MADRE, de Rodrigo Sorogoyen
por Maria Caú
Um dos prazeres que o crítico de cinema acaba perdendo por conta de seu ofício e tenta em vão recuperar é o prazer de assistir a um filme sem saber qualquer informação técnica sobre ele, o histórico de seus realizadores ou as impressões que ele já causou internacionalmente, como prêmios ou reações. Ainda que tentemos com afinco voltar a esse estado de tábula rasa, é parte do nosso trabalho nos mantermos informados sobre assuntos e temas que não o permitem. Por isso é tão interessante, de vez em quando, em geral no espaço de um festival ou de uma curadoria, encontrar um filme do qual se sabe muito pouco e se deixar surpreender inteiramente, uma experiência tão comum para o público e cada vez mais inacessível para nós. Pois Madre, coprodução de Espanha e França, me deu essa alegria. O filme se baseia, soube depois, no curta-metragem homônimo, e segue a trajetória da espanhola Elena (uma comovente e contida Marta Nieto), que passa por um trauma incalculável ao atender a ligação do filho de seis anos, deixado sozinho numa praia francesa pelo pai. Perdido e sem saber para onde ir, o menino pede a orientação da mãe, que tem pouquíssimos recursos para ajudá-lo nessa situação de pesadelo. Após o sumiço da criança neste episódio, Elena segue vivendo nas cercanias de seu desaparecimento, e por dez anos busca o paradeiro do filho ou estar de alguma forma próxima a ele. É nesse contexto que conhece um adolescente de idade semelhante à do filho com o qual desenvolve uma relação que caminha na área cinza entre a amizade maternal e o desejo sexual/amoroso.
O filme, obviamente, trata de uma questão polêmica, e as reações do público deixam claro o incômodo dessa escolha, mas o faz a partir de uma bela construção psicológica da personagem central, de forma que os motivos profundos de suas (más) escolhas são inteiramente acessíveis ao espectador, que se vê totalmente investido no drama de Elena. Esse investimento é aprofundado por uma fotografia precisa, que se funda em planos longos, a começar por um plano-sequência compassado, que segue num crescendo que tira o fôlego do público. Os planos-sequência, mesmo aqueles muito abertos, que retratam as cercanias da praia em que Elena vive, vão aos poucos enclausurando os personagens, se aproximando deles como se os sentenciassem, os confinassem ali mesmo, nesses ambientes de aparente liberdade e tranquilidade. Como se falassem sobre a impossibilidade de reverter o passado e as decisões já tomadas.
O roteiro é belamente construído, e o desfecho muito adequado, com uma inteligente cena espelhando a sequência de abertura, a um só tempo surpreendente e precisa. Um belo e inesperado encontro para um espectador desavisado.
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O QUE ELA DISSE – AS CRÍTICAS DE PAULINE KAEL, de Rob Garver
por Maria Caú
Pauline Kael foi a primeira mulher norte-americana crítica de cinema a de fato fazer um grande nome para si, tendo escrito na prestigiosa revista The New Yorker entre 1968 e 1991. Conhecida por seu estilo único, um tanto agressivo e irônico, suas opiniões polêmicas, frequentemente na contracorrente do consenso geral, e pela maneira apaixonada com que exercia o ofício, seus textos tiveram um impacto cultural bastante amplo. Ela alçou cineastas ao estrelado, e provocou ira e controvérsia em diversas ocasiões. Seu legado é imenso para a crítica de cinema, cada vez menos respeitada enquanto articuladora de um debate entre os realizadores e o público. E é este legado que o documentário protocolar de Rob Garver não consegue delinear.
Baseado em depoimentos e imagens de arquivo, o filme não consegue capturar nem a personalidade, nem o processo criativo, nem a trajetória de Kael. Tudo parece meio flutuante, embora haja diversos trechos ótimos de entrevistas e textos (muitas vezes belamente entrecortados por imagens dos filmes analisados), que revelam o vigoroso estilo de escrita de Kael. O grande problema são as entrevistas: redundantes, pouco inspiradas, mesmo porque os entrevistados parecem ou mal escolhidos (é difícil compreender a necessidade dos cineastas de recorrem a Tarantino como se ele fosse um historiador do cinema para falar e falar em obras que passariam melhor sem suas exibições de narcisismo) ou obscuros para o público (seria muito melhor se as relações desses personagens com a crítica fossem melhor traçadas). Também a opção de recorrer à atriz Sarah Jessica Parker para ler excertos das obras da biografada parece deslocada: sua voz não imprime as mesmas qualidades da voz de Kael, que os espectadores ouvem em diversas entrevistas ao longo do filme.
