Críticas


MARTIN SCORSESE, O INFILTRADO

22.01.2007
Por José Joffily
MARTIN SCORSESE, O INFILTRADO

Pode ser inevitável, ou contribuir para o entendimento da obra, antes de falar de um filme, falar de quem o fez. A primeira imagem que me vem à cabeça quando penso em Scorsese é a visão de um imigrante. Antes de ser cineasta, antes de fazer filmes, Scorsese era neto de imigrantes. Não neto de quaisquer imigrantes, mas imigrantes fortemente ligados ao país de origem. Scorsese recebeu toda a influência dos seus ascendentes. E mais, depois do início da carreira, quanto mais passava o tempo, mais se dava conta de tais influencias. Em Minha Viagem à Itália faz uma retrospectiva comovente dessas influências pessoais e profissionais.



Nasceu nos Estados Unidos mas sempre foi um infiltrado em busca de suas raízes. Percebeu ao longo do tempo como o cinema italiano tinha sido importante na sua formação. No início da carreira, como seria compreensível, o desejo era o de ir para Hollywood, mas quanto mais filmava mais percebia a influência que os filmes italianos exerciam sobre ele. Aliás, sobre essas volta às origens, em uma entrevista, Almodóvar dizia que se alguém quisesse aprender cinema, talvez um psicólogo fosse mais útil do que um professor.



No belo documentário Minha viagem à Itália, Scorsese fala da descoberta dos filmes neo-realistas expressando o que se via nas ruas da Itália do pós-guerra. Por outro lado, simultaneamente também descobria e gostava dos filmes de Alessandro Blasseti, produzidos no final dos anos 30, início dos 40. Foram realizados em épocas diferentes, mas vistos por Scorsese, ao mesmo tempo, no início dos 50. Os filmes de Blasseti eram filmes diametralmente opostos aos filmes neo-realistas. Eram filmes que, ao contrário, escapavam da verdade das ruas, cultivavam a fantasia, se observados com olhar crítico contemporâneo, poderíamos dizer que eram filmes escapistas. Amante do cinema, nas suas diversas visões, Scorsese gostava dos filmes que mostravam a nova realidade das ruas depois da Segunda Guerra, mas apreciava também o mundo possível do passado da Itália, para onde podia sonhar.



Certamente que as origens influenciaram e formaram Scorsese. Influenciaram seu temperamento, moldaram sua visão de mundo e ambições profissionais. Os filmes do Scorsese me lembram os versos de um poema do cineasta Sergio Rezende, cujo título é O Caçador de Imagens e que diz assim: “o caçador de imagens é o cego de nascença que súbito, vê.”



A energia e a força das imagens do Scorsese lembram isso. Pela insistência temática me lembram alguém que, depois de anos distraído assistindo a filmes e à vida, descobre a visão e o que procura reproduzir são sempre as imagens gravadas na infância. Como se o ato de olhar para dentro de si revelasse as imagens que estavam latentes.



Em Os Infiltrados a origem é semelhante. O que a diferencia é que ela é uma recuperação de uma gramática copiada por terceiros. A versão original fabricada em Hong Kong, Infernal Affairs, é, certamente, no mínimo inspirada em Scorsese. Assim, quando ele filma Os Infiltrados, não faz mais do que recuperar o que é seu.



Numa entrevista ao jornalista e realizador Laurent Tirard, em 1997, Scorsese reitera que o mínimo exigido de todo diretor de filmes é saber do que está falando. No mínimo, todo diretor de filmes deve conhecer os sentimentos e as emoções que tenta comunicar ao público.



No mínimo, Scorsese faz o dever de casa, pois ele sabe muito bem do que está falando, pois é ele o verdadeiro infiltrado. Senão vejamos: admitido na sociedade americana pela certidão de nascimento e no concorrido mundo do cinema pela competência profissional, Scorsese, na qualidade de infiltrado, faz uma radiografia de dentro para fora, revelando nas telas a sociedade americana e a vida dos imigrantes que absorvem a lição e a importância de ser um vencedor na América, independentemente dos métodos utilizados para se chegar a isso.



Sendo isso tudo verdade, também pode-se acreditar que a primeira frase de Os Bons Companheiros é rigorosamente autobiográfica. Quando a voz off anuncia logo de início: “Desde criança, sempre quis ser gângster”, pode-se pensar em evocações de Scorsese. Certamente a atração deve ter sido grande, mas a vocação para o cinema foi mais forte e sublimou sonhos e imagens da infância.



Repare-se também que, sem exceção, todos os personagens dos seus filmes são imigrantes ou vêm do gueto e são assassinos, mentirosos, traidores, mal-caráter ou no mínimo grosseirões. Os personagens de Os Bons Companheiros e Casino, sem dúvida, são assim. O De Niro de Caminhos Perigosos também é um grosseirão e o Harvey Keitel idem. Mesmo os protagonistas de seus dois grandes filmes, Touro Indomável e Táxi Driver são assim. Tanto o Jack la Mota quando o motorista são personagens no mínimo prepotentes e estúpidos. Paul Schrader, roteirista de Táxi driver, que também levantou os recursos para a produção, sabia o que estava fazendo quando convidou Scorsese para dirigir o filme.



Uma última curiosidade é que Scorsese, outrora resistente à Hollywood, já aprendeu a cartilha: no desfecho de Os Infiltrados, bandido é castigado, ao contrário da versão inspiradora Infernal Affairs, onde o vilão permanece vivo e vitorioso.



JOSÉ JOFFILYé cineasta, diretor de “Achados e Perdidos”, “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, “Quem Matou Pixote?”, entre outros.

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