Críticas


MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

De: MARC FORSTER
Com: WILL FERRELL, EMMA THOMPSON, DUSTIN HOFFMAN, MAGGIE GYLLENHAAL
16.01.2007
Por Marcelo Janot
VIDA ALÉM DO FILME

A fantasia de que alguma força oculta interfira no seu destino é um tema recorrente no cinema americano, de A Felicidade Não Se Compra a Feitiço do Tempo, e mais recentemente O Show de Truman, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, Quero Ser John Malkovich e Adaptação. Filmes como esses são prato cheios para interpretações de filósofos e psicanalistas, e Mais Estranho Que a Ficção não foge à regra.



Harold Crick (vivido pelo comediante Will Ferrell, bastante contido em relação ao seu habitual histrionismo) é um fiscal do imposto de renda que segue exatamente a mesma rotina chata e banal todos os dias. O que o torna diferente de outros cidadãos comuns, rendidos ao mesmo cotidiano automatizado, é que Harold é um personagem de ficção. E que de repente passa a escutar o seu cotidiano narrado pela autora (Emma Thompson) do livro que protagoniza. Ao se confrontar com a novidade e descobrir que irá morrer no fim da história, sua vida medíocre dá uma guinada, com a ajuda de um professor de letras (Dustin Hoffman).



O diretor Marc Forster já havia demonstrado sensibilidade para levar às telas histórias com um pé na realidade e outro na fábula ao dirigir o tocante Em Busca da Terra do Nunca (Finding Neverland), em que investigava a origem da história de Peter Pan a partir da biografia de seu autor, James Barrie. Aqui, a matéria-prima que lhe é oferecida pelo roteirista estreante Zach Helm é ainda mais ousada em termos de criatividade, bebendo na mesma fonte metalinguística de Charlie Kaufman, autor dos três últimos filmes citados na abertura deste texto. Supondo que o espectador embarcará na viagem proposta, sem ficar buscando explicações racionais para cada acontecimento, fica mais fácil partir para as múltiplas leituras.



Uma primeira referência que pode ser feita é ao Mito da Caverna, narrado por Platão em A República, com Harold se libertando da opressão que é o universo que a autora lhe impõe (a Caverna platônica) para encontrar a sabedoria no mundo exterior. Mais Estranho Que a Ficção rende também horas de reflexão sobre o processo de criação literária, por várias vertentes. Pode-se tomar o caminho da discussão a partir da crise da autora que não consegue encontrar a inspiração para dar seqüência à sua obra, ou então tentando entender o momento em que o personagem deixa de pertencer ao seu autor para ganhar vida própria, um clichê recorrente que se lê nas entrevistas com escritores. Sem contar a discussão ética sobre o direito de a autora decidir pela morte de um personagem que já não é tão ficcional assim.



Embora Emma Thompson tenha uma atuação densa, impecável em cada tragada aflita no cigarro, o roteiro acaba pecando por não desenvolver a contento as questões levantadas. Por esse motivo, não deixa de ser decepcionante o rumo que o filme toma em certo momento, especialmente quando Harold decide comprar uma guitarra, dar vazão ao seu amor, enfim, recuperar o tempo perdido. Soa como uma concessão que por pouco não beira a pieguice, como se Platão saísse de cena para dar lugar aos conselhos edificantes do texto de auto-ajuda Filtro Solar (Wear Sunscreen), aquele que virou sucesso narrado por Pedro Bial.



Apesar disso, Mais Estranho Que a Ficção se diferencia das diversões escapistas hollywoodianas justamente por dar pano pra manga para horas de reflexão na mesa de bar. Um raro caso em que o pós-filme acaba sendo mais saboroso do que a sessão em si.



# MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO (STRANGER THAN FICTION)

EUA, 2006

Direção: MARC FORSTER

Roteiro: ZACH HELM

Produção: LINDSAY DORAN

Fotografia: ROBERTO SCHAEFER

Edição: MATT CHESSE

Música: BRITT DANIEL, BRIAN REITZELL

Elenco: WILL FERRELL, EMMA THOMPSON, DUSTIN HOFFMAN, MAGGIE GYLLENHAAL

Duração: 113 min.

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