O que ela disse não demonstra a mesma coragem que marcou a carreira de Kael, que não temia nem as ameaças de morte que recebia. Não trata da importância da sua figura enquanto uma mulher num ambiente masculino, mãe solteira e que sofria com o machismo do meio – e talvez por isso mesmo tenha criado uma couraça bastante dura para vestir. Por que não chamar críticas mulheres para falarem sobre sua obra? Ou cineastas mulheres? Há algumas poucas, mas elas evitam tocar no tema de forma mais detida. Além disso, em certo ponto abordam-se questões antiéticas no comportamento de Kael, como sua crueldade ou a forma como ela tentava articular outros críticos para defenderem um filme em conjunto, inclusive deixando de apoiar quem discordasse dela com certa frequência. Também nesse caso, o filme logo faz um novo desvio, sem aprofundar-se no assunto. Por fim, tem-se a sensação de um sobrevoo raso sobre uma personalidade complexa e brilhante.
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PIEDADE, de Claudio Assis, Brasil, 2019
por Dinara Guimarães
O título “Piedade”, do filme do cineasta pernambucano, Claúdio Assis, pode estar invertido. Como nos seus trabalhos anteriores, a exemplo de “Baixio das bestas” e “Amarelo Manga”, o seu cinema não é nem piedoso, nem condescendente. É sem misericórdia. Quando ele denomina, praia da Saudade, a praia de Piedade invadida pelos tubarões que devoram até hoje, o litoral pernambucano, decorrente do acidente ecológico com a construção do Porto de Suape em Pernambuco, ele dá um bote nos significantes escondidos dos segredos na tradicional família patriarcal pernambucana, em suas conexões metonímicas com o resto dos significantes correntes. Porém não se trata simplesmente da substituição do significante cordial, pronunciado pelos personagens maternos, por outro impiedoso. Ele explora a possibilidade metonímica infinita do jogo das substituições das palavras por imagens.
O tema central do filme é o esfacelamento da família comida pelos tubarões na terra com cheiro de esperma, composto da revelação da verdadeira origem do filho desaparecido, Sandro (Cauã Reymond), e da sua divergência com os filhos herdeiros - os ativistas Omar Shariff (Irandhir Santos) e Fátima (Mariana Ruggiero) - pela venda da herança da terra mãe - Fernanda Montenegro no papel de Carminha. Uma família que sobrevive à beira mar na região praieira, até a chegada de Matheus Nachtargale, no papel de Aurélio: o executivo oriundo de São Paulo, engenheiro da Petrogreen (alusão ao nosso inimigo petrolífico) e empresário da especulação imobiliária.
Por meio do que Aurélio chama de “ressarcimento e realocação para os habitantes” pela compra das terras da família, negando que na realidade, trata-se de expulsar os moradores do lugar onde se instalarão as plataformas de extração do petróleo, ele detona a todos com sua compulsão sexual anal à flor da pele, empregada na prática de usurpar o poder pela ganância do dinheiro. Ao final, ele termina como o herói vencedor no seu compromisso com o mercado sem a responsabilidade sócio ambiental, aos gritos de “vá tomar no cu”, repetitivos do cinema de protesto do diretor, em mais uma de suas visitas às zonas de abjeção e de envelhecimento na sociedade humana.
