Críticas


DOSSIÊ WOODY ALLEN: MELINDA E MELINDA (2004)

25.01.2020
Por Nelson Hoineff
Allen nos leva a entender que não importa se a vida é uma comédia trágica ou uma tragédia cômica; o que importa é de que maneira olhamos para isso.

O crítico Nelson Hoineff, um dos fundadores do site, faleceu em dezembro de 2019, antes que esse dossiê fosse completado. Era um profundo admirador da obra de Woody Allen. A republicação de seu brilhante ensaio sobre "Melinda e Melinda" é uma homenagem à memória do querido Nelson.



POUCOS DIZEM EU TE AMO

Sermos entretidos – essa é uma das últimas coisas de que realmente necessitamos. De que necessitamos? Os religiosos, por exemplo, nos dizem que precisamos de Deus para nos salvar, para nos indicar os caminhos a seguir.

Tenho dificuldade de entender o que significa a salvação, mas vejo com maior clareza a necessidade de mãos, divinas ou não, que nos auxiliem a percorrer esses caminhos. É aí que a relação do ser humano com a criação artística se confunde com sua relação com os semelhantes. A obra, como um amigo, como uma amante, pode entreter-nos por algumas horas; pode ser um passatempo que nos ajude a suportar o silêncio do cotidiano ou a espera pela morte – mas pode ser também o cúmplice de uma vida toda e ao longo dessa trajetória ir moldando a própria vida.

Surgem situações singulares – às vezes situações únicas – que não estão sujeitas a medidas de intensidade, porque dependem, para dizer o mínimo, da conjugação de experiências e de repertórios culturais que nunca se repetem. São momentos especiais, que a vida nos ensina a valorizar, e que simplesmente não podem ser mensurados, como não se mensura uma paixão. E mais: são momentos silenciosos, porque a paixão é silenciosa, não pode ser propagada ou vendida, como os pregadores evangélicos propagam ou vendem a sua fé.

Quando Woody Allen junta amigos numa mesa de bar, e escolhe o Elaine’s ou o Carnegie Deli, não está fazendo apenas locação. Está propondo os códigos que vão permear uma obra inteira. Da mesma forma, quando os roteiristas Max e Sy sentam-se à mesa para discutir se a vida é uma comédia trágica ou uma tragédia cômica, estão definindo a conversa das próximas horas. Pode-se acompanhá-la ou não - como pode-se ou não ir a um baile fantasiado de personagem de Star Wars. É mesmo uma questão de experiências e repertórios culturais.

Melinda e Melinda é o 35o filme do diretor. Ou por outra: é a 35a parte de um filme único. O que torna extraordinária uma carreira assim é a permanência de um diálogo renovado com o autor. Não a fruição de suas obras, mas um diálogo mesmo. Uma relação que decorre do contrato entre o emissor e o receptor a que os semiólogos gostavam de se referir, mas principalmente à possibilidade de uma cumplicidade em alta escala entre ambos.

Não me recordo de outro cineasta, em qualquer tempo, que tenha sido tão fiel a essa possibilidade. Allen não fala necessariamente do que seus filmes parecem estar falando, mas freqüentemente do que, como nas experiências de Snow, estão fora de quadro. Por isso tantos críticos em tantos lugares parecem ter se sentido tão aliviados com Melinda e Melinda. Ali há algo do que falar: há uma história, por assim dizer, que pode ser seguida sem que haja a impressão que na tela existe apenas algo pueril, como em O Escorpião de Jade ou outros filmes da mesma época.

Mas tanto o escorpião quanto a inesperada visita das Melindas são a azeitona sobre o banquete que em todos esses casos Woody Allen está nos ofertando. É para uma catarse, para um ritual de auto-conhecimento, para uma terapia coletiva, que Allen está nos convidando – não para acompanhar personagens que pelo filme somos levados a conhecer, mas personagens que idealmente já conhecemos. Ao contrário de uma canção de amor ou de política, no entanto, eles não são espelhos diante dos quais nos identificamos – mas companheiros de uma excursão. Seus filmes – seu único filme, repito, dividido em tantas partes – são a forma encontrada para nos tomar a mão e seguir em busca de algo de cuja existência os fragmentos que ficam pelo caminho são a única prova de que dispomos. Só o que é necessário para seguir em frente é um repertório muito próprio, não melhor nem pior que todos os outros, mas algo que decorre de relações muito fortes com lugares, pessoas, atitudes, culturas.

Nesse longo filme, não há histórias a serem contadas, não há personagens por quem torcer, não há situações dramáticas a serem resolvidas. Não há nada que lembre o lixo massificado que os seres humanos talvez mais afortunados, que jamais tiveram um cérebro ou um dia o viram esmagar-se, podem considerar mais relevante. Não há nada para nos entreter com algo que seja externo a nós mesmos.

Allen não nos tenta a sair do nosso mundo para nos tornarmos micos de algum laboratório midiático. Ele nos convida a ficar, a nos iluminarmos mutuamente com a luz que emana justamente dessa cumplicidade, a saber que não estamos sozinhos e podemos seguir este caminho até o fim. O que Allen nos leva a entender é que não importa se a vida é uma comédia trágica ou uma tragédia cômica; o que importa é de que maneira olhamos para isso.



(publicado originalmente no Criticos.com.br em 29.05.2005)

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