Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: ANNIE HALL (1977)

25.01.2020
Por Maria Caú
Annie Hall e a quebra dos paradigmas da comédia romântica

Com sua modéstia característica e um tanto calculada, Woody Allen costuma dizer que não acredita ter jamais influenciado ninguém, que não consegue posicionar seus filmes como referência para uma geração de cineastas, que não pensa na posteridade. Numa entrevista recente, de tom particularmente dramático, declarou que não se incomodaria se atirarem seus filmes ao mar depois de sua morte. Pois se pensarmos por um momento nessa imagem apocalíptica, talvez consigamos concordar que Annie Hall é, talvez mais do que qualquer outro título de sua obra (e há diversos outros de grande ressonância cultural), o filme que, tamanho seu impacto e a revolução narrativa e estética engendrada por ele, jamais poderia ser descartado simplesmente sendo jogado ao mar. E aqui podemos aventar se Allen poderia de fato ser “cancelado”, como hoje desejam alguns: é possível cancelar um corpo de filmes que transformaram a história do cinema? Mesmo se deixarmos de consumi-los, não lidamos continuamente com suas releituras, com seus ecos em diferentes cinematografias, em resumo, com um ambiente cinematográfico que eles ajudaram irremediavelmente a construir?

Annie Hall. Aquela pausa obrigatória para comentar o título, relevante tanto em sua versão original quanto na estranha tradução nacional. Hall é o sobrenome de Diane Keaton, que, ao se registrar como atriz no Actors Equity Association, precisou alterar seu nome porque o sindicato dos atores teatrais já contava com uma Diane Hall em seu rol de associados. A atriz decidiu então adotar o sobrenome da mãe, uma feliz coincidência, já que é uma grande fã do ator/diretor Buster Keaton. Annie, por sua vez, é um apelido familiar. Esse é o primeiro e mais óbvio indício de que a construção da personagem foi feita com a colaboração de Diane, permeada pelo relacionamento romântico e criativo que ela viveu com Allen. Os figurinos, que causaram uma revolução internacional na moda, cheios de elementos tradicionalmente masculinos (colete, chapéu de feltro, gravata, calças de pregas largas), hoje parte da coleção do Museum of Moving Image de Nova York, eram roupas do seu guarda-roupa pessoal. De fato, esses elementos, e a força da atuação (minimalista, precisa) de Keaton como esta mulher que vai aos poucos aprendendo a navegar em meio à revolução dos costumes e ao novo contexto social do fim dos anos 1970, radicalmente diverso em Nova York da modesta cidade onde ela cresceu, nos fazem mais uma vez questionar como o cinema articula várias formas de autoria que passam despercebidas. É justo pensar que a autoria de Diane Keaton afastou o filme do seu projeto original, um roteiro bastante confuso intitulado Anedonia (incapacidade crônica de sentir prazer), mais centrado nos problemas de Alvy Singer e no qual aquela que acabaria sendo a personagem-título aparentemente teria menos foco (seria um sonho ler este roteiro nunca publicado).

Noivo neurótico, noiva nervosa. O caráter absurdo do título em português, hoje quase completamente abandonado, é sempre trazido à tona: Alvy e Annie não são noivos, é certo. Talvez ele se explique, no entanto, pela necessidade moralista de categorização de uma relação até então menos representada no cinema: um relacionamento amoroso mais realista para a época, com coabitação sem casamento formal, idas e vindas. Já o uso da palavra neurótico em relação ao personagem de Allen talvez tenha cimentado de uma vez por todas a associação dessa alcunha com a sua figura.

O fato é que até Annie Hall os filmes norte-americanos que pensavam o amor se fundava frequentemente numa idealização exasperada, do embrião das comédias românticas no cinema mudo às screwball comedies, ainda que A primeira noite de homem (Mike Nichols, 1967) tenha introduzido alguma variação ao modelo com seu melancólico desfecho. O filme de Allen, ponto de virada em uma carreira até então afeita às comédias episódicas e farsescas, que costuravam tiradas filosóficas ao humor físico, não se centra na conquista romântica. “Annie e eu terminamos” diz Alvy Singer no primeiro plano do filme, quebrando a quarta parede e falando diretamente ao público com grande intimidade, colocando o espectador à proximidade de Annie, que ele ainda não conhece, fazendo referência a essa relação na qual estamos imediatamente imersos. Essa escolha, um recurso simples, nos atira na convivência de uma relação e de seus percalços e seu futuro fim (um futuro-presente, e é genial como Allen manipula o tempo na narrativa). Estamos diante, talvez, da inauguração de um novo gênero, ou subgênero, imitado à exaustão: os filmes sobre relacionamentos, em que o ponto não é se o mocinho e a mocinha ficarão juntos, mas as vicissitudes do amor romântico fora da era das idealizações, em que as expectativas do jogo são outras, e nós continuamos porque “precisamos dos ovos”.