Dessa forma, Assis parte das suas observações empíricas e constrói um metacinema, em três registros: o real no corpo, o simbólico na produção de imagens, o imaginário na fantasia. Soletra as imagens no real do corpo, ao destacar o gozo enraizado como pedaços, peças avulsas. Ora são imagens espionadas nas sequências dentro do cinema pornô de Sandro que filma o bordel dos seus frequentadores a satisfazer seus próprios prazeres sexuais, ora são imagens dentro da tela do computador via skype da mãe de Aurélio (Denise Weinberg) que assombra e controla o filho ao ressoar a voz materna do passado edípico espectral, ora são imagens pelos óculos 3D do olhar alienado da nova geração pela nova tecnologia, vistas pelo neto de Dona Carminha, Ramsés (Francisco Assis), o filho de Fátima. Através dessas imagens virtuais, além do voyeurismo escondido de comer pornografia com os olhos, o diretor vai significando, com o cheiro do sexo as presas do tubarão: é tubarão-melancia, é tubarão da terra e do mar.
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OS MORTOS NÃO MORREM, de Jim Jarmusch
Por Maria Caú
Despretensioso (e que alívio é um filme despretensioso em 2019) filme de zumbi, Os mortos não morrem é um exercício de Jim Jarmusch no gênero. E se não demonstra o vigor com que Amantes eternos (no original, Only Lovers Left Alive) se propôs a atacar os filmes de vampiros, resulta interessante e divertido, com algumas passagens hilariantes. A trama nem precisa ser descrita: cidade pequena e remota, estranhos fenômenos planetários, zumbis. O diferencial é que o filme trabalha bastante bem com os tempos, seguindo o compasso da canção-título, um country ouvido e mencionado diversas vezes pelos personagens. Além disso, os diálogos, frequentemente autorreferentes e metalinguísticos, aludindo às carreiras pregressas de Jarmusch e dos protagonistas e à estrutura narrativa, são bastante inusitados, criando um calculado descompasso entre as ações e o que é dito. O elenco é não menos que fenomenal: Bill Murray, Adam Driver, Chloë Sevigny, Steve Buscemi, Tilda Swinton, Tom Waits e até Iggy Pop – e atire a primeira pedra quem não quer ver Iggy Pop na pele de um zumbi. De fato, o elenco é tão impressionante que Jarmusch se dá ao luxo de, numa cena muito engraçada, ter uma Carol Kane morta-viva dizendo repetidamente uma única palavra: chardonnay.
Além disso, é interessante perceber como Jarmusch consegue ter auto-humor e não se levar completamente a sério num mundo em que o narcisismo ferrenho parece ser o modus operandi da grande maioria dos cineastas “autorais”. Ele não teme entregar um exercício de gênero após um filme muito sutil e finamente construído como Paterson, como alguém que mostra seus rascunhos à caneta entre telas a óleo. É uma lufada de ar fresco vê-lo rascunhar. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
FAMILY ROMANCE, LTDA, de Werner Herzog
Por Marcelo Janot
Em sua edição de dezembro do ano passado, a Revista Piauí traduziu um artigo publicado em abril de 2018 na New Yorker, assinado por Elif Batuman. Era uma fascinante reportagem sobre as empresas japonesas especializadas em “alugar” integrantes de uma família, ou seja, colocar atores para se fingirem de pessoas reais, sob as mais variadas demandas. Um pai brigado com a filha que recorre a uma filha de aluguel para aplacar a saudade da original; jovens que arrumam noivos de mentira para satisfazer a cobranças de pais casamenteiros; esposa infiel que arruma um amante de mentira para pedir desculpas ao marido traído; quando li a matéria logo pensei nas inúmeras possibilidades de construir um baita filme de ficção com esse material.
Werner Herzog saiu na frente. Mas graças a um roteiro preguiçoso e a uma dramaturgia pobre, “Family Romance Ltda” ficou com cara de um filme feito às pressas. Embora seja envolvente porque o inusitado do tema prende a atenção, deixa a sensação de um tremendo desperdício de material. Ao utilizar o próprio fundador da empresa Family Romance, Yuichii Ishii, como protagonista, Herzog o coloca para representar o que ele faz no dia a dia, mas Ishii não é um grande ator e os outros com quem ele contracena também deixam a desejar. O roteiro pega uma história principal, a relação de Ishii com uma adolescente para quem ele finge ser seu pai, e a intercala com outras pequenas historietas inspiradas nas atividades da empresa. Às vezes temos a impressão, e isso parece intencional, de estarmos diante de um documentário, mas esse híbrido também não satisfaz.
