma certa prática da história ou pela objetividade de seus relatos, mas pela vida em comunidade no interior das celas e pela amizade e solidariedade que as impediram de vergar sob o peso da dor causada pela tortura, pela prisão e pela distância de seus familiares. A tortura não visa apenas à obtenção das informações necessárias. Ela busca humilhar o torturado, estilhaçar a sua autoestima, destruir a sua identidade e a noção de pertencimento através da denúncia. Todavia, como afirma Dilma Rousseff, a tortura não as venceu por causa dos laços de solidariedade que elas teceram entre elas. Elas continuaram a existir e a resistir. Além dos escritores engajados que liam, uma das provas de que continuavam vivas e com a consciência crítica e estética afiada é o relato do desfile de moda. Por mais ambíguo que possa parecer, o desfile revela como elas conseguiram escarnecer do sistema e de símbolos da sociedade burguesa no interior da própria prisão. A tortura não logrou desumanizá-las.

A parte ficcional do filme, algo sempre muito problemático nos documentários que utilizam esse procedimento (na medida em que essas intrusões acabam, na maioria das vezes, atrapalhando ou, no melhor dos casos, suspendendo a narrativa histórica) funciona muito bem. As imagens do passado, ligeiramente desfocadas, funcionam como imagens mentais imprecisas das personagens. Não importa o detalhe, mas a experiência vivida. Um filme belo e muito emocionante.



Pastor Claudio

Pastor Cláudio (foto), de Beth Formaginni, apresenta o ponto de vista de um delegado que assassinava e incinerava opositores ao regime ditatorial. Claudio Guerra, que virou pastor evangélico, narra com uma voz monocórdica e uma frieza impressionante os crimes dos quais participou.

Trata-se de um filme de dispositivo. O psicólogo Eduardo Passos entrevista em único dia (em algumas horas talvez) o pastor assassino para tentar obter dele informações sobre os crimes cometidos. Apesar de ter às mãos uma folha contendo, muito provavelmente, alguns pontos e/ou questões relevantes sobre a história do entrevistado, o psicólogo interage na base do improviso, de acordo com o que lhe é dito. O resultado é pífio, pois o entrevistador acaba insistindo em alguns pontos insignificantes e deixando passar outros mais importantes. A existência de um ponto eletrônico talvez tivesse ajudado a enriquecer o diálogo entre os dois e a descobrir mais coisas, pois o entrevistado, que já publicou um livro sobre o assunto, parece disposto a contar a maior parte do que sabe. Todavia, isso não nos impede de obter alguns esclarecimentos sobre os assassinatos de Zuzu Angel, Alexandre von Baumgarten e sobre o atentado do Rio Centro, que, se tivesse se concretizado, talvez essa resenha não existisse.

Apesar de manter o tempo inteiro uma bíblia em suas mãos e afirmar ter mudado de vida, o pastor não parece se arrepender muito do que fez, pois se via como um soldado obediente, como um empregado exemplar que cumpria as ordens que recebia. Nisso ele não se diferencia muito de um Eichmann e do que Hannah Arendt chamou de a banalidade do mal.

Achei bem interessante a ideia de manter o tempo inteiro projetadas em seu corpo as imagens dos crimes cometidos e comentados pelo lobo que hoje diz ter se transformado em cordeiro. Que tenha mudado ou não, ele carregará eternamente em sua consciência as marcas dos crimes que cometeu. O filme vale como documento.



Deslembro

Uma outra obra muito interessante sobre a ditadura é Deslembro, de Flávia Castro. O filme parece a sequência ou a ficcionalização de seu ótimo documentário Diário de uma Busca. O ponto de vista é o das vítimas indiretas da ditadura, ou seja, das crianças filhas de militantes que lutavam pelo retorno da democracia.

Com a aprovação da Lei da Anistia, a família da adolescente Joana (a excelente atriz Jeanne Boudier), exilada na França, decide voltar ao Brasil, país no qual seu pai desapareceu na luta contra o regime ditatorial e para o qual ela não gostaria de regressar.

Deslembro parece criticar o engajamento de pais que sacrificam a família em prol da luta revolucionária. E a família recomposta de Joana é o exemplo perfeito dessa fragmentação e abdicação do núcleo familiar em favor da resistência. Sua mãe, viúva de um militante brasileiro, tem um filho com um marido chileno, que é membro ativo do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria chileno) e tem um filho com uma chilena envolvida na luta contra a ditadura de Pinochet. Joana, assim como as duas outras crianças, padecem da ausência ou da pouca presença de seus progenitores.

O filme encarna e invoca também o desejo de memória que o Estado brasileiro nega, ao não punir os culpados e exigir deles que revelem tudo que sabem sobre os desaparecidos. Sem a presença dos corpos, as famílias não podem superar seus traumas e realizar seus lutos. E a ausência do corpo provoca alguns problemas esdrúxulos e patéticos. Como os menores brasileiros precisam da assinatura dos dois pais para viajar, Joana é privada de uma viagem escolar para Ouro Preto porque seu pai não pode assinar seu documento de viagem. Como desaparecido não é morto, eles não podem obter um atestado de óbito.

