Críticas


PARASITA

De: JOON-HO BONG
Com: KANG-HO SONG, WOO-SIK CHOI, PARK SO-DAM
07.11.2019
Por Luiz Fernando Gallego
O roteiro não é exemplar apenas formalmente: sua ficção dá conta de assuntos sociais sérios com humor inicial.

Exemplo de roteiro construído com perfeição, Parasita, o mais recente filme de Joon-ho Bong, Palma de Ouro em Cannes 2019, começa com o enquadramento de pequenas janelas ao rés do chão de uma rua. Em uma passagem bem mais adiante veremos que neva lá fora. Pode ser - ou talvez não - uma alusão à cena em que a família de Rocco e seus irmãos vê neve pela primeira vez em Milão. O que importa é que a família Kim também é um grupamento unido numa situação social bem ruim. Segundo o filho, os pais “só não querem trabalhar”. Mas em outro momento há menção a muitos desempregados na Coreia do Sul.

O fato é que pessoas como o pai, a mãe, o filho e a filha da família Kim usarão de quaisquer meios visando uma atividade remunerada: poderão usar de trambiques, falsidades, mentiras e não demonstrarão nenhuma consideração por gente na mesma situação que eles.

Paralelamente também veremos gente rica, bem cuidada e cheirosa. Gentis. São gentis porque são ricos? (Bem, isso não corresponde à verdade no Brasil em que muitos ricos... bem...não vem ao caso) A mãe da família Kim acha que a riqueza propicia o comportamento gentil por parte dos mais aquinhoados. É mais fácil ser gentil se não se precisa fazer qualquer coisa para ter dinheiro - é o que ela sugere.

Também surge um acentuado grau de ingenuidade na família rica mais enfocada, a família Park, especialmente no comportamento da senhora Park - o que favorece momentos de farsa na devastadora crítica social que o filme levanta. Sem discurso proselitista, o roteiro dá uma aula de como abordar com humor temas espinhosos na esfera social. O humor vai evoluir para ironia e até mesmo sarcasmo, chegando às raias do humor negro – quando já não se trata mais de humor, mas de drama com toques trágicos.

A qualidade do roteiro não é só formal, mas também no modo de desenvolver uma ficção que dê conta de assuntos sérios de modo tal que alguns exageros ou pequenas inverossimilhanças não incomodem o espectador mais racional que não se deixe envolver totalmente pelas situações em clima de quase-suspense. Mas não é fácil ficar sem se envolver, tal a habilidade do desenvolvimento da história com ajuda de desempenhos irretocáveis para os tipos criados, ainda que eventualmente com traços caricaturais – mas como resistir a uma governanta imitando Kim Jong-um, da estirpe ditatorial da Coreia do Norte?

A arquitetura brilhante da construção fílmica corresponde à arquitetura das casas: a pobre (miserável) e a rica, anunciada como tendo sido construída por um grande arquiteto que a idealizou para sua moradia inicialmente. Neste caso, não se trata apenas de beleza e de estética: os espaços são utilizados com maestria pela câmera que aproveita a amplitude do interior e do exterior dos cenários opulentos. Mas também os espaços inferiores (e há mais de um), tal como o da decrépita moradia da família Kim, são bem cenografados e filmados. Há uma cena de chuva forte e não há como não associarmos com as desgraças cariocas (ou brasileiras) dos ambientes paupérrimos expostos às intempéries.

O “alto” e o “baixo” são demonstrados por imagens de escadas que ligam (ou separam) duas partes da cidade e também na demonstração de como são os lares de um bairro e do outro. Espaços claustrofóbicos também contrastam com outros, bem amplos, servindo ao modo de comentar disparidades sociais sem didatismo, mas com originalidade  e criatividade.

A riqueza sensorial do filme não se destaca apenas no aspecto visual e sonoro (trilha musical bem escolhida recorrendo a trechos de ópera de Handel como grife de elitismo e bom gosto), havendo alusão a paladares nas comidas, bolos etc e também ao olfato, fundamental para assinalar outro aspecto que separa os mais favorecidos dos demais.

Um dos melhores filmes lançados no Rio este ano.

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