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SYSTEM CRASHER, de Nora Fingscheidt
Por Luiz Fernando Gallego
Incrível estreia desta diretora em ficção de longa-metragem que vem arrebatando prêmios nos festivais: por exemplo, em Berlim levou o Urso de Prata, e em São Paulo foi Melhor Filme de cineasta estreante. No Festival do Rio está sendo exibido com legendas eletrônicas, o que sugere que ainda não tem lançamento comercial garantido no Brasil. Se isso acontecer mesmo, será lamentável.
Mas o filme pode exigir do espectador muita empatia para com a personagem central, uma menina de nove anos com fortes traços de sofrer um distúrbio de personalidade explosiva: quando se irrita (e ela se irrita por pouco), ‘Benni’ (na verdade, seu apelido masculino é escolha própria por não gostar de seu nome Bernadete), interpretada de modo avassalador pela jovem atriz Helena Zengel, é capaz de morder, chutar, agredir violentamente quem estiver por perto, seja uma criança (ou várias), seja um adulto. Ela também pode xingar, cuspir na cara dos professores, quebrar janelas para fugir e bater com a cabeça. Não admite que toquem em sua face, o que, por si só, já a leva a total descontrole.
No entanto, ela não deixa de ser uma menina de nove anos extremamente carente, ainda que só saiba revelar sua carência pelo pior dos modos: agredindo – e com isso, afasta as pessoas interessadas em cuidar dela.
A acreditar no que o filme mostra, o sistema alemão de cuidados com crianças fora de lares paternos é composto de pessoas experientes e profissionais dedicadíssimos. Volta e meia vemos a equipe composta de psiquiatra, psicólogo, assistente social e vários educadores discutindo o difícil caso de ‘Benny’. A questão é que ela já foi rejeitada por mais de trinta casas de acolhimento para menores.
O enredo do filme se desenvolve especialmente pelo conflito que se estabelece entre ela e um novo membro da equipe, um adulto de aspecto jovial, amante de Heavy Metal, de apelido ‘Micha’ (Michael) - também em ótimo desempenho de Albrecht Schuch, desconhecido por aqui, mas já colecionador de prêmios na Alemanha.
O filme não se detém muito em certos aspectos sobre possíveis origens do comportamento da menina, embora haja uma breve alusão a algum “trauma” bem precoce quando bebê. É melhor quando se detém na questão da mãe (atriz Lisa Heigmeister, também excelente). francamente incompetente para lidar com uma filha ‘especial’. Uma “mãe” temporária de ‘Benny’ (que a adora) comenta que “sempre é melhor que a criança fique com os pais verdadeiros”, o que o filme, entretanto, desmente. Como a vida de certas conjunções-desconjunções entre mães limitadas ou comprometidas emocionalmente com seus filhos nos mostra na realidade.
Há um momento em que ‘Micha’ chega a pedir para sair da equipe porque está “com fantasias de salvação” em relação a ‘Benny’ – o que mostra uma consciência de que tais atendimentos precisam de limites - ao mesmo tempo em que é preciso oferecer carinho e respeito às crianças problemáticas. Por outro lado, ele não percebe que muitas das fases “dóceis” de ‘Benny’ correspondem a uma tentativa de sedução por parte da esperta menina que quer ser “adotada” pelos seus cuidadores. Inteligente, ela percebe como esperam que ela se comporte, mas de fato ela não está tão autocontrolada: trata-se de uma atitude "para uso externo", muito mais do que uma real mudança advinda dos tantos cuidados terapêuticos, sempre frustrados.
Um filme “duro”, mas imperdível pela narrativa e edição extremamente hábeis na condução do complexo roteiro .