Joana talvez quisesse deslembrar-se de seu passado, mas para que isso fosse possível seria preciso conhecê-lo melhor para sepultá-lo de vez. Mas a falta de coragem do Estado não permite que isso seja possível. É o que Ricoeur chama de memória impedida, que precisa de um trabalho de luto que passa pela reconciliação ou abandono voluntário do objeto perdido para que haja transição para uma memória apaziguada. As suas lembranças do passado aparecem ligeiramente fora de foco, como desfocada e imprecisa ainda é a história brasileira desse período; seu pai aparece sempre de forma fragmentada (ela vê apenas partes de seu corpo), como fragmentados eram os corpos dos torturados, como fragmentados são a sua memória (por falta de maiores esclarecimentos) e o seu luto (por falta de um corpo para enterrar), ainda que aqui esse fracionamento se refira talvez ao fato de que o pai nunca estivesse inteiramente com ela, dividido que estava entre a família e a resistência à tirania.



A Última Abolição

Um outro filme muito interessante é o documentário A Ultima Abolição, de Alice Gomes, no qual brilhantes professores negros analisam a problemática libertação dos escravos e os problemas dela decorrentes. Em razão da juventude da maioria desses professores, é possível deduzir que eles talvez sejam os primeiros frutos do tão criticado (pelas elites) sistema de cotas para negros nas universidades. O sistema de cotas pode não resolver o problema em sua raiz, mas possui efeitos muitos mais imediatos do que aqueles advindos de reformas estruturais que não devem, no entanto, ser abandonadas ou esquecidas. Cotas e reformas de bases devem caminhar juntas.

Mesmo que isso não comprometa o filme, lamento apenas a falta de testemunho das pessoas das favelas que são as verdadeiras vítimas de um pernicioso processo de libertação que foi elaborado sem jamais aventar a possibilidade de inserção social dos ex-cativos. Da noite para o dia, eles foram arremessados na rua sem nenhuma formação, proteção, amparo ou preparação emocional e psicológica para o que vivenciariam. Despreparados e vítimas de racismo, eles ainda tiveram que disputar um lugar no mercado de trabalho com trabalhadores europeus muito mais preparados, que começavam a chegar em massa ao país para tentar, na prática, a experiência do branqueamento da população negra defendida por Arthur Gobineau (um representante do governo francês e amigo do imperador), que é considerado por muitos como o primeiro teórico do racismo. Um dos professores depoentes chega a afirmar, em forma de provocação, que a situação dos escravos talvez fosse melhor do que a dos pobres atuais na medida em que eles tinham um proprietário que os defendia dos abusos da polícia. Os proprietários de escravos achavam que a punição de seus negros, de suas mercadorias, era uma prerrogativa única e exclusivamente deles. Hoje, totalmente desamparados, os moradores de favelas vivem entre a violência do banditismo e a do Estado, que deveria protegê-los.



Querido Embaixador

Querido Embaixador, de Luiz Fernando Goulart, talvez seja o filme que melhor encarne esse ato de resistência do festival ao atual governo brasileiro. Misturando ficção e documentário, o filme retrata a história do embaixador Luiz de Souza Dantas. Resistindo ao nazismo e às determinações de não emitir vistos para pessoas de origem semitas do governo de Getúlio Vargas, então propenso à aliar-se às potências do Eixo, o embaixador emitiu cerca de 500 vistos para que judeus pudessem deixar o inferno europeu e entrar no Brasil. Apesar da boa intenção e da crítica implícita ao atual chanceler brasileiro, o filme e os atores são demasiadamente fracos, com a parte de ficção lembrando um telefilme de má qualidade.



Outros filmes

Clementina, documentário de Ana Rieper sobre a Rainha Quelé, é um filme interessante, por causa de seu personagem, mas preguiçoso em termos de pesquisa. A maior parte das imagens do filme pode ser vista no YouTube. Como Clementina de Jesus foi uma cantora negra, ex-doméstica, que cantava músicas de origens africanas e que, ainda que o filme desmitifique isso, valorizava as religiões de matriz africana, o filme também aparece como obra de resistência ao neofascismo brasileiro, que trata os negros como animais e os considera, sobretudo os que vivem nas favelas, como bandidos.

Mas o festival apresentou outras formas de resistência através dos diversos filmes exibidos. Temporada, de André Novais Oliveira, retrata a dificuldade da vida de personagens negros e periféricos; Sócrates, um filme de Alex Morato, aborda a questão do homossexualismo no seio das classes desfavorecidas; o filme Elis (de Hugo Prata) retrata a vida de uma de nossas melhores cantoras, uma mulher forte, engajada, feminista, determinada e nada recatada; pelas mesmas razões, vale citar o filme sobre Elza Soares, de Elizabete Martins Campos; o documentário sobre Franz Krajcberg, de Regina Jehá, mostra a luta de seu personagem contra a destruição da Amazônia e sua infatigável militância em defesa de nossos povos indígenas, o que é muito importante num momento em que tanto as terras de nossos índios quanto as nossas florestas correm um sério risco de serem doadas para os grandes latifundiários ; há resistência também no filme Los Silencios, de Beatriz Seigner, que representa o assassinato de membros das Farcs pelos paramilitares colombianos, grupos que inspiraram a criação das milícias brasileiras.

Apesar de todas essas formas de resistência, a principal e mais importante delas aparece nos créditos dos filmes. A maioria deles, particularmente os documentários, foi dirigida por mulheres, o que em tempos de sexismo, machismo e misoginia não é nada anódino.

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