A quebra da quarta parede, com a qual Allen já havia flertado em outros momentos, em especial no filme anterior, A última noite de Bóris Grushenko (Love and Death, 1975) é aqui utilizada de uma forma tão sofisticada quanto inovadora: ocorre como se o filme inteiro se passasse no ambiente mental de Alvy Singer, que por sinal não é o único personagem a acessar diretamente o espectador (quem não se lembra da famosíssima sequência da fila do cinema e do embate entre ele e um pseudo-intelectual, com a presença surpreendente de Marshall McLuhan?). Os tempos também se embaralham: Alvy passeia por suas memórias como anda pela Nova York que conhece tão bem, convidando o espectador a seguir com ele. Em outro momento, ele e Annie visitam juntos o passado romântico de ambos, com a bagagem dos relacionamentos antigos sendo examinada de modo jocoso.

Em realidade, Annie Hall aponta, mais de quarenta anos depois, para uma injustiça fundamental: Allen é considerado, mesmo entre a crítica, um cineasta revolucionário do ponto de vista do conteúdo: a forma como ele aborda as grandes questões existenciais, como estrutura longos e inteligentes diálogos com abundantes referências, como fala sobre o amor e a morte como os dois inescapáveis temas da experiência humana (e a angústia de não dominar a gramática do amor e não escapar da morte) é, sim, marcante e transformadora na história do cinema. Mas é preciso afirmar que Allen também é um mestre da linguagem cinematográfica. Diferentemente de outros diretores da sua geração, ele não demonstra o menor interesse em sublinhar seu domínio técnico, pretendendo que essas inovações de linguagem sejam transparentes, quase invisíveis, como se as tivesse retirado de um repertório comum de uso corrente. Eis a maior sofisticação do cinema de Allen: parecer simples, sem esforço, mascarando uma experiência de espectatorialidade que se abre àquele que quiser imergir mais profundamente, sem alienar o que busca apenas uma narrativa interessante e gostosa de acompanhar. Os filmes de Allen convidam à revisão constante, sempre presenteada com elementos novos.

Além das muitas quebras de quarta parede, dos belos planos-sequência, em Annie Hall temos duas geniais sequências de tela dividida (numa delas, a família de Alvy aborda a família de Annie através da tela), uma breve cena de animação, episódios que parecem a materialização do inconsciente ou dos pensamentos íntimos do protagonista (como aquele em que ele aborda desconhecidos na rua para questioná-los sobre o amor), ao lado de alguns dos momentos mais doces do cinema: a cena da lagosta, por sua simplicidade tão carregada de sentimento; e aquela em que Annie canta pela primeira vez, mostrando que Allen não precisa recorrer a diálogos para construir uma personagem.

Por fim, temos uma discussão honesta sobre sexo e feminismo (Annie vai aos poucos questionando o papel de Alvy na sua vida) e uma enorme série de quebras de expectativas. O primeiro beijo, o término, o retorno, o desfecho, todas essas cenas nos surpreendem por serem a um só tempo surpreendentes (porque desencaixadas do ambiente cinematográfico de então) e perfeitamente naturais, quase conhecidas, potencialmente vividas. O final, um dos mais belos e significativos da história do cinema, celebra o amor de Alvy e Annie como se dissesse: ele existiu, sem a ideia de que o amor precisa necessariamente ser uma jornada a dois pela vida inteira. O amor existe. Ele nos transforma a cada encontro e segue conosco quando precisamos nos despedir de uma paixão num sinal de trânsito qualquer. Ele nos acompanha, e podemos acessá-lo em nós mesmos. Exatamente como os filmes de Allen, precisamente como Annie Hall.



 



 



 

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