Há um cheiro incômodo no que Lourenço faz. Ele dirige uma estranha loja de compra e venda de objetos antigos. Não é bem uma loja, aliás. É um escritório. Ou melhor, uma mesa que repousa sobre o nada. É nesta mesa que Lourenço humilha os que se aproximam para lhe pedir qualquer coisa e busca os favores dos que possam lhe dar algo. É nela que ele exercita o domínio e o sadismo. E é ali que ele busca chamar a atenção de todos para um cheiro que para ele é insuportável, mas para os outros já não parece tão importante. As pessoas se acostumam com o cheiro.
Pouco conheço dos HQs de Lourenço Mutarelli. Do que vi, o ambiente de O Cheiro do Ralo parece expressar com acuidade. O que mais me atrai no filme de Heitor Dhalia, contudo, não é a simples reprodução desse clima. O filme, pelo contrário, avança em busca de uma expressão própria e estabelece aí um discurso pertinente. Nada acontece por acaso, nem está a serviço de possibilidades estéticas efêmeras.
Há vícios da publicidade? Possivelmente, mas nada que lembre Cidade de Deus, para ficar na mesma vizinhança criativa. O Cheiro do Ralo convoca o espectador para um convescote com o terror do seu dia-a-dia. Alguma coisa está cheirando mal, a cada dia fica pior e Lourenço quer que todo mundo saiba que a culpa não é dele. É uma metáfora simples mas repleta de possibilidades. Sua exploração ampara-se no trabalho de um ator que praticamente não tem rival hoje no cinema brasileiro. Selton Mello é um intérprete inteligente, que trabalha numa direção, constrói uma obra e é capaz de co-produzir vários trabalhos como esse. Da forma como é adaptado, O Cheiro do Ralo é um palco para seu show. Seu personagem está em permanente transformação e Selton o acompanha. No seu escritório sujo, Lourenço acha que tudo está sob controle. Não vê seu mundo ruir todos os dias.
Há um momento em que as bundas perfeitas desaparecem como o pôr do sol. Não importa o que você tenha, um dia você vai perder. Quem diz isso é Denzel Washington em Deja Vu. Mas poderia ser Lourenço, se ele soubesse. Selton não teria a quem ensinar essa verdade. Mas certamente Lourenço entenderia, depois de ver que a linda bunda se foi e um insuportável cheiro de ralo ficou.
# O CHEIRO DO RALO
Brasil, 2006
Direção: HEITOR DHALIA
Roteiro: MARÇAL AQUINO, HEITOR DHALIA, baseado em livro de LOURENÇO MUTARELLI
Fotografia: JOSÉ ROBERTO ELIEZER
Direção de Arte: GUTA CARVALHO
Montagem: JAIR PERES. PEDRO BECKER.
Música: APOLLO NOVE
Elenco: SELTON MELLO, PAULA BRAUN, LOURENÇO MUTARELLI, FLAVIO BAURAQUI, SILVIA LOURENÇO, ALICE BRAGA.
Duração: 112 minutos
Site oficial:www.ocheirodoralo.com.br