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E ENTÃO NÓS DANÇAMOS, de Levan Akin
Por Maria Caú
Apesar de ser a indicação sueca para o Oscar de Melhor Filme Internacional (novo nome da categoria Melhor Filme Estrangeiro), E então nós dançamos se passa inteiramente na Geórgia, e é uma produção sueco-georgiana. Esse fato em si já desperta interesse, uma vez que é raríssimo termos acesso a longas-metragens desse país, e o filme estrear em circuito no Brasil ainda em dezembro é notável. De fato, o longa se centra no cenário do balé georgiano, uma tradição cultural bastante inusitada, já que os homens parecem ter uma posição importante (inclusive com repercussões sociais) no contexto desta dança, papel que, segundo a narrativa, se liga a expectativas de força e masculinidade diametralmente opostas aos estereótipos ocidentais que circundam o universo do balé.
A trama se passa inteiramente em torno de Merab (Levan Gelbakhiani), um jovem pobre que luta para conseguir uma vaga numa prestigiosa trupe de balé georgiano, posto que traria melhores condições de vida para sua família e o permitiria viajar e expandir seus horizontes. Porém, ele terá que lutar pela colocação com os outros membros do corpo de balé da academia onde treina, em especial com um talentoso novo integrante, Irakli (Bachi Valishvili), com o qual começa a criar fortes laços que desembocam numa atração intensa, bastante repudiada pelo contexto social de ambos. A partir desse fio de trama, se desenrolam os conflitos próprios dos filmes de despertar da homossexualidade, sem grandes surpresas ou novas propostas. De fato, a sensação é a de já termos assistido a este filme antes – e algumas vezes.
A obra cresce, no entanto, quando se foca na dança, em cenas lindamente filmadas, esteticamente interessantes, e que dissecam os movimentos precisos, complexos e vigorosos dessas coreografias. Além disso, o filme se justifica em sua cena final, esta sim forte e significativa, remetendo ao belo título.
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LATE NIGHT, de Nisha Ganatra
Por Maria Caú
Emma Thompson é de fato uma atriz maior. A maneira como ela consegue dar voz às suas personagens através da forma a um só tempo precisa e surpreendente com a qual entrega suas falas é mesmerizante. Talvez o seu (bom) trabalho como roteirista explique esse cuidado na construção do universo vocal das mulheres que interpreta, não um trabalho de consolidação de um sotaque, mas sim a edificação de uma prosódia, um certo compasso da fala e da respiração. Esse exercício está muito presente em Late Night, em que Thompson interpreta Katherine Newbury, uma comediante apresentadora de um programa de entrevistas noturno que, outrora bem-sucedido, não consegue se adaptar às tendências contemporâneas desse tipo de humor. Numa tentativa de provar sua confluência com os novos tempos, ela demanda que seu assistente Brad (um ótimo Denis O'Hare) contrate uma mulher para sua sala de roteiristas, e ele escolhe Molly (Mindy Kaling), uma apaixonada por comédia sem qualquer experiência na área e que trabalhava numa indústria química. A partir daí se desenrolam os conflitos esperados entre a chefe tirana e misantropa e a iniciante esperançosa e ingênua.
Mas se as engrenagens parecem conhecidas, e o filme realmente faz diversas concessões aos clichês e conciliações desse tipo de narrativa, a interação entre as duas protagonistas, o roteiro redondo (de Kaling, ela também atriz-roteirista) e o excelente elenco (destaque para John Lithgow, sempre ótimo, aqui vulnerável e afetuoso) elevam o conjunto. O filme debate gênero, representatividade e lugar de fala desde seus primeiros minutos (quão raro é um programa de entrevistas noturno conduzido por uma mulher?), com uma série de piadas certeiras (a ideia da sala de roteiristas em que todos parecem o mesmo homem, e substituem seus parentes mortos, é hilária). E, embora ele romantize a figura da chefe abusiva – e a ligação com O diabo veste Prada é imediata -, os diálogos e as atuações (e a experiência da diretora Nisha Ganatra com o universo da televisão) criam um filme muito simpático, centrado na interação entre duas mulheres de gerações e trajetórias díspares num universo profissional masculino, explorando estratégias de sobrevivência dignas de nota.
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RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS, de Céline Sciamma
Por Luiz Fernando Gallego
O prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes deste ano para diretora e roteirista Céline Sciamma já justificaria o interesse pelo novo filme da realizadora de Tomboy (2011). Mas há muito mais para deslumbrar o espectador no mais recente filme de Sciamma. Tendo como mote a pintura de um retrato em 1760, temos um equivalente nas imagens obtidas pela cinegrafista Claire Mathon, dignas de grandes pintores, seja com tintas, seja com as luzes. Fotografia de beleza nada gratuita, impressionante tanto em interiores, à luz de velas, como em exteriores diurnos ou noturnos.
Consta que o roteiro foi escrito por Sciamma para sua ex-namorada, a atriz Adèle Haenel que faz o papel de uma jovem cuja mãe (Valeria Golino) deseja ter um retrato da filha para enviar a um possível noivo em Milão. Mas a moça se recusa a servir de modelo. A habilidade de uma pintora mulher (Noémie Merlant numa tão “forte” quanto sutil interpretação) será testada.
Elenco e equipe técnica predominantemente femininas chegam a um resultado que pode lembrar algo dos filmes de época de Jacques Rivette, o que não é pouco!
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MARTIN EDEN, de Pietro Marcello
Por Luiz Fernando Gallego
Livremente baseado em obra pouco conhecida de Jack London, o filme que levou o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza de 2019 para Luca Marinelli, desperta interesse também por uma curiosa opção de sua narrativa: há uma mistura de aspectos românticos (um pouco à moda de alguns filmes de época assinados por François Truffaut) com anacronismos tais que acabam por soar originais. Imagens de filmes antigos em preto-e-branco pontuam o enredo que trata do desenvolvimento de um marinheiro rumo à atividade de escritor.
Sem educação formal além do elementar, é o deslumbramento com a irmã de um jovem que ele socorre numa briga que o motiva para a leitura, um caminho tortuoso e cheio de decepções, ainda mais que seus textos tratam da vida dos pobres e miseráveis com quem ele convive, não sendo uma leitura “fácil” para sua época (ou em todos os tempos). Também o engajamento em ideias políticas voltadas para essa população desvalida não vai facilitar a aceitação do que produz, prejudicando também o relacionamento amoroso com a moça que ele ama e sua família rica.
Uma elipse faz com que o ator surja grisalho no quarto final da projeção (que soa mais ácido e menos satisfatório), embora Marinelli justifique – até certo ponto – o prêmio de desempenho masculino no lugar de Joaquin Phoenix (que estava na mesma mostra com sua criação avassaladora como Coringa).
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UMA MULHER ALTA (DYLDA/ BEANPOLE), de Kantemir Balagov, Rússia, 2019
por Dinara Guimarães
O filme russo, “Uma mulher alta”, dirigido por Kantemir Balagov, é sobre o trauma da guerra nas duas jovens mulheres, Iya (Viktoria Miroshnichenko) e Masha (Vasilisa Perelygina). Ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial na Rússia, onde lutaram juntas, elas são vítimas da desumanização que acompanha a devastação emocional e física das relações humanas.
Enquanto a historiografia tradicional sempre elegeu os soldados como heróis, neste filme, a história adaptada ao cinema pelo jovem diretor, de 28 anos, inspirado no livro “A guerra não tem rosto de mulher”, de Svetlana Aleksiévitch, problematiza o destino da sexualidade feminina de mulheres soviéticas que lutaram pela sobrevivência de Leningrado, em 1945, cujas conseqüências desastrosas refletem-se até hoje na atual Leningrado, a São Petersburgo.
A primeira imagem do rosto de Iya petrificado pelo horror, é ligado ao esvaziamento do afeto sofrido pelo trauma da guerra. Pois assim paralisada, ela não só repulsa o desejo sexual, como também a pulsão de vida. Porém, onde Iya histericamente opera frente a este trauma pelo esvaziamento, Masha tenta obsessivamente culminá-lo. Iya assegura-se com um vazio. Masha tenta se assegurar de que não há lugar para o vazio para refazer-se como sujeito desejante. E por meio desta polaridade nas relações afetivas e sexuais, o filme mostra a inconsistência da vida. Donde, por um lado, a escolha da eutanásia praticada por Iya, e por outro lado, a aspiração de um filho morto, no sentido de falecido, ou de Outro ausente nesta idealização, que permitisse abrigar o desejo e o